Por Claudio Angelo*
O antropólogo colombiano Martín von Hidelbrand brinca que Jair Bolsonaro é seu maior garoto-propaganda. Foi, afinal, graças ao presidente eleito do Brasil que uma ideia de Von Hidelbrand, o corredor ecológico Triplo A, tornou-se mundialmente famosa. Só que pelo motivo errado.
Em 2015, Von Hidelbrand, fundador da ONG Gaia Amazonas, sugeriu ao então presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, que propusesse aos países da calha Norte do rio Amazonas uma série de acordos de cooperação para manter a conectividade entre ecossistemas numa imensa faixa de florestas na Amazônia que vão dos Andes ao Atlântico – daí o nome de “corredor AAA”, triplo A.
Neste mês, o AAA foi a usado por Bolsonaro como justificativa para vetar a realização no Brasil da conferência do clima da ONU (COP25), em 2019. O presidente eleito tem repetidamente dito que o Triplo A é uma ameaça à soberania do Brasil sobre a Amazônia. Por alguma razão, Bolsonaro deu de achar que a proposta do corredor ecológico faz parte do Acordo de Paris e das discussões internacionais de clima.
“Não tem nada a ver”, disse Von Hidelbrand ao Observatório do Clima. “Se perguntassem na conferência do clima o que é o Triplo A, ninguém saberia responder antes de Bolsonaro começar a falar disso”.
O colombiano explica que a origem da confusão é uma fake news: segundo ele, sua proposta a Santos foi mal interpretada como a proposta de criação de uma imensa área protegida transnacional – o que é não apenas impossível, mas também desnecessário: “Se olhamos no mapa as áreas protegidas que já existem hoje, vemos que já temos um corredor de 80% de conectividade”, diz. A maioria dessas áreas está no Brasil. São terras indígenas e unidades de conservação que garantem o fluxo dos rios e da biodiversidade.
No entanto, uma organização chamada Movimento de Solidariedade Ibero-Americana (Msia) enxergou na iniciativa uma trama conspiratória para internacionalizar a Amazônia. A teoria da conspiração, segundo Von Hidelbrand, foi parar em círculos militares – e no discurso do presidente eleito. “Eu acho que ele já sabe que isso não tem nada a ver com a COP, mas me parece que está gostando do discurso”, disse o colombiano.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone de Bogotá, o ambientalista colombiano explica sua proposta e a confusão que ela gerou.
Como lhe ocorreu a ideia do triplo A?
A ideia na verdade não é nova, nem é minha. Ela trata da importância da conectividade para manter os ecossistemas e os serviços ambientais. Parques e áreas isoladas não permitem a manutenção do fluxo genético e da biodiversidade. Essa ideia não é complicada. Vimos que nas últimas três décadas países como o Brasil e a Colômbia vêm reconhecendo territórios indígenas e áreas protegidas que em seu somatório se articulam para formar corredores. O Brasil já vinha pensando nisso um tempo atrás, essas ideias já estavam no ar. E agora, com a mudança climática, é urgente que os países cooperem, a partir evidentemente da soberania de cada país, das políticas e estratégias de cada país, para manter essa conectividade e os serviços ambientais.
Eu expliquei essa ideia ao presidente [Juan Manuel] Santos e escreveu aos presidentes dos outros países dizendo: por que não olhamos essa possibilidade, a partir das políticas de cada país vemos como vamos cooperar? Brasília, quando começamos a discutir com o MMA, com o Chico Mendes, com o Itamaraty, Brasília pôs na mesa a proposta Conecta. A Colômbia tem a proposta Visión Amazonia. O Equador tem a proposta que se não me engano se chama Amazonas 2030 Zero Desmatamento.
A ideia é que, se nos articulamos e trabalhamos juntos, mantemos o ciclo da água. Se não o fazemos, vamos perder o ciclo da água. Quanto mais desmatamento, menos água temos, e no futuro isso é uma necessidade. Vemos São Paulo com problemas de água, os Andes com problemas de água. A água do Brasil depende dos Andes, onde nascem os rios, mas a água dos Andes depende dos rios voadores que vêm da Amazônia. Essa é a ideia, foi um convite, que obviamente não tem nada a ver com soberania dos países.
Quando o sr. diz que com a mudança climática isso se torna mais urgente, o que quer dizer? Que a mudança climática cria fragilidades adicionais?
São duas coisas. A mudança climática evidentemente cria perigo para as florestas, e os modelos climáticos nos dizem que ela ameaça produzir uma mudança de ecossistemas na qual as florestas tropicais úmidas podem se converter em algo como o cerrado. Mas, se derrubamos a floresta, também estamos piorando a mudança climática e diminuindo a capacidade de água. Sabemos que grande parte da água produzida pela Amazônia e aos Andes vem da evapotranspiração das árvores. A chuva que chega a Manaus só tem 20% de umidade originada no mar, 80% vem da própria floresta. Perder árvores é perder água. E aumentar o CO2 e todo o resto.
E quando o sr. teve essa ideia e quando a comunicou ao presidente da Colômbia?
Isso eu elaborei há três anos e meio e conversei com o presidente Juan Manuel Santos no começo de seu segundo mandato. A reação imediata dele foi que isso é importante e é viável. Porque, se olhamos no mapa as áreas protegidas que já existem hoje, vemos que já temos um corredor de 80% de conectividade. A pergunta então é: se já temos 80% de conectividade, por que precisamos trabalhar juntos? Porque precisamos nos articular e cuidar conjuntamente. Neste momento temos uma visão isolada. Cada vez que se criou um parque se estava pensando na biodiversidade desse parque. Mas agora vimos que tem que conectar tudo e pensar mais além, pensar se é viável estabelecer essa conectividade sem implicar em novas leis, ou criar novos territórios. No fundo essa conexão é muito mais uma cooperação entre os diferentes ministérios, entre os institutos de pesquisa que estão envolvidos na Amazônia, fortalecer trocas de experiência, cada um com sua soberania e com sua estratégia, repito. E cada um coopera até onde quiser. Ou não coopera, o que para mim seria uma burrice, porque dependemos um do outro.
O que o sr. quer dizer com essa conectividade que já existe? Terras indígenas na fronteira, por exemplo?
Primeiro temos a conectividade natural, entre os rios, que correm e passam por todos os países. Há também conexão entre áreas protegidas dentro de cada país. Por exemplo, no Pará existem os mosaicos que o governo criou. E também temos um potencial de conectividade na fronteira entre a Colômbia e o Brasil, mas isso depende de os governos sentarem e decidirem trabalhar juntos. O Brasil foi claro nas reuniões de que isso pode ser interessante, mas que não se trata simplesmente de fazer um acordo entre os ministérios do Meio Ambiente, temos que considerar outros ministérios, os militares, as questões de transportes, comunicação, Minas e Energia e Agricultura. Há outros atores.
Essa proposta em algum momento foi discutida nas conferências do clima?
Não. [Mas] vamos olhar isso da perspectiva histórica. Há três anos e meio o presidente Santos ficou interessado pela ideia e a lançou a iniciativa com seus ministros. Eu estava presente, estava todo tempo apoiando a equipe do governo e estive nas reuniões com os chanceleres. Quando o presidente lançou a ideia, disse à chanceler colombiana: vá e fale com o chanceler do Brasil e convide-os para ver se estão dispostos a considerar essa ideia.
Mas isso saiu nos jornais, e a Avaaz, essa organização que faz petições, lançou isso com uma descrição pouco precisa, de que faria uma área protegida, um corredor desde os Andes até o Atlântico. E não era nada disso, era apenas conectividade ecossistêmica. Mas eles interpretaram assim e em uma semana ou duas coletaram 1 milhão de assinaturas. E isso saiu nos jornais. Quando nossa chanceler foi falar com o Itamaraty, já foi recebida com uma pedra na mão. Com toda razão. E houve uma reação dos militares, que escreveram na revista deles que isso era um ataque à soberania.
Foi publicado artigo sobre isso [no site do Movimento de Solidariedade Iberoamericana] que dizia textualmente o que Bolsonaro está dizendo agora: isso atenta contra a soberania nacional, são 136 milhões de hectares etc. E esse artigo dizia que essa proposta do presidente colombiano vinha de uma ideia do Martín von Hidelbrand, que está ligado por meio de sua fundação com a Inglaterra e com o Príncipe Charles. O Príncipe Charles e a Inglaterra não estão envolvidos, nada a ver!
Então tomaram uma fake news por seu valor de face.
Exatamente. Ocorre que na mesma época em que eu falei com Santos e sobrevoei a Amazônia com ele o príncipe Charles visitou o presidente. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas meteram tudo junto nessa fake news. Isso que os militares disseram há três anos é o que Bolsonaro disse textualmente em sua campanha. Eu acho que ele já sabe que isso não tem nada a ver com a COP, mas me parece que está gostando do discurso.
Quando Bolsonaro confessou que rejeitou a COP25 no Brasil, disse que fez isso precisamente por causa do triplo A.
E evidentemente não tem nada a ver com isso. E não tem nada a ver com afetar a soberania. Porque se está convidando cada país a partir das próprias políticas e leis. Como se coopera em segurança, comércio e várias outras áreas.
Se o sr. pudesse dizer alguma coisa sobre esse assunto a Bolsonaro, diria o quê?
“Senhor presidente, por favor, pense no futuro de seu país. Se não cuidarmos da floresta, vamos ficar sem água. Não seria nada especial, é algo tão simples, todas as pessoas dizem a mesma coisa. Se alguém te disser que isso tem a ver com a COP e que é um complô não acredite, porque não tem”.
Mas se ele está usando como pretexto para sair do Acordo de Paris, não adianta dizer nada, porque não vai acreditar. Se ele está mal informado, diria isso, mas senão, não adianta nada, porque não há pior surdo do que aquele que não quer ouvir.
Se ele parte do princípio que a mudança climática é falsa, que as árvores não têm nada a ver com a chuva, que tudo o que os cientistas dizem é mentira, é uma conspiração para prejudicar os mercados, então é muito complicado. Não sabemos se é um problema psicológico ou de ignorância. Porque é igual ao Trump, são casos graves.
Se perdemos a Amazônia perdemos a luta contra a mudança climática. Por outro lado, ele também poderia dizer que, se a Amazônia é um órgão vital do sistema, se somos tão importantes, então compensem-nos economicamente e tecnologicamente e a manteremos. Este é outro discurso que me pareceria válido. Mas, se a agroindústria está puxando isso [a rejeição ao Acordo de Paris], vai ter problemas porque ninguém vai querer comprar produtos que venham do desmatamento.
*Esta entrevista foi publicada originalmente no site do Observatório do Clima em 7/12/2018