Em 1576, Martin Frobisher, um marinheiro inglês, navegava pelo Atlântico Norte em busca de uma rota marítima para o Oceano Pacífico. Ao chegar à costa do Canadá, ele se deparou com um objeto incomum na beira da praia. O artefato era totalmente branco, muito comprido e torcido em espiral. Frobisher não tinha dúvida. Estava diante de um chifre de unicórnio.
Naquela época, o unicórnio era descrito em livros de história natural como uma criatura real com poderes mágicos. Seu chifre era capaz de detectar veneno e neutralizá-lo. Era de se esperar que os reis europeus desejassem um objeto tão poderoso.
Frobischer levou o chifre de volta para a Inglaterra e logo achou uma compradora: a rainha Elizabeth I. Acredita-se que ela pagou cerca de £ 10 mil pela peça (o equivalente a £500 mil nos dias de hoje). Os vikings traziam exemplares para vender aos monarcas europeus. Certamente eles sabiam a origem do “chifre”, mas continuaram propagando a lenda do unicórnio para manter o preço da mercadoria elevado.
Unicórnios eram considerados criaturas reais no século 16. O achado de um marinheiro inglês em 1576, muito parecido com o objeto da foto, ajudou a reforçar esse mito – Foto: Zlatko Unger/Creative Commons
Eventualmente, a verdade veio à tona. Em 1638, Ole Worm, um cientista dinamarquês, provou de forma conclusiva que aquele objeto não era o chifre de uma criatura mitológica. Na verdade era um dente super desenvolvido, uma espécie de presa, de um tipo de baleia que nadava no mar ártico: o narval (Monodon monoceros).
Durante séculos cientistas tentaram explicar a função do enorme dente. Uma das hipóteses dizia que a presa servia para pegar peixes. Mas como a baleia transferia o alimento para a boca nunca foi explicado ou observado.
Outra teoria sugeria que as presas eram utilizadas para ajudar na respiração. Narvais se encontram abaixo do gelo constantemente. Como são mamíferos, precisam respirar o oxigênio do ar e as presas serviriam para abrir respiradouros no mar congelado. O problema é que a maioria das fêmeas não possui presas e também precisam respirar.
Charles Darwin dizia que o dente do narval desempenhava a mesma função do chifre dos veados. Ele servia para estabelecer dominância (machos com presas grandes têm uma chance maior de acasalar com fêmeas) e poderia ser usado como arma em um possível combate.
Agora, novas técnicas de microscopia permitiram estudar a presa do narval detalhadamente e revelaram uma nova função para o super dente: detecção de mudanças na temperatura e salinidade da água. Mas como isso acontece? E por que isso é importante?
Nossos dentes são cobertos por uma camada de esmalte que protege o material mais macio. Se esse esmalte é danificado, os nervos abaixo dos dentes são expostos e os deixam extremamente sensíveis a mudanças de temperatura.
A presa do narval não possui essa camada de esmalte. A superfície do dente é repleta de buracos, chamados de túbulos, que guardam um fluido e um nervo em sua base. Essa estrutura seria capaz de detectar pequenas mudanças na temperatura e na salinidade da água, fatores cruciais para a formação de gelo. Com isso o narval consegue saber onde pode encontrar gelo ou mar aberto e escolher a melhor rota para realizar sua migração. Mas os cientistas ainda não conseguiram explicar porque algumas fêmeas possuem presas e outras não.
Outra questão que permanece em aberto é o fato da presa crescer em espiral. Talvez a torção aumente a superfície de contato para expor mais nervos e aumentar a sensibilidade. Talvez ajude na hidrodinâmica forçando a água a se mover em espiral para diminuir o arrasto quando o animal nada para frente. De uma forma ou de outra, sabemos que a presa do narval não possui poderes mágicos, mas ainda existem muitas coisas que precisamos explicar sobre esse dente extraordinário.
Foto: Glenn Williams/Creative Commons