Vivemos em um país de dimensões continentais, com uma área total de 8.511.996 km², compreendendo uma variedade surpreendente de climas e relevos que, proporcionaram a formação de inúmeros biomas e ecossistemas ao londo de todo o território nacional. Esta gigantesca diversidade de ambientes, impulsionou o surgimento de milhares de animais e plantas. Talvez você fique surpreso ao saber isto, mas nosso país abriga, hoje, entre 10% e 20% de todas as espécies do mundo, algumas delas únicas do Brasil.
Os números da biodiversidade brasileira são impressionantes: estimativas atuais apontam que existem aqui nada menos que 2 milhões de espécies, entre plantas, animais e microrganismos. De acordo com o Funbio – Fundo Brasileiro para a Biodiversidade, somente a flora brasileira compreende 55 mil espécies, entre elas 2.300 de orquídeas. Já a fauna brasileira, igualmente diversa, conta com mais de 6 mil espécies de vertebrados, entre eles, mais de 3 mil peixes, 1.919 aves, 502 anfíbios, 468 répteis e 394 mamíferos.
Mas não é “só isso”! O Ministério do Meio Ambiente confirma que o país abriga também uma rica sociobiodiversidade, representada por mais de 200 povos indígenas e por diversas comunidades – como quilombolas, caiçaras e seringueiros – que reúnem inestimável acervo de conhecimentos tradicionais, inclusive sobre a conservação da biodiversidade.
Em um primeiro momento, pode não ser tão evidente, mas são exatamente a conservação da integridade de nossos biomas biodiversos e a preservação de vários processos biológicos chave, mediados por eles, que garantem a existência de diversos serviços ecossistêmicos, como a polinização e a manutenção do equilíbrio do clima, sem os quais nossa sociedade sequer sobreviveria.
Além disso, nossa biodiversidade é uma fonte inesgotável de inovações tecnológicas, uma verdadeira fábrica natural de substâncias químicas, ainda muito pouco explorada, mas com potencial enorme para inovações radicais nos setores de fármacos, cosméticos, fragrâncias, agroquímicos e suplementos alimentares.
Vale lembrar que algumas pesquisas tais como Strategies for discovering drugs from previously unexplored natural products (Estratégias para a descobertas de medicamentos a partir de produtos naturais ainda não explorados), realizada pelo pesquisador Alan Harvey, apontam que menos de 10% da biodiversidade mundial já foi testada para o combate a doenças. E olha que, mesmo tendo usado tão pouco dessa riqueza, algumas drogas revolucionárias já foram descobertas a partir de recursos naturais como, por exemplo, a artemisina que age contra a malária e os compostos eficazes na luta contra câncer como taxol, docetaxel e camptothecin.
Por isso, o uso sustentável dos recursos naturais alinhados com a conservação da biodiversidade são princípios essenciais para o desenvolvimento inteligente, democrático e sustentável de nosso país.
Entretanto, excepcionalmente na última década, a biodiversidade brasileira tem sido alvo de centenas de empreendimentos do setor energético, impulsionados principalmente pela necessidade intrínseca de disponibilização de infraestrutura básica aos setores ligados ao Plano Nacional de Mineração 2030, que em parte impulsionaram também algumas das alterações do Código Florestal Brasileiro.
Os efeitos catastróficos das mudanças no Código Florestal e do impacto dos novos empreendimentos voltados à mineração e à construção de hidrelétricas no país, não são segredo e já foram discutidos e divulgados por dezenas de cientistas do país, como Joice Ferreira, pesquisadora da Embrapa, em estudo altamente relevante intitulado Brazil’s environmental leadership at risk, publicado em 2014 na revista científica Science, uma das mais renomadas do mundo.
Ainda assim, atualmente, uma das 3 bacias hidrográficas mais ricas em biodiversidade do mundo, a do rio Amazonas, enfrenta uma explosão sem precedentes na construção de represas colossais em megaprojetos focados na implementação de usinas hidrelétricas.
Publicada na revista PlosOne – na mesma semana em que os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos lançaram a Iniciativa Global sobre Mudanças Climáticas -, a pesquisa Widespread Forest Vertebrate Extinctions Induced by a Mega Hydroelectric Dam in Lowland Amazonia, divulga os resultados encontrados pelos pesquisadores Maíra Benchimol e Carlos A. Peres, durante dois anos de estudo, sobre os efeitos da construção da usina hidrelétrica de Balbina sobre a extinção de espécies na Amazônia.
Os resultados demonstraram claramente o efeito devastador para biodiversidade causado pelo impacto da construção dessa hidrelétrica. Segundo as previsões matemáticas realizadas pelo estudo, aproximadamente 70% de todas as espécies nativas de vertebrados de médio e grande porte deverão desaparecer da região nos próximos 26 anos, incluindo o mutum-poranga (Crax alector) umas das mais belas aves do Brasil (foto ao lado).
Apontada no passado por alguns dos setores da economia como energia renovável e de baixo custo, o fato é que a energia produzida por hidrelétricas já está sendo considerada – por diversos especialistas como John Seebach, diretor da instituição norte-americana American Rivers – como energia suja.
Ainda assim, dezenas de projetos para a construção de hidrelétricas estão sendo executados neste momento no Brasil. Projetos que, embora tenham como foco suprir a demanda por energia, superestimam os benefícios econômicos e subestimam os efeitos danosos sobre a biodiversidade.
O estudo Balancing hydropower and biodiversity in the Amazon, Congo, and Mekong, recentemente publicado também na Science, aponta que uma das razões para esta falta de alinhamento entre conservação da biodiversidade e construção de usinas hidrelétricas é que os protocolos para avaliação da viabilidade e do impacto ambiental, em vigor no país, ignoram os efeitos do impacto cumulativo da construção de barragens na hidrologia e nos serviços ecossistêmicos.
Para serem realmente sustentáveis, estes empreendimentos deveriam adotar obrigatoriamente processos de licenciamento ambiental que levassem em consideração avaliações de longo prazo e não apenas o impacto local. Deveriam considerar o impacto total das alterações no ecossistema, acessando informações, por exemplo, sobre o impacto do conjunto de hidrelétricas em uma mesma bacia, alterações na cobertura vegetal da paisagem e mudanças no clima local e regional.
Nas palavras do pesquisador Kirk O. Winemiller, do departamento de vida selvagem da Universidade do Texas – especialista em rios tropicais, grandes represas, praticamente destroem todo movimento sazonal das cheias -, essas obras reduzem o acesso de populações e comunidades de peixes a planícies inundadas, habitats importantíssimos que funcionam com berçários da vida selvagem. As alterações físicas são tão marcantes, que alteram completamente a dinâmica do ecossistema, transformando áreas de alta complexidade funcional em ambientes homogêneos e de baixa produtividade.
Mas o impacto ecológico não se restringe somente aos rios, já que alteram drasticamente a deposição de nutrientes e outros processos biogeoquímicos em deltas, estuários e ecossistemas marinhos, afetando a produtividade de florestas, sistemas agrícolas, a indústria pesqueira local e a vida de milhões de pessoas que dependem diretamente dos rios.
Ainda segundo o pesquisador, existe uma gigantesca lacuna em relação a transparência dos processos legais para aprovação da viabilidade de instalação de hidrelétricas, o que levanta perguntas por parte de cientistas do mundo todo, sobre as motivações que levam à implantação de empreendimentos deste tipo em bacias de rios tropicais.
No Brasil, as hidrelétricas ainda respondem por, no mínimo, dois terços de todo o suprimento de energia do país e, já existem hoje, ao menos, 334 propostas para construção de novas represas nos rios amazônicos, incluindo outros países da América do Sul. O impacto destas represas se estenderá muito além do impacto direto nos rios, incluindo a recolocação de populações ribeirinhas e a ampla expansão de desmatamento associado à construção de novas estradas.
Um dos casos mais famosos, do impacto da construção de uma usina, é Belo Monte (ao lado). Com capacidade de produção de energia inicialmente prevista para 11.233 MW, é considerada a terceira maior hidrelétrica do mundo. Atualmente, especialistas já confirmam que a produção de energia será muito abaixo do esperado.
Embora Belo Monte jamais alcance os índices de produção de energia – que para os gestores do projeto justificaram sua construção em prol da segurança energética nacional -, segundo Mark Sabaj Pérez, especialista em peixes da Academia de Ciência Naturais da Filadélfia, a usina certamente entrará para o livro dos recordes mundiais como o empreendimento com maior impacto sobre a extinção de espécies.
Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), autor do livro Hidrelétricas na Amazônia (disponível para download), afirma que o governo brasileiro lançou uma campanha sem precedentes para represar afluentes do rio Amazonas, e Belo Monte foi apenas “a ponta da lança” de esforços para a criação de um complexo gigantesco de usinas hidrelétricas na Amazônia.
Segundo Fearnside, além de seus impactos sobre as florestas tropicais e os povos indígenas, apenas as barragens previstas para o Xingu poderão se tornar uma fonte colossal de emissões de gases de efeito estufa, especialmente de metano (CH4), gás que se forma quando plantas mortas se decompõem no fundo de um reservatório, transformando todo o conjunto de barragens em uma “fábrica de metano”, com impacto direto sobre o aquecimento global.
Para Mario Cohn-Haft, também pesquisador do INPA e uma das autoridades mundiais sobre o bioma amazônico, o maior problema na construção de usinas hidrelétricas na região tropical é que os rios brasileiros são reservatórios de endemismos, ou seja, abrigam espécies que não são encontradas em nenhum outro local do mundo. As hidrelétricas – sejam projetos já executados ou os que estão previstos -, desencadeiam impacto tão gigantesco no ecossistema que destroem a biodiversidade local extinguindo centenas de espécies únicas e insubstituíveis.
Esta verdadeira epidemia de hidrelétricas, acontece justamente em uma região onde – segundo o relatório sobre O Futuro Climático da Amazônia, publicado pelo pesquisador Antônio Nobre, do Centro de Ciência do Sistema Terrestre (CCST), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), responsável diretamente pelo equilíbrio do clima e das chuvas no Brasil, onde o desmatamento influencia diretamente na falta de água nas regiões mais populosas do país.
Os problemas relacionados à implantação de hidrelétricas é tão grande que, enquanto o Brasil “inexplicavelmente” ainda investe bilhões na construção de usinas hidrelétricas, em projetos que contrariam a opinião pública e a análise da comunidade científica internacional, diversos países já começam a desmontar suas usinas e a investir em projetos de restauração.
É o que aponta mais um estudo publicado em 2015, novamente na revista Science, intitulado 1000 dams down and counting (em português, 1000 represas desmontadas e contando). Os autores da pesquisa liderada por Jim E. O’Connor realizaram um levantamento internacional contabilizando a remoção de hidrelétricas em todo o globo e afirmam que, ao longo do tempo, as usinas tornam-se ineficientes ou simplesmente inúteis.
Enquanto países do mundo todo desmontam sua barragens, desativam hidrelétricas e investem em energia limpa e de baixo impacto, o Brasil ainda segue silenciosamente executando o Plano Decenal de Expansão de Energia 2020 que prevê a construção de, pelo menos, 48 grandes barragens adicionais no país, das quais 30 serão instaladas em plena Amazônia Legal.
Nos Estados Unidos, já é possível acompanhar, em tempo real, a desativação de centenas de hidrelétricas. Clique neste link e acesse o mapa interativo da imagem abaixo, conheça cada uma das centenas de usinas já interditadas.
E no Brasil? Até quando seremos movidos a biodiversidade?
Imagens: Sandro Von Matter, Krystyna Szulecka, Arkive e Wikimediacommons / Mapa virtual: American Rivers