Quando idealizou o projeto Minha Mãe Fazia, a jornalista Ana Holanda não imaginava que, em um ano, teria mais de 9 mil seguidores no Facebook e que, seis meses depois (neste março de 2016), seus fãs ultrapassariam os 17 mil. Também não previa que inspiraria tanta gente ou que fosse conhecer tantas histórias e pessoas incríveis. Ela apenas sentia que queria contar sobre suas experiências na cozinha e resgatar receitas de sua mãe. Mas, ao ouvi-la falar de suas intenções, lá em 2014, imaginei que Ana poderia ir muito longe com sua ideia. Por quê? Porque, quando nada estava definido, quando tudo era apenas desejo e sonho, seu projeto já estava carregado de afeto e de muito amor. E, assim, só pode dar certo, né?
“A inspiração veio do meu prazer em cozinhar e da vontade em oferecer aos meus filhos uma comida de verdade, feita em casa, cheirosa e saborosa”, conta. “Eu acho que toda criança precisa crescer rodeada de comida gostosa, cheirosa, verdadeira. Tem que ir à feira, em horta, em pomar. Tem que comer fruta e deixar escorrer o caldo pelo braço. Tem que reconhecer o cheiro da manga, do maracujá, da pitanga, da hortelã. Tem que perceber a mágica que é a mistura do ovo, da farinha e do leite se transformar em um bolo cheiroso. Tem que crescer e se lembrar disso com afeto”.
Para Ana, a comida (a bebida também, claro! O suco, o chá, o café…) é uma ponte que nos conecta com lembranças preciosas, mesmo quando elas nos remetem a pessoas que já não estão mais entre nós ou com as quais não nos relacionamos mais. “Suco (ou sorvete) de pitanga, por exemplo, sempre vai me emocionar. Me faz lembrar da minha avó Esther, que morreu há mais de 20 anos. Quando eu era criança, colhia pitanga com ela durante as férias em Recife, onde ela morava (sou de São Paulo). Assim, quando como pitanga, sinto como se minha avó estivesse comigo embaixo daquele pé, escolhendo apenas as frutinhas que estivessem bem vermelhas. E essas lembranças fazem parte de quem somos”.
E essa experiência amorosa é um bom caminho para a tão desejada alimentação saudável, aquela que só é possível, de verdade, quando a comida é feita de forma caseira, com ingredientes frescos, de preferência orgânicos. E essa delicadeza e amor a Ana passa muito bem em seus textos também. “Quando a gente escreve, é impossível não revelar o que se é e o que se sente. Demorei um pouco pra me soltar. No começo, parecia um pouco superficial. Mas agora não tenho nenhuma vergonha de dizer o que sinto e o retorno tem sido absurdamente positivo. As pessoas se emocionam e se veem nas histórias, despertam a própria história pelo afeto”.
Ana escreve dois relatos por semana, mas não há planejamento. O que a move é o desejo de contar uma boa história que, se estiver relacionada a um prato, ganha receita. Às vezes, ela só quer refletir sobre uma experiência: a convivência amorosa com a enteada, Maria – que provocou lágrimas em diversos leitores e foi a história mais curtida e compartilhada da rede – ou sobre sua tia Líbia, que tem Alzheimer, mas sempre cozinhou muito bem. “Neste dia, a receita era o silêncio”.
Outras vezes, a jornalista tem vontade de preparar um prato e escrever sobre ele, como o bolo de chocolate recheado de brigadeiro e beijinho (salivei quando vi a foto que ilustra este post), que agradou a gostos diferentes na família. Sim, ela deu a receita em outro post, logo em seguida. E ainda compartilhou a dica da mãe para cortar um bolo ao meio (para recheá-lo), sem desmantelá-lo.
Em outras oportunidades, ela quer apenas contar sobre alguém que conheceu – como a avó e o neto brasileiros que participam da iniciativa (francesa) Grandmas Project, e sua família – ou um amigo que, atento ao seu olhar para a comida e leitor assíduo de sua página, enviou um delicioso bolo de rolo do Recife, embrulhado com muito carinho (foto ao lado).
“Ainda quero fazer um pavê de chocolate com biscoito à moda antiga”, disse ela em dado momento da entrevista. Mas o que seria um pavê à moda antiga? “Com biscoito champanhe! Do jeito que minha mãe fazia”, explicou. Seu comentário mexeu comigo: na hora, lembrei do pavê – e de seu sabor – que minha mãe fazia quando eu era criança, também com esse biscoito. É impossível ouvir ou ler Ana e não resgatar algum momento de nossa história relacionado a comida e ao amor. “Pesquisei uma infinidade de receitas na internet, mas só encontrei o que queria no caderno de receitas da minha mãe. As boas receitas se perdem. Precisamos resgatá-las!”, disse, animada.
Quando Ana pediu os cadernos de receitas para Dona Lígia, sua mãe, esta não entendeu muito bem seu interesse: “Mas por que você vai querer essa besteira?”. Ela acha que tudo que anotou neles, ao longo da vida, não tem grande valor, é uma bobagem que todo mundo sabe, mas o sucesso da página Minha Mãe Fazia mostra que existe lugar para o que é simples, para o básico, o original, para a culinária do dia a dia. E quer saber? Dona Lígia não está na internet, mas assim que Ana publica um texto lá no “Face”, os irmãos já mostram para ela que, claro, sente o maior orgulho: da filha e ao ver alguma receita sua “testada, aprovada” e compartilhada.
Mas, vez ou outra, a inspiração para cozinhar vem do pai, que só se arrisca no churrasco em alguns fins de semana, sempre muito bem temperado com alecrim, que ele adora. “Meu pai é emoção pura, então, sua presença nos meus textos sempre tem esse viés. Já contei que ele adora alecrim – que usa tão bem no churrasco dos fins de semana – e também da carne de panela que eu faço: ele gosta do cheiro”, lembrou. “Também contei que ele sempre gostou muito de doce, mas hoje é diabético, mas não sofre por isso. Sempre pensei que fosse muito difícil pra ele lidar com essa proibição e ainda ler os meus posts já que, na maior parte das vezes, falo de doce”. Um leitor que acompanha o Minha Mãe Fazia se identificou com a história porque também tem a doença e pediu receitas especiais para diabéticos. “Agradeci o comentário, mas expliquei que não me sinto à vontade para atender esse pedido. Seria leviano indicar receitas assim”.
Aliás, esta foi uma participação masculina rara, já que, nessa página, os homens se limitam a curtir, taguear alguém ou são tagueados. Cerca de 85% do público do projeto da Ana é feminino. E apesar disso, nesse espaço não se fala de dieta. Ali não existe nenhuma culpa – ufa! – por saborear comidinhas calóricas e muitos doces. E ela fala bem mais de doce do que de salgado. “Talvez seja assim porque doce é mais ligado à emoção, mais carinhoso”, argumenta. Mas o que importa é o prazer de comer uma comida – seja ela doce ou salgada – bem feita. Feita com amor.
Longe de ser chef ou culinarista, Ana aposta não só na amorosidade como também na simplicidade ao cozinhar para a família todos os dias. Além das receitas de sua mãe, de sua avó e de sua tia, ela também testa outras que encontra em suas pesquisas pela internet e adapta ao gosto dos filhos – os gêmeos Clara e Lucas – e do marido Maurício. E a simplicidade também está nas fotos que acompanham seus posts: “Tenho implicância com foto perfeita, produzida”. O bolo de chocolate com recheio de brigadeiro e beijinho, por exemplo, apareceu inteiro no primeiro post e devorado (foto ao lado) no segundo. Deu mais água na boca ainda.
Ana iniciou o Minha Mãe Fazia movida pela paixão que sente por escrever e cozinhar. “Só a ideia do projeto já alimentava a minha alma”. Assim, seu caminho natural foi o de encantar quem dele se aproximou. “Fiz pela paixão, mas não imaginei que iria tocar tanto as pessoas, que elas se emocionariam como tem acontecido”. Muita gente comenta nas próprias publicações, mas outras escrevem mensagens arrebatadoras por inbox. “Às vezes, fico chorando por vários minutos ao ler os relatos de pessoas que afirmam ter resgatado o amor por cozinhar e que transformaram suas vidas ao me acompanhar no Facebook”. Foi o que aconteceu quando leu os relatos de duas garotas: uma que, inspirada por Ana, conseguiu resgatar a mãe da depressão lembrando-a do quanto cozinhava bem e gostava e que queria aprender a cozinhar com ela; a segunda, que estava meio perdida na profissão e, depois de acompanhar sua página, percebeu que é uma chef nata e começou a estudar gastronomia. “Acredito que toco em algo que estava latente e só precisava de um empurrão para encontrar seu caminho. O projeto é um grande aprendizado pra mim, é uma troca muito rica”.
Por conta do seu projeto, Ana (que é editora da revista Vida Simples) foi convidada para fazer a curadoria de uma exposição – Memórias à Mesa – que está sendo organizada pelo Museu da Imigração, em São Paulo, sobre a relação entre comida e movimentos migratórios. Na página do Minha Mãe Fazia, ela conta sobre o convite que recebeu da diretora do museu, Marília Bonas, e já faz um convite para seus seguidores, que eu repasso para você, agora: resgatar os cadernos de receitas da família e enviem fotos para ela (minhamaefazia@gmail.com) ou para a equipe do museu (pesquisa@museudaimigracao.org.br) até 30/3. Os cadernos escolhidos farão parte da exposição que deve ser aberta em setembro.
Assim, o projeto lindo de Ana ganha novos contornos. E a pergunta que seu marido lhe fez, lá em 2014, quando ela contou que iria escrever sobre “memórias afetivas e comidinhas do dia a dia” (seu slogan), começa a fazer sentido: “Você já tem um plano de negócios?”. Rindo, ela admite que, agora, pode ter chegado o momento de começar a pensar de forma mais palpável no futuro do projeto, que só cresce. Mas garante que, seja lá como for, ele não perderá sua essência jamais.
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Fotos: Ana Holanda/Minha Mãe Fazia