Luís Bernardo Valença, protagonista do romance Equador, do português Miguel de Souza Tavares, recebe do rei de Portugal uma missão virtualmente impossível: assumir o governo de São Tomé e Príncipe para convencer os compradores ingleses de cacau de que não existe trabalho escravo nas ilhas – e, ao mesmo tempo, garantir que o sistema de trabalho escravo não mude, de forma a não prejudicar a economia local.
A história guarda uma analogia com o momento pelo qual passa o IPCC, o painel do clima da ONU, que na semana passada realizou em Oslo, na Noruega, a primeira reunião de sua história dedicada à comunicação. O comitê internacional de cientistas, agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 2007, reconhece que a forma como se comunica com seus diversos públicos precisa mudar: os sumários de seus relatórios de avaliação são indecifráveis para leigos e para os próprios formuladores de políticas públicas a quem supostamente se dedicam; as decisões são tomadas em reuniões fechadas, o que alimenta rumores de que o painel é ora uma conspiração de ambientalistas para distorcer a ciência, ora uma vítima de ações de governos para aguar conclusões impactantes sobre a gravidade das mudanças do clima; a maneira como a incerteza e o risco são expressos pelo painel é bizantina.
A vontade de abrir-se mais ao público, porém, esbarra no conservadorismo do próprio painel, que preserva um modo de operação da década de 1990, quando lançou seu primeiro relatório de avaliação). Os métodos, as regras e os rituais do IPCC precisam permanecer os mesmos – e seus líderes parecem não querer abrir mão disso. Ao mesmo tempo, eles mesmos pedem mais transparência e mais acessibilidade. Qual é a chance de isso dar certo?
O próprio encontro de Oslo pode ser um termômetro. Foram convidados a participar cerca de 50 especialistas em comunicação do mundo inteiro e mais duas dezenas de autoridades do próprio painel. A reunião foi a primeira em toda a história do IPCC a ser transmitida ao vivo pela internet. Mas isso que só aconteceu depois da cobrança de algumas personalidades da área, como o jornalista americano Andrew Revkin. Ela foi aberta também pela internet pelo presidente do painel, o sul-coreano Hoesung Hwang. Os co-presidentes dos três grupos de trabalho que cuidam de avaliar os três grandes aspectos da mudança do clima (a base física, impactos e vulnerabilidades e mitigação) estiveram presentes o tempo todo, assim como dois dos três vice-presidentes, a americana Ko Barrett e o malês Youba Sokona. Cientistas que coordenaram a produção do AR5 (Quinto Relatório do IPCC publicado entre 2013 e 2014), também estiveram nos dois dias de encontro.
Um consenso importante formado em Oslo foi que a comunicação precisa integrar o processo de produção dos relatórios desde o início. O modelo atual seguido pelo IPCC consiste em preparar primeiro os relatórios e então divulgá-los aos diversos públicos – tomadores de decisão, imprensa e o público geral. É o que Paul Lussier, especialista em mídia da Universidade Yale, chamou de “passar batom num porco” durante sua apresentação.
Enfeitar o suíno, até aqui, tem sido a receita para o fiasco de comunicação do painel. Isso foi mais ou menos matematicamente demonstrado pelo cientista ambiental português Suraje Dessai, professor da Universidade de Leeds, no Reino Unido, e coautor do AR5. Uma análise dos sumários do IPCC conduzida por Dessai e colegas com a ajuda de softwares que olham simplicidade e legibilidade foi publicada no ano passado no periódico Nature Climate Change. O trabalho mostrou que não apenas o IPCC é menos legível do que outras publicações científicas, como também o grau de compreensibilidade dos sumários despencou de 1990 para cá.
Uma das recomendações feitas ao final do encontro, e que serão encaminhadas à plenária do IPCC em abril, é para que se incorporem comunicadores profissionais, jornalistas de ciência, psicólogos e antropólogos desde a chamada fase de “definição do escopo” dos relatórios. Isso começaria no AR6, o Sexto Relatório de Avaliação do IPCC, que deverá ser publicado em algum momento entre 2020 e 2022. Essa própria definição, que hoje é feita pelas autoridades do painel e pelos governos, poderá vir a ser realizada numa espécie de consulta pública – na qual diferentes atores, desde a sociedade civil até empresários e mesmo crianças, digam o que querem que o painel avalie sobre a mudança climática. Tamanha abertura seria uma revolução no IPCC, rompendo a lógica professoral que impera hoje na definição das perguntas às quais os relatórios tentam responder.
Outra sugestão, apresentada por um grupo que discutiu as relações entre o IPCC e os meios de comunicação, foi para que os rascunhos dos sumários executivos sejam abertos para o público antes da aprovação final pelos governos. Cada sumário passa por uma série de rascunhos até chegar ao formato final de revisão, que é enviado aos governos para comentários. Os sumários são aprovados por governos e cientistas na plenária do IPCC, onde recebem alterações finais. A regra é que os governos modifiquem muito o texto, mas – e este é um “mas” importante, porque é o que define a credibilidade do IPCC – a palavra final é sempre dos cientistas.
Os rascunhos hoje não são públicos, mas qualquer pessoa pode solicitar ao IPCC fazer parte do comitê de revisores – e ganham, assim, acesso aos documentos. Em 2013, um negacionista do clima vazou em seu blog uma versão do AR5, alegando que o painel estava escondendo evidências de que o aquecimento global se devia a raios cósmicos (não estava). A proposta apresentada em Oslo foi para que os rascunhos de revisão fossem tornados públicos, de forma a minimizar o impacto de vazamentos e a conter desinformação na imprensa.
Outras recomendações feitas em Oslo vão de dar ao site do IPCC uma nova interface pública até produzir infográficos animados da ciência avaliada pelos relatórios.
Na prática, porém, a teoria é outra: um dos dogmas do IPCC é que ele não pode produzir prescrições políticas, ou seja, precisa se limitar a dizer aos países o que acontece com o mundo em cada cenário de emissões e o que é preciso fazer para atingir níveis de emissão x, y ou z no futuro. A rigor, o painel do clima não pode incitar as pessoas a combater a mudança climática – isso seria uma posição de militância. Pior, entre os mais de 150 governos que integram o IPCC e de fato mandam nele (daí a sigla significar Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) há os que não querem resolver o problema, porque vivem da sua causa – os combustíveis fósseis. Essas são amarras importantes à comunicação.
Outro problema é que o IPCC ainda vive no século XX, num sentido bem real. Enquanto a comunicação hoje é digital, o painel do clima decidiu, por consenso, que seus relatórios são aprovados linha por linha pelos governos – e isso significa caneta e papel. Não há nem sequer método para submeter um infográfico animado à plenária, caso alguém ache que é o caso usar esse tipo de recurso no AR6. Sugestões de ter uma equipe de vídeo acompanhando o making of dos relatórios foram rejeitadas no passado, porque algumas pessoas no painel não queriam que ninguém ficasse “espionando” seu trabalho. E por aí vai.
O IPCC foi criado em 1988, mas só ganhou uma estratégia de comunicação em 2012. Tem um longo aprendizado pela frente e precisa começar de algum lugar. Pessoas com quem conversei em Oslo disseram duvidar que a maior parte das recomendações seja acatada. Mas é auspicioso, num momento em que o mundo se prepara para implementar o Acordo de Paris, que o templo do conhecimento climático esteja disposto a embarcar na tarefa da comunicação. Ela é mais necessária do que nunca agora.
*O jornalista Claudio Angelo, do Observatório do Clima, viajou a Oslo a convite do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas). Este texto foi publicado originalmente no site do OC em 14/02/2016
Foto: Divulgação/IPCC (cientistas que participaram da elaboração do AR5, quinto relatório)