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Ana Maria Primavesi, pioneira da agroecologia, morre aos 99 anos, e deixa legado precioso de amor à terra

“Um jatobá que tomba, centenário!”, assim a geógrafa, amiga e admiradora Virginia Mendonça Knabben resumiu sua morte em texto que viralizou na internet. O carinho e a reverência que rendia à agrônoma são facilmente notados na forma como se referia a ela, sempre: “jatobá sagrado da agricultura, árvore mestra, a matriz de todos nós”. E também nas iniciativas que realizou para a divulgação da trajetória preciosa da especialista que, durante 80 anos, ensinou muitos brasileiros a amarem a terra e a natureza, com os ensinamentos da agroecologia. Em 2016, Virgínia lançou a biografia Ana Maria Primavesi, histórias de vida e agroecologia e, em outubro do ano passado, um site exclusivo.

Em entrevista à revista Globo Rural, a especialista conta sobre o encontro com Ana Maria: “Depois que descobri a doutora Ana e a agroecologia, é como se, para mim, encontrasse uma missão. A biografia dela foi a minha estreia e é como se eu tivesse um compromisso de fazer com que o trabalho que essa mulher desenvolveu e pelo qual tanto lutou na vida não morresse. Ela mudou a minha vida”.

No texto que se tornou viral, a pesquisadora destacou a garra de Ana Maria: “Descansa uma mente notável, uma mulher de força incomum e um ser humano raro. Afastada de suas atividades desde que passou a morar em São Paulo com a filha Carin, Ana recolheu-se”, conta Virgínia. “Quase centenária, era uma alma jovem num corpo envelhecido que, mesmo se tivesse uma vitalidade para mais 200 anos, não acompanharia uma mente como a dela”. Ana Maria morreu devido a insuficiência cardíaca.

Ana Maria Primavesi é uma das principais referências de agricultura sustentável e do manejo ecológico no país e no mundo. Muito cedo ela compreendeu que é essencial respeitar a natureza – e a amou como poucos -, que não é necessário derrubar a floresta para plantar e que os alimentos podem conviver e usufruir da companhia da biodiversidade.

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Os estudos sobre solo e agroecologia no Brasil foram profundamente alterados com Ana Maria. Seu trabalho é um divisor de águas. Sua determinação e seu conhecimento profundo da terra rendiam respostas óbvias como esta a questões sobre a possibilidade de se desenvolver agricultura orgânica em larga escala “Durante cinco mil anos, a agricultura foi orgânica e a humanidade comeu. Se continuarmos assim (atuando em larga escala), o solo vai ser destruído e a gente vai comer o quê?”. Óbvio.

Os estudos e a guerra

Nasceu na Áustria em 1920 – como Annemarie Baronesa Conrad – e estudou agronomia na Universidade Boku, em Viena, num tempo em que era raro as mulheres frequentarem universidades. Mas Ana Maria não chamou a atenção no cenário acadêmico apenas por ser mulher e estar no meio de tantos homens, mas principalmente por “seu talento natural para compreender o invisível”: a vida microscópica da terra. E, assim, adquiriu visão de cientista para decifrar a terra e produzir alimentos sem ferir a natureza. Por isso, foi pioneira em agroecologia ou agricultura ecológica.

Impossível falar dessa prática sustentável e não lembrar dela. Impossível não reverenciá-la e amá-la. Por isso foi tão reconhecida, homenageada e premiada. Sua visão simples e amorosa da natureza impedia que compreendesse os motivos de tanta admiração. E, por isso, declarava: “Eu não entendo porque as pessoas gostam tanto de mim. As pessoas me adoram tanto e eu não sei por quê. Como podemos ser premiados por fazermos o que é o certo?”.

Pois é, ela “tinha toda razão”, como bem observou Virgínia. “Para a doutora Ana, era natural trabalhar com o solo vivo, tentando reproduzir ao máximo o que a natureza já faz. Era óbvio”. Mais uma vez.

Enquanto estudava, a Segunda Grande Guerra pulsava e tirava a vida de jovens como seus dois irmãos, além de ferir seu pai gravemente, o que a levou a assumir grandes responsabilidades em casa. Não só: Virgínia conta que Ana Maria salvou seu pai da execução “sem a ajuda de um advogado”. Nesse contexto – que ainda incluía um momento politico obscuro, em que Hitler se empenhava em influenciar os jovens a desistirem dos estudos – , estudar era uma enorme valentia.

Ela se formou e seguiu direto para o curso de doutorado. Seu amor pela terra associado ao talento, à coragem e à orientação de professores especiais foram determinantes para definir sua linda trajetória. Ela já entendia que a agricultura era uma prática agressiva, mas que era possível produzir alimentos sem destruir a natureza.

Quando a guerra acabou, a Europa estava destruída. Ana Maria tinha 25 anos, estava formada e casada com o engenheiro agrônomo Artur Primavesi, e ambos decidiram morar no Brasil. Portanto, foi em solo brasileiro que ela aplicou tudo o que aprendeu e se dedicou à agricultura, sempre dando assistência para o marido, ao mesmo tempo em que cuidava dos filhos e os via crescer e se independer.

A linguagem simples da terra

Aqui, ela também encontrou um ambiente bastante belicoso, em outro sentido. Ao falar de proteção do meio ambiente para cientistas focados na agricultura com o objetivo de obter escala e desenvolvimento econômico, ela conquistou inimigos. Foi, por isso, acusada de não honrar a ciência. Mas, para quem viveu as agruras resultantes da guerra, nada poderia demovê-la de seus ideais. Não se tratava de egocentrismo, mas de convicção fortemente embasada por sua formação e por seu amor à terra. “Tenho certeza do que estou falando”, dizia.

Não lhe interessava defender as leis dos homens e do mercado, mas as leis da natureza. Portanto, não havia outra possibilidade de atuar que não a protegesse. Entre as ideias de manejo que defendia e ensinava estão a rotação de culturas, que ajuda no controle de pragas e doenças, e o uso de quebra-vento, barreira vegetal usada que protege as plantas contra a ação do vento. 

Virginia conta, em um dos textos que escreveu ao longo de seu convívio com Ana Maria, que a cientista era ousada e lançava mão de recursos fáceis e encantadores para se fazer entender por qualquer público. “Falava de colêmbolos, bactérias e nematóides, de “compounds” entre os elementos químicos e deficiências minerais, e emendava nesse contexto as historinhas mais queridas das formigas de Sorocaba que ‘dançam’, do boi que comia as correspondências do governo em Fernando de Noronha ou da “dona cobra”, uma cascavel que vinha cumprimentar os visitantes de sua fazenda em Itaí balançando seu chocalho”.

Ana Maria sabia popularizar seu conhecimento sem vulgariza-lo. Simplificava a linguagem acadêmica para que todos pudessem compreende-la e defender a terra “com ternura”. Para tornar suas apresentações ainda atraentes e amorosas, se utilizava da técnica fotográfica Kirlian, descoberta acidentalmente em 1939 e que revela a aura ou um “halo luminoso” em torno de qualquer objeto.

Assim, as imagens que complementavam suas falas revelavam a energia das plantas saudáveis, mas também seu estado alterado pelos “efeitos maléficos das pulverizações de agrotóxicos e das deficiências minerais provocadas pela adubação química“.

E ela ainda contava uma história pessoal muito linda relacionada ao jatobá, espécie encontrada na Amazônia, na Mata Atlântica, no Pantanal e no Cerrado, e que tem inúmeras propriedades. Ela dizia que a seiva dessa árvore era tão rica em minerais que ela a dava a seus filhos como suplementação mineral, que nunca precisaram tomar vitaminas. Com um detalhe: antes de retira-la, ela pedia permissão à árvore. Dá pra entender melhor porque Virgínia se refere a Ana Maria como jatobá.

Claro que tais recursos de linguagem eram rechaçados pelos colegas e catedráticos como “uma afronta à ciência”, mas os agricultores – aqueles que trabalhavam nas plantações, de fato – a compreendiam muito bem. Ela os encantava com suas narrativas. Quem não se encantaria? Foi assim que me senti do começo ao fim da pesquisa que fiz a respeito de sua trajetória e enquanto escrevia este texto.

“Nosso jatobá sagrado, cuja seiva alimentou saberes e por sob a copa nos abrigamos no acolhimento de compreendermos de onde viemos e para onde vamos, tomba, quase centenário. Ele abre uma clareira imensa que proporcionará ao sol debruçar-se sobre uma nova etapa, a da perpetuação da vida. E dos saberes que ela disseminou”, escreveu Virgínia.

Não lamentemos, portanto, sua morte. Celebremos a vida longa e produtiva desta mulher excepcional, honremos o legado precioso que nos deixou e que pode ajudar o mundo a impedir o avanço da destruição que tem caracterizado esta época.

Livros técnicos, contos e animação

Ávida por passar seu conhecimento, Ana Maria escreveu inúmeros livros, entre eles o que se tornou mais famoso: Manejo ecológico do solo, lançado em 1979. E, para nossa felicidade, sua obra vem sendo reeditada pela Editora Expressão Popular, com uma série que leva seu nome (para conhecer e comprar, acesse o site). A série é composta por livros técnicos – como o citado acima -, mas também por sua biografia, escrita por Virgínia Knabben, e um livro de contosA Convenção dos VentosAgroecologia em Contos.

Mas a cientista que amava a terra, não se limitou à literatura para passar seu conhecimento. Na década de 50, ao perceber a dificuldade da maioria das pessoas para compreender a dinâmica da vida no solo, escreveu uma história sobre essa microvida e a transformou em um desenho animado de longa-metragem: A vida no solo.

Nele, defendeu sua ideia de que “o solo é a base de tudo” e apresentou os fenômenos biológicos, físicos e químicos de forma bem humorada. “O solo vivo é tão transbordante de vida que acaba por nos mostrar como somos (ou fomos) míopes em enxergá-lo como mero substrato para as plantas crescerem”, diz a apresentação em seu site.

Essa foi a primeira animação sobre o tema no mundo. E sua intenção era fazer mais um filme para explicar como recuperar o solo. Infelizmente, naquela época, Ana Maria não conseguiu os recursos necessários e a ideia se perdeu.

Agora, assista A Vida no Solo, de Ana Maria Primavesi, abaixo:

Foto: Divulgação

Fontes: site Ana Maria Primavesi, Globo Rural

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