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Morre Niède Guidon, arqueóloga que lutou pela preservação da Serra da Capivara, o maior tesouro arqueológico brasileiro

“Partiu como um passarinho, tranquila”, anunciou Marian Rodrigues, diretora do Parque Nacional da Serra da Capivara, se referindo à morte da arqueóloga franco-brasileira Niède Guidon, aos 92 anos, na madrugada desta quarta-feira (4), em São Raimundo Nonato, no Piauí.

Niède deixa um legado imensurável para a ciência, para a cultura, para a história do Brasil e para a humanidade. “Seu nome estará para sempre gravado nas pedras que ajudou a revelar — e nos corações de todos que sonham com um país que valorize seu patrimônio e seus cientistas”, publicou a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), em nota.

Pesquisadora, professora universitária e membro titular da Academia Brasileira de Ciências, Niède tornou-se conhecida no mundo devido às suas descobertas sobre o processo de povoamento das Américas – a partir de escavações que liderou em 1973 na Serra da Capivara, quando identificou achados inéditos sobre a ocupação humana no continente – e por sua luta pela preservação do Parque Nacional da Serra da Capivara, criado em 1979 e, devido a seus esforços, declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO em 1991.

Niède transformou a região da serra em um dos mais importantes sítios arqueológicos do mundo, revelando mais de 800 sítios pré-históricos, com pinturas rupestres, ferramentas e outros vestígios dos primeiros habitantes humanos da América, descobertos em escavações arqueológicas. 

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Morre Niède Guidon, arqueóloga que lutou pela preservação da Serra da Capivara
Niéde Guidon em trabalho de escavação durante os primeiros anos na Serra da Capivara
Foto: Acervo Fumdham
Mural com pinturas rupestres em sítio arqueológico do Parque Nacional da Serra da Capivara
Foto: Janine Moraes/MinC

Em 1986, criou a Fundação Museu do Homem Americano para facilitar e financiar as pesquisas na região, além de garantir a preservação do patrimônio cultural e natural do parque nacional, reserva que ocupa mais de 100 mil hectares e  abrange os municípios de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias.

Desde o início, a fundação se dedicou ao desenvolvimento socioeconômico e culturalda região, garantindo que o plano de manejo do parque fizesse a integração da população local às ações de preservação ambiental. 

É notável a transformação que o trabalho da arqueóloga realizou na região com a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara. Historiadores locais costumam dizer que Niède “inaugurou um novo ciclo, que impactou vidas inteiras” nas cidades abrangidas pelo parque. 

Sua atuação até 2018 foi imprescindível para a consolidação do parque e a preservação e o estudo de seus 1.200 sítios com pinturas rupestres e material arqueológico e paleontológico. 

Morre Niède Guidon, arqueóloga que lutou pela preservação da Serra da Capivara
Sítio arqueológico no Parque Nacional da Serra da Capivara
Foto: Diego Rego Monteiro, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons

Após inaugurar seu último feito – o Museu da Natureza –, Niède se aposentou. Ela estava com 85 anos e, devido às sequelas da febre Chikungunya, contraída dois anos antes, tinha dificuldades de locomoção e já não conseguia mais explorar os sítios pré-históricos que tanto amava.

“Depois da inauguração do museu, saio. Tenho direito de descansar. Vou reclamar meu direito de não fazer nada. Comecei a trabalhar com 18 anos!”, declarou à revista Pesquisa Fapesp.

Na ocasião, chegou a dizer que voltaria para a França, sem saber exatamente para onde: “Gosto de cidades pequenas, bonitas”. Mas ficou em São Raimundo Nonato, também pequena e bonita, onde viveu seus últimos anos.

Niède Guidon morreu às vésperas do aniversário de 46 anos do Parque Nacional da Serra da Capivara. Segundo Marian Rodrigues, um de seus desejos expressos era ser sepultada no jardim de sua residência. E assim será.

Museu da Natureza: última realização

Inaugurado em 18 de dezembro de 2018, o Museu da Natureza foi a última contribuição de Niède Guidon para o Parque Nacional da Serra da Capivara e para a humanidade.

Museu da Natureza, a última contribuição de Niède Guidon para a humanidade
Foto: divulgação

Administrado pela Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), em parceria com o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), o Museu da Natureza apresenta a região da Serra da Capivara e destaca as mudanças climáticas e os eventos geológicos que ali ocorreram. 

“Até 9 mil anos atrás, tínhamos a floresta amazônica na parte alta da serra da Capivara e aqui na planície era Mata Atlântica. Era o ponto de encontro dos dois biomas. Com as mudanças climáticas, a floresta desapareceu e a Caatinga se instalou. Ainda hoje há espécies animais e vegetais desses dois biomas que sobreviveram aqui”, contou a arqueóloga em entrevista à revista Pesquisa Fapesp, antes da inauguração, em outubro de 2018.

Ela contou também que a ideia do Museu da Natureza surgiu da necessidade de dar um paradeiro para a coleção de fósseis, levantamentos geológicos e natureza do Museu do Homem Americano. 

“A coleção humana cresceu tanto que tivemos que retirar a parte da natureza do Fumdham. Como não tínhamos onde mostrar esses fósseis, inclusive marinhos, de quando aqui era mar, fizemos o projeto do Museu da Natureza. Isso foi mais ou menos entre 2002 e 2003. Com a troca de governo, a presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que apoiava o projeto, mudou e não houve avanços. Em 2009, o projeto foi retomado e, em 2013, aprovado pelo banco, mas o dinheiro só foi liberado em 2017 sem nenhuma correção monetária. Tivemos então de fazer adaptações no projeto para não estourar o orçamento”, contou a pesquisadora.

Homenagens: de filme, livro, música e ópera a nome científico de ave

Reconhecida mundialmente, Niéde Guidon foi homenageada por governos, artistas, pesquisadores, acadêmicos…

Em 2003, os cantores Zé Roraima e Mirton homenagearam a arqueóloga com uma canção. Eles dizem que o refrão ‘Ninguém é de guidom, Niéde Guidom’ “pode ser interpretado como uma celebração da singularidade e da contribuição única de Niède Guidon para a arqueologia e a história brasileira” (ouça no final deste post).

“A referência à ‘pedra furada’ (foto abaixo) e à ‘palavra da pedra’ simboliza a durabilidade e a profundidade das marcas deixadas pelos nossos antepassados. Essas marcas não são apenas físicas, mas também emocionais e espirituais, como indicado pela frase ‘é coisa do coração’. A música sugere que a história e a cultura estão gravadas não apenas em artefatos, mas também em nossas emoções e identidades”.

Para Roraima e Milton, “a música não é apenas uma homenagem a uma figura importante, Niède, mas também um convite à reflexão sobre nossas raízes e a importância de preservar e valorizar nosso patrimônio cultural”.

Morre Niède Guidon, arqueóloga que lutou pela preservação da Serra da Capivara
Pedra Furada, formação rochosa mais icônica do Parque Nacional da Serra da Capivara
Foto: Claudia Regina, CC BY-SA 2.0

Em 2005, Niéde tornou-se grande oficial da Ordem Nacional do Mérito Científico, honraria concedida em 2005 pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) do primeiro governo Lula.

Desde 2017, as histórias da arqueóloga e da Serra da Capivara são contadas em espetáculo do grupo Ópera da Serra da Capivara, intitulado Ato Niède. Com a pandemia, as apresentações foram suspensas e voltaram em 2022, numa noite muito especial com a presença de Niéde, que foi ovacionada pelos aplausos da multidão. 

Ópera na Serra apresneta a história de Niéde Guidon desde 2017. Em 2022,
pós-pandemia, retornou ao palco em espetáculo especial com a presença da arqueóloga
Foto: Ópera da Serra da Canastra./ divulgação

Em abril de 2019, o documentário Niède, dirigido por Tiago Tambelli, que narra sua trajetória como pesquisadora, estreou no Festival É Tudo Verdade (em São Paulo e no Rio de Janeiro), maior festival de documentários da América Latina (assista ao trailer no final deste post).

Em 5 de maio, o filme de 135 minutos foi exibido para a arqueóloga e a comunidade de São Raimundo Nonato, no anfiteatro da Pedra Furada, no município de Coronel José Dias. Em salas comerciais, o documentário estreou em 2020.

Documentário ‘Niède’ apresenta imagens de pinturas rupestres na Serra da Capivara
Foto: divulgação

Na ocasião, Tambelli declarou: “Contar a história de Niède Guidon é também contar a história da humanidade. O documentário revela o tamanho do esforço e dedicação de Niède para preservar as memórias da pré-história e é uma celebração às nossas ancestralidades, humanas e naturais”.

Em 2020, a arqueóloga tomou posse da cadeira 24 da Academia Piauiense de Letras, em solenidade virtual porque estávamos em plena pandemia da Covid-19. Durante a posse, ela contou como tomou conhecimento das pinturas rupestres no Piauí, e, no final de sua explanação, declarou: “Agradeço todos que me ajudaram durante esses anos com as pesquisas e a criar o Parque Nacional Serra da Capivara”.

Em 2023, a escritora Adriana Abujamra lançou o livro Niède Guidon: uma arqueóloga no sertão, obra finalista do Prêmio Jabuti Acadêmico de 2024, ao concorrer na categoria Divulgação Científica, que integra eixo especial do prêmio. 

Um ano mais tarde, pesquisadores (dois deles, piauienses: Pablo Cerqueira e Gabriela Gonçalves) homenagearam Niéde ao batizar uma nova espécie de ave, que vive no Parque Nacional da Serra da Capivara. Ela ganhou o nome de Sakesphoroides niedeguidonae (contamos aqui).

Nova espécie de ave que vive no Parque Nacional da Serra Capivara
foi batizada em homenagem a Niède Guidon
Foto: Pablo Cerqueira (pesquisador)

O artigo escrito por Alexandre Aleixo, Pablo Cerqueira, Gabriela Gonçalves, Tânia Quaresma, Marcelo Silva e Mauro Pichorim sobre a descoberta foi publicado na revista científica internacional Zoologica Scripta e revelou que alterações históricas no curso do rio São Francisco e oscilações climáticas ao longo de aproximadamente um milhão de anos provocaram a divisão de um grupo de aves conhecidas como choca-do-nordeste em duas espécies distintas. 

Os indivíduos da espécie que celebra Niède eram considerados parte da espécie Sakesphoroides cristatus. No entanto, os cientistas identificaram diferenças genéticas, de plumagem e de canto entre eles.

A descoberta fortaleceu a biodiversidade da Caatinga e destacou a importância da pesquisa científica e da colaboração entre instituições acadêmicas e de pesquisa para a conservação do patrimônio natural brasileiro, em especial do trabalho de Niède Guidon no Piauí.

Também em 2024, a Universidade Federal do Piauí concedeu à arqueóloga o título de Doutora Honoris Causa pelos mais de 50 anos de trabalho à frente das pesquisas arqueológicas no estado. 

E, no mesmo ano, ela ainda recebeu o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para a Ciência e Tecnologia – um dos mais importantes prêmios de pesquisa do Brasil – concedido pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) em parceria com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e apoio da Marinha do Brasil.

A seguir, assista ao trailer do documentário Niède e à canção composta por Zé Roraima e Mirton em homenagem à arqueóloga e cantada pelo primeiro:

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Foto: Fumdham / divulgação

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