PUBLICIDADE

Anta amada por moradores de Campo Grande, morre atropelada na BR-163

Duro-de-Matar, anta símbolo de Campo Grande (MT), amada pelos moradores, morre atropelada na BR-163

natureza e a ciência perderam, no final de janeiro, um aliado que tinha dez anos e pesava mais de 100 quilos: a anta macho, que se tornou conhecida – e amada – dos moradores de Campo Grande, facilmente identificada por mancar com uma das patas da frente em suas caminhadas pelas áreas verdes da cidade, em especial no Parque dos Poderes, no Parque das Nações Indígenas e nas imediações do alto da Avenida Mato Grosso.

Ela foi mais uma vítima fatal de atropelamento numa das rodovias mais perigosas para animais em Mato Grosso do Sul, a BR-163, que liga as cidades de Tenente Portela, no Rio Grande do Sul, a Santarém, no Pará.

Muitos são os moradores de Campo Grande que não se conformam com seu “desaparecimento” e sentem falta de sua presença pelas ruas e parques. Os pesquisadoresque o monitoravam desde 2022 e o batizaram como Duro-de-Matar (menção ao filme homônimo de 1988), também estão tristes. 

Explico a escolha do nome: a anta era símbolo de resistência por ter sobrevivido a um crime humano, que lhe causou grave lesão em 2021. 

PUBLICIDADE

A característica peculiar que lhe rendeu o apelido de ‘a anta que manca’, era sequela de uma armadilha de cabo de aço – montada por caçadores numa fazenda -, que quase decepou sua pata. Ela ficou internada por 90 dias no Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS) para tratamento, aos cuidados do médico veterinário Giovani Xavier, até que, sentindo-se recuperada da lesão, escapou.

Novamente livre, perambulava com seu passo ‘sincopado’ pelas áreas verdes da cidade. “Campo Grande é uma cidade que tem muitas áreas verdes, muita água e muita fauna presente nas áreas urbanas e periurbanas”, conta Patrícia Médici, uma das maiores especialistas em anta do mundo e coordenadora da organização INCAB-IPÊ.

“Nós temos dois parques estaduais dentro da cidade – Parque Estadual das Matas do Segredo [que protege, em seus 177,88 hectares, as inúmeras nascentes que formam o Córrego Segredo]e o Parque Estadual do Prosa [um dos últimos remanescentes de Cerrado dentro do perímetro urbano] – e diversas áreas verdes de conexão entre esses parques, e ainda temos os parques lineares ao longo dos córregos que passam pela cidade”. 

Foi em meio a esse cenário que o caminho de Duro-de-Matar se cruzou com o de cada morador de Campo Grande e com o dos pesquisadores da INCAB, que pouco antes haviam lançado projeto para monitoramento de antas na região, chamado Antas Urbanas (contamos aqui).

O projeto nasceu do fato de que a cidade sul-matogrossense era apontada como o ambiente urbano que mais recebia a visita de antas – fora de seu habitat natural – e tem como objetivo reunir dados precisos sobre avistamentos, com o intuito de monitorar os animais que frequentam o local, avaliar seu estado de saúde e o impacto de potenciais ameaças para a espécie.

A primeira campanha de captura do projeto aconteceu em julho de 2022. E adivinha quem foi contemplado? Duro-de-Matar! Ele foi a primeira anta capturada, equipada com colar de GPS e monitorada pelo Antas Urbanas (foto abaixo). 

Duro-de-Matar, anta símbolo de Campo Grande (MT), amada pelos moradores, morre atropelada na BR-163
A primeira captura de Duro-de-Matar para análise e colocação de colar de GPS, em julho de 2022
Foto: Felipe Fantacin / INCAB-IPÊ

Identificação

Uma das características marcantes do projeto é a participação dos cidadãos, ou seja, a promoção da Ciência Cidadã, que se deu tranquilamente graças a empatia dos moradores por Duro-de-Matar e seus companheiros de espécie. 

“Até agora, identificamos 20 antas, mas devem ser muitas mais”, conta Patrícia Médici. “Nós temos um grupo de Whatsapp com moradores de Campo Grande que enviam dados e informações sobre os animais, diariamente. O atropelamento do Duro-de-Matar foi reportado inicialmente nesse grupo”, acrescenta a pesquisadora.

Quando a tragédia aconteceu – próximo a um canteiro de obras para a construção de um viaduto -, os pesquisadores da INCAB não conseguiram verificar a identidade do animal antes que ele fosse enterrado pela concessionaria da rodovia. O que foi informado é que se tratava de um macho e, pela localização da colisão, elas desconfiaram que poderia ser Duro-de-Matar. 

Cerca de um mês depois, em 19 de fevereiro, finalmente integrantes da INCAB foram ao local e, com o auxílio de moradores da região, conseguiram encontrar o local exato onde o animal foi enterrado. De posse do crânio e por meio de análise da arcada dentaria, foi possível confirmar que era a anta mais amada de Campo Grande, que completaria 11 anos em 2025. 

“O Duro-de-Matar era um animal inconfundível. Se tornou símbolo do nosso grupo de moradores que busca a conservação das antas na Cidade Morena [como Campo Grande também é chamada]”, conta Roberto Pellizzer, morador de Campo Grande e membro do grupo de pessoas que apoiam o Projeto Antas Urbanas. 

“Essa situação traz à tona uma realidade terrível que são os atropelamentos em nossas rodovias. Que o Duro-de-Matar seja um símbolo, um símbolo de mudança! Chegou a hora de unirmos forças: governo [estadual], sociedade civil e empresas. Todos precisamos fazer parte e, assim, as futuras gerações também terão o imenso privilégio de saber como é conviver com tantas espécies abençoadas”, completa. 

Legado de Duro-de-Matar

A anta macho que conquistou corações em Campo Grande é considerado por todos como um embaixador da conservação da espécie

Devido a seu jeitinho de andar, Duro-de Matar foi logo identificado pelos moradores que, aos poucos se afeiçoaram ao animal e perderam o receio de passar por perto ou de se aproximar dele. Pouco depois, já se preocupavam com sua saúde e segurança e também das outras antas que vivem na cidade. 

Todos torceram muito pelo romance entre ele e uma fêmea com a qual foi visto algumas vezes. Pouco antes de ser atropelado, foi avistado com ela e um filhote pelas ruas da cidade. Seria seu? Muito provável, mas isso só pode ser confirmado por análise genética do filhote em comparação com a de Duro-de-Matar. Quem sabe ele deixou um herdeiro…

Mais certo, por ora, é que ele deixa um legado de aprendizado sobre a convivência entre o ser humano e os animais em ambiente urbano. 

“Nós, pesquisadores, aprendemos a questão da proximidade da população com a espécie, pois a nossa tendencia é sempre achar que é deletério, que é ruim. Claro que não é uma situação ideal, não é o habitat para um animal silvestre, mas temos, aqui, a história de animal avistado pela população, que criou uma conexão com as pessoas devido à frequência com que aparecia”, salienta Patrícia.

“As pessoas conhecerem melhor esse animal, saberem mais sobre ele, se importarem com ele, com a causa da conservação e serem movidos a fazer algo em benefício da sobrevivência dessa espécie, é uma grande oportunidade para todos nós”.

E continua: “Aprendemos a ceder um pouco na exigência de que o animal precisa estar no ambiente natural, em benefício de ter essa conexão que é tão necessária entre nós, seres humanos, e a natureza”. 

Patrícia também destaca o aprendizado proporcionado por Duro-de-Matar em relação ao uso do espaço. Pudemos analisar as áreas que ele utilizava: “Áreas verdes? Áreas em regeneração? Áreas próximas à água? Áreas mais movimentadas? Ou menos? Acompanhamos a expansão de sua área de vida e, agora, não podemos mais saber o que aconteceria no futuro. O fato é a área dele estava se expandindo, ele estava explorando e indo cada vez mais longe”.

Por fim, ela comenta sobre a riqueza da pesquisa sobre a saúde do Duro-de-Matar e das outras antas. Até agora, o projeto capturou seis, contando com ele, que foi capturado três vezes; em dezembro, foi a última, quando o colar de GPS foi retirado por estar machucando. Ele estar sem colar quando foi atropelado. 

As outras antas são três adultos, um deles macho, batizado como Morgado, duas fêmeas e duas antas jovens, uma ainda filhote, “uma melancia” (denominação dada devido às pintas na pele, características dos bebês). 

“Fizemos quatro capturas, coletamos uma série de amostras de material biológico e, também, temos um bom panorama com relação à saúde dessa anta e de outras que a gente capturou nos ambientes urbanos e periurbanos. Pudemos inclusive analisar a questão da toxicologia, da contaminação pelo agroquímicos e por metais. Ele nos ajudou muito”. 

Duro-de-Matar, anta símbolo de Campo Grande (MT), amada pelos moradores, morre atropelada na BR-163
Duro-de-Matar analisado pelas pesquisadoras em sua segunda captura
Foto: Raquel Alves
/ INCAB-IPÊ

Antas Urbanas e os próximos passos

Agora, sem Duro-de-Matar, o projeto já tem algumas linhas de atuação definidas para intensificar o trabalho. A primeira diz respeito a restabelecer um grid mais sistematizado de armadilhas fotográficas (câmeras trap) pela cidade, “de forma a monitorar os animais de maneira um pouco mais próxima, em pontos que a gente já detectou que existe a maior presença de antas. Armadilhar com câmeras é a melhor estratégia para identificar quantos indivíduos vivem na cidade”, explica Patrícia.

Ela conta, também, que amanhã, sábado (22/2), será realizada uma reunião com moradores de uma região relativamente rural da cidade, em uma das bordas de Campo Grande, uma zona periurbana  onde existe bastante anta. “Temos muito interesse em monitorar esses animais e um dos meios mais eficazes é intensificar a atuação da Ciência Cidadã”. 

A pesquisadora ainda destaca que a equipe também quer intensificar a participação popular com as pessoas que fazem parte do grupo no Whatsapp, envolvendo-as nas atividades do dia a dia do projeto.

Por fim, Patrícia diz que existe uma demanda grande por educação ambiental e que, “apesar de não termos uma pessoa especializada nessa área”, a equipe quer promover algumas intervenções “como a gente fez no passado, nos anos de 2021 e 2022, na cidade, para envolver o publico infantil e infanto-juvenil”. 

Um problema crônico, até quando? 

A morte de Duro-de-Matar trouxe tristeza, mas também revolta devido a um problema crônico das rodovias do Mato Grosso do Sul: as colisões veiculares com fauna. 

Monitoramento realizado pela INCAB-IPÊ, há sete anos, demonstrou que 100 antas são atropeladas anualmente nas rodovias do estado. Além do impacto óbvio para a biodiversidade, esse número também representa, ao menos, 100 vitimas humanas envolvidas nos atropelamentos de animais de grande porte. 

Onça-pintada vitima de atropelamento na BR-262, a ‘rodovia da morte’,
no MS, no final de janeiro, periodo em que Duro-de-Matar tambêm morreu
Foto: Polícia Ambiental

Duro-de-Matar tinha mais de 100 quilos, mas uma anta pode chegar at 250-300 kg e uma colisão com um animal desse porte resulta em acidente grave que ainda pode ocasionar perdas humanas, materiais e financeiras. O levantamento da INCAB-IPÊ identificou que, nos últimos doze anos, 50 pessoas morreram nas rodovias do estado devido a colisões com antas. 

Vias seguras para a fauna e para os usuários é um direito previsto em lei e cabe aos gestores dos governos e dos empreendimentos aplicarem medidas mitigatórias efetivas. 

Estudos científicos e especialistas em ecologia de estradas comprovam e não cansam de alertar que as passagens de fauna, associadas com cercamento adequado da via, podem diminuir o número de colisões veiculares com fauna em até 80%. 

Enquanto a implementação de medidas mitigatórias efetivas não for feita, continuaremos perdendo biodiversidade e colocando em risco a vida dos usuários desses empreendimentos, além de ferir o direito de cada cidadão de ter acesso a vias seguras.

____________

Acompanhe o Conexão Planeta também pelo WhatsApp. Acesse este link, inscreva-se, ative o sininho e receba as novidades direto no celular.

Foto (destaque):INCAB-IPÊ / divulgação

Comentários
guest

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Notícias Relacionadas
Sobre o autor