A bióloga e doutora em Ecologia Juliana Terra vive em Bonito, no Mato Grosso do Sul, e há oito anos acompanhava a sucuri-verde gigante conhecida como Ana Júlia (ou vovózona, por ser a maior da região) e famosa no mundo inteiro.
Conhecia a sucuri como ninguém. Ficou muito abalada com sua morte e com a possibilidade de que tivesse sido vítima de crime: alvejada por tiros, como contaram os guias de turismo que a encontraram boiando no rio Formoso, em 24 de abril. E, em nenhum momento, duvidou disso.
Aliás, ninguém duvidou, por isso essa história se espalhou tão rapidamente. “Por se tratar de serpente, esses ataques são tão comuns, tão corriqueiros, tão banalizados, e nunca há investigação, ninguém nunca é responsabilizado. Por isso, ninguém duvidou que ela teria sido agredida dessa forma”, explica Juliana.
Junto com a Polícia Militar Ambiental (PMA) e a Polícia Civil do MS, em 26 de março, a bióloga examinou o corpo da sucuri e confirmou o resultado inicial da perícia, já divulgado: não havia perfurações, portanto, ela não foi assassinada a tiros.
Como ainda havia suspeita de que ela pudesse ter sido agredida de outra forma, a polícia a levou para o Instituto de Criminalística (IC) do MS para mais exames. No início desta semana, saiu o lado preliminar: ficou provado que ela não morreu de forma violenta.
O objetivo da polícia foi cumprido: “Não foi encontrado nenhum indício de morte causada por seres humanos, nenhum tiro, nenhum tipo de injúria externa, os ossos da cabeça estavam íntegros”, conta a bióloga.
Na ocasião da divulgação do laudo, Emerson Lopes dos Reis, perito criminal e diretor do IC do MS, ao divulgar o laudo declarou: “Ela não foi acometida por morte violenta e, diante disso, resta como causa natural a morte desse animal” (leia no site do órgão). No entanto, ainda é cedo para falar em morte natural.
Um pouco mais sobre a avó das sucuris de Bonito
Entrevistei a pesquisadora Juliana Terra para saber mais detalhes sobre a morte, a personalidade e a fama de Ana Flávia, que se tornou conhecida no país e no mundo não só por ser uma das maiores sucuris que habitavam o planeta, mas também por ter protagonizado documentários e ensaios realizados por profissionais do Brasil e diversos países.
Nesta conversa, que você acompanha a seguir, ela também fala de peculiaridades da espécie e comenta a reação inesperada do público – “surpreendente em se tratando de uma serpente” – que tomou conta das redes sociais com a morte da “avó das sucuris de Bonito”.
Quando você conheceu Ana Júlia e começou a acompanhá-la? Que idade ela tinha nessa época?
Conheci Ana Julia há oito anos, quando iniciava minha pesquisa de doutorado, já que uma parte dela avaliava questões relacionadas à história da sucuri verde de vida livre na região de Bonito.
Naquela época, ela já era gigante, pouco menor do que era quando morreu, mas é difícil saber sua idade exata. Isto porque a taxa de crescimento de serpentes de vida livre depende de muitas variáveis, que vão da frequência de alimentação, questões relacionadas à temperatura, a própria genética, entre outras. Então não dá para saber.
Quanto tempo uma sucuri gigante pode viver livre na natureza? Encontrei informações díspares: 30 anos, 10 anos… E quando atinge sua maturidade sexual?
Não sabemos [pesquisadores] com exatidão quantos anos uma sucuri vive na natureza. Isto é algo que ainda precisa ser avaliado. Quanto à maturidade sexual é possível estimar: machos a atingem por volta de cinco anos, e fêmeas por volta de sete anos.
Quando soube da morte de Ana Júlia, você não duvidou que ela teria sido baleada e lamentou que ainda poderia ajudar a povoar a região. Mas, após examiná-la no local da morte, declarou que a causa da morte poderia ser natural. Pode comentar?
Eu falei sobre sua saúde levando em consideração que ela teria sido morta a tiros. Quando um animal tem a vida ceifada por um ser humano, tem seu processo natural interrompido.
Além disso, a Ana Julia foi filmada algumas semanas antes de morrer e aparentava ter comportamento normal, saudável, não havia nada que levantasse qualquer suspeita de que poderia estar doente.
Mas eu expliquei, na ocasião, que ainda iria a campo para avaliar a situação pra entender se ela teria sido realmente morta a tiros ou não.
Estive no local para avaliar, quando a PMA estava fazendo a perícia. Eu estava junto, presente, e realmente não foi encontrado qualquer indício de tiro, nenhuma injuria externa no animal.
Na ocasião, foram coletadas amostras para avaliar melhor se havia evidência de morte causada por humanos ou outro tipo. Como a hipótese de morte violenta foi descartada, podíamos levantar outras hipóteses para esse animal ter vindo a óbito. Inclusive morte natural.
Ana Júlia tinha diversas marcas brancas pelo corpo, inclusive na cabeça, o que levou os guias a deduzirem que teria sido baleada. Ela estava machucada?
É super comum as sucuris, especialmente as fêmeas gigantes, apresentarem uma série de cicatrizes e marcas pelo corpo. Todas elas têm cicatrizes. Isso por conta da luta com as presas das quais se alimentam.

Foto: Thiago Mendonça/Instituto de Criminalística do MS
As sucuris gigantes costumam comer animais de grande porte como capivaras, jacarés e porcos, que se defendem, mordem e acabam machucando de alguma forma. Por isso, a maioria tem essas marcas.
A polícia divulgou laudo em 1º de abril afirmando que ela não foi vítima de violência e praticamente encerrando o caso, de forma que o primeiro site a divulgar a notícia, com exclusividade, chegou a declarar “Fim do Mistério!”. Mas ainda há outra hipótese para a morte de Ana Júlia, não?
O objetivo da polícia era avaliar se houve crime causado por humanos contra a sucuri. Esse era seu objetivo e foi cumprido. Portanto, não é responsabilidade da polícia declarar, neste momento, que a morte foi natural ou de outro tipo. Sua investigação está encerrada.
Por outro lado, é fato que há substâncias tóxicas em alguns rios de Bonito, inclusive no Formoso, onde vivia Ana Júlia. Devido a isso, quando estive com os peritos no local da morte para examiná-la, coletei tecido de seu corpo, que ficou de posse deles.
Agora, não é de sua competência prosseguir com essa investigação. Agora, isso compete a nós, pesquisadores. Então, vou entrar com pedido de custódia desse material para poder fazer a análise e avaliar se há algum indício de contaminação. Precisamos ir até o fim, por ela.
Ana Júlia era um ícone, um símbolo de Bonito. Conhecida dos locais, de turistas brasileiros e estrangeiros, todos ficavam fascinados com ela. Você pode discorrer a respeito de sua existência, de sua personalidade, de seu comportamento e de sua “fama”? Como você a via?
Ana Júlia era um animal muito tranquilo, calmo. Não era arisca. O que se vê nas filmagens e em fotos é aquilo mesmo [assista ao vídeo produzido pelo documentarista Cristian Demétrius, no final deste post]. Muito fácil de se observar.
Tinha a área de vida dela, gostava de se abrigar sempre nos mesmos lugares, gostava de tomar banho de sol no barranco do rio sempre nos mesmos lugares, o que facilitava muito para os turistas. Era fácil encontrá-la.
A gente sabe que o turismo de observação de animais de vida livre é muito importante para a conservação. Ainda mais quando a gente fala de uma espécie em torno da qual existe muita informação falsa, como as serpentes. Foi construído um imaginário popular que não corresponde com a realidade desses animais.
Então, o contato pela observação a uma distância segura e respeitosa, contribuía muito para desmitificar as sucuris. Isso é muito importante quando a gente fala de conservação.
Ela já tinha virado um ponto turístico na região. Todo mundo a conhecia e gostava. Os turistas vinham e queriam vê-la e observá-la. Isso é algo que contribui muito positivamente para a espécie.
E ela contribuiu muito para a ciência também. Existem muito poucos trabalhos com sucuri de vida livre. Por ser um pouco mais difícil observar esses animais devido a uma serie de características.
Então, com seu jeito, ela contribuiu muito nestes últimos oito anos para a gente compreender melhor sobre a biologia da espécie. Registrei alguns eventos reprodutivos dela, algumas gestações, os filhotes e grande parte de sua vida. Só tenho a agradecer por tudo que Ana Júlia nos proporcionou durante sua vida. Por todo impacto (bom) que ela causou.
Por fim, comente a comoção que a morte de Ana Júlia causou e o que fica deste caso. O que você diria a todos que se comoveram com sua morte para honrar sua existência?
Confesso que fiquei bastante surpresa com a proporção que essa morte tomou, com a indignação das pessoas porque a gente, que trabalha com serpente, está acostumada a ver desprezo e a muitas sucuris morrerem por ataques de humanos. A gente acaba sofrendo sozinha, na maioria das vezes.
Mas a comoção por essa sucuri tão especial foi bastante interessante de ver. Parece que as pessoas compreenderam que esses animais têm o direito de existir, o direito de viver no ambiente em que nasceram e devem ocupar aquele ambiente e serem respeitadas. Sua existência deve ser respeitada.
Então, ver um movimento nessa direção foi muito interessante pra mim. Deu até uma esperança de que pode ser possível uma coexistência pacífica entre os animais e o ser humano e mostrou que as pessoas estão mais atentas aos crimes ambientais. Estão mais atentas e não vão mais deixar passar, tem uma compreensão de que os animais têm o direito de existir e de serem respeitados.
Eu diria para as pessoas que se comoveram com a morte da Ana Júlia para nunca deixarem de se comover, nunca deixarem de se indignar.
Ana Julia não foi morta a tiros, mas isso é muito comum de acontecer, diariamente. Uma série de outros animais é morta por seres humanos de diversas formas. Então, que essas pessoas nunca deixem de exigir a responsabilização dos culpados!
A gente tem uma legislação para isso no Brasil. Ela deve ser seguida e cabe às pessoas cobrarem e se sensibilizarem nesses casos. Isso é muito importante porque esses animais não têm voz. A voz deles somos nós que temos que exigir responsabilização e que as coisas sejam feitas da forma correta.
Eu também espero que o caso da Ana Júlia sirva pra desmitificar a imagem que foi criada sobre esses animais. Eles não são monstros, não são do mal, são apenas animais que estão vivendo a vida deles no ambiente em que nasceram, desempenhando suas funções ecológicas, contribuindo para o equilíbrio do ecossistema em que vivem.
A seguir, assista ao video produzido pelo documentarista Cristian Dimitrius que revela a tranqüilidade de Ana Júlia, descrita pela bióloga Juliana Terra.
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Foto (destaque): Cristian Dimitrius