Em 27 de dezembro de 1831 o então estudante de 22 anos, Charles Darwin, embarcou no navio HMS Beagle. Durante os próximos cinco anos de sua vida, o britânico participaria de uma jornada ao redor do globo que mudaria não apenas a sua vida, mas a história da Biologia. Em 1859, o naturalista lançaria um dos mais famosos livros científicos da história, “A Origem das Espécies”, em que apresentava a teoria da evolução das espécies por meio da seleção natural. Quase 200 anos depois da emblemática expedição, a bordo do Captain Darwin, o documentarista francês Victor Rault, de 32 anos, está seguindo a mesma rota feita pelo pesquisador.
Pelos próximos quatro anos, Rault planeja reencontrar as espécies vistas pelo naturalista e que o ajudaram a escrever sua obra. Ele usa como guia outro livro, “A viagem do Beagle”, uma diário de anotações de Darwin, publicado em 1839. O documentarista quer ter uma ideia do status de conservação atual desses animais com o do passado. Além disso, também pretende conhecer projetos de preservação ambiental em todas as paradas para, ao final da empreitada, espera, conseguir entender quais são as iniciativas mais bem-sucedidas para proteger a fauna do planeta.
Rault embarcou rumo à aventura em 12 de setembro do ano passado. Assim como Darwin, partiu de Plymouth, na Inglaterra, para dar o pontapé inicial da viagem. De lá seguiu para Cabo Verde, onde fez mergulhos para ver de perto os polvos mencionados pelo britânico.
E o próximo destino foi a América do Sul, mais especificamente o Brasil. Ao lado de sua equipe, o francês – que esbanja simpatia e bom humor – aportou inicialmente em Recife e dali seguiu nos dias seguintes para Bahia, Rio de Janeiro e Paraná.
Em terras baianas foi ver a preguiça, na região de Búzios a formiga e no litoral paranaense, o guará. Apesar de Darwin não ter ido a esse estado, o documentarista decidiu parar na Baía de Guaratuba para conhecer de perto o trabalho de proteção e monitoramento dessa ave cor vermelho escarlate feito pelo Instituto Guaju (leia mais aqui).
Chegada ao Brasil: bandeira verde e amarela no barco
Antes de seguir para o Uruguai, a etapa seguinte da jornada, conversei por vídeo com Rault e ele me contou mais sobre o projeto Captain Darwin. A entrevista você confere a seguir:
Como surgiu a ideia para a viagem?
Já faz dez anos que trabalho como documentarista e produtor, especialmente na área de biodiversidade e meio ambiente. Mas depois de viajar para muitos lugares, como os Estados Unidos e diversos países na Europa e na África, algo começou a me incomodar e achei que estava passando muito tempo em aviões. Queria poder ajudar as pessoas a interagir melhor com a natureza e repensar a nossa relação com o meio ambiente. Foi quando eu estava então a trabalho na ilha de Moorea, na Polinésia Francesa, e no tempo livre eu li “A viagem do Beagle”, que simplesmente amei. Darwin esteve lá e descreveu o lugar no livro e eu fui tentando perceber o que tinha mudado da época dele para os dias atuais.
E foi quando fizemos uma filmagem em recifes de corais e percebemos os impactos da sobrepesca, da poluição, do turismo e da crise climática sobre eles é que comecei a entender a mudança desde o tempo de Darwin.
Foi aí que surgiu a ideia para o projeto Captain Darwin. Se essa comparação fazia sentido em um lugar, na Polinésia Francesa, certamente se aplicaria a outras partes do mundo.
Rault, ao lado da placa que marca o local da partida de Darwin do Reino Unido
Qual é o principal objetivo do projeto?
É uma investigação global sobre a biodiversidade e a maneira que ela mudou desde a época de Darwin até hoje, mas também sobre as ações dos cidadãos para evitar a destruição de ecossistemas e preservar o meio ambiente.
Serão quatros anos ao redor do mundo?
Sim, porque para poder produzir vídeos e um bom documentário é necessário criar boas relações com as pessoas e para entender mais sobre as espécies de cada uma das paradas preciso de tempo também.
A rota será exatamente a mesma feita por Darwin?
Basicamente a mesma, mas farei algumas paradas extras quando houver algum programa de conservação interessante, como foi o caso do guará, em Guaratuba. O projeto é fantástico, fascinante.
Você já tinha visto ou lido sobre o guará antes?
Não. Foi incrível! Foi o mesmo tipo de emoção que tive quando vi um polvo no mar ou a preguiça numa árvore. Estar perto de animais selvagens para mim é mais do que uma paixão. Não consigo explicar o sentimento que tive, por exemplo, quando vi uma baleia no Ártico. É algo muito louco! Você sente uma conexão com esses animais.
Estar no dormitório dos guarás, com milhares de aves voando, no pôr-do-sol, foi realmente lindo.
E por que você decidiu ver a preguiça na Bahia?
Escolhi essa espécie porque Darwin descobriu o fóssil de uma preguiça gigante quando estava no Uruguai. A Megatherium americana tinha quase dez vezes o tamanho de uma preguiça atual, chegando a pesar até 4 toneladas. Descobrir esse fóssil e perceber as semelhanças marcantes com espécies como a preguiça, o tamanduá e o tatu foi uma observação-chave que levou Darwin à ideia de um ancestral comum e, portanto, à Teoria da Evolução.
A Megatherium americana:
semelhanças com a preguiça, o tatu e o tamanduá
Você já tinha visto uma preguiça ao vivo antes?
Nunca. E tive a mesma sensação daquela que senti ao ver o guará pela primeira vez ou uma baleia. É realmente emocionante e mostra aquilo que Darwin sempre pregou sobre a conexão do ser humano com a natureza e cada animal e planta do planeta e como temos uma relação com cada ser da Terra. E quando você encontra um novo animal pensando nisso, é como encontrar um parente distante.
E no caso da preguiça, há uma sensação muito grande de empatia devido à toda ameaça enfrentada pela espécie provocada pelo desmatamento. Quando você vê esse animal, tão tranquilo, comendo folhas vagarosamente, e não muito longe dali há o barulho de máquinas, um tipo de agressão, há um sentimento de tristeza.
Encontro com a preguiça:
empatia e preocupação com o futuro da espécie
Qual foi a próxima parada no Brasil?
Seguimos para Ilhéus, onde conhecemos e documentamos o Programa Arboretum, um projeto governamental fantástico de restauração florestal com espécies de árvores e plantas da Mata Atlântica. Porque em todas as minhas paradas, quando encontro com especialistas de espécies, como foi o caso da preguiça como o pesquisador Gaston Giné, na Praia do Forte, pergunto a eles sobre como eles veem o futuro daquele animal em 200 anos – na hipótese de alguém, como eu, refazer a rota de Darwin novamente daqui a dois séculos.
Para Giné, há muita pouca esperança para o futuro da preguiça porque ela está muito ameaçada pelo desmatamento. Ele acredita que ela pode estar extinta em 30 ou 40 anos, e por isso achei importante conhecer esse projeto de reflorestamento e conservação.
Da Bahia o Captain Darwin navegou para Búzios, certo?
Sim, fomos conhecer duas espécies de formigas-cortadeiras dos gêneros Atta (saúvas) e Acromyrmex (quenquéns), que Darwin descreve como achá-las nas floresta em seu livro. Elas sempre usam o mesmo caminho para levar as folhas das árvores para as colônias e nesses caminhos depositam uma substância que impede que a vegetação volte a crescer ali. É muito legal de ver!
Na verdade as formigas não comem as folhas. Elas as levam para dentro da colônia para fazer com que fungos cresçam e é deles que elas se alimentam.
E até agora, foi a primeira vez que documentamos uma espécie que está com uma população muito maior atualmente do que nos tempos de Darwin. Acontece que o habitat dessas espécies são as florestas da Mata Atlântica, mas elas se reproduzem muito melhor em ambientes abertos, como lavouras, e com o desmatamento e a expansão agrícola, elas viraram uma praga.
Um de nossos encontros foi com o pesquisador Richard Samuels, da Universidade Estadual Norte Fluminense, que está tentando desenvolver um método sustentável, sem uso de substâncias químicas, para fazer o controle das formigas.
A formiga-cortadeira:
cientistas buscam controle natural do inseto
Darwin esteve em Búzios?
Não exatamente, mas quando o HMS Beagle aportou no Rio de Janeiro ficou ali durante duas semanas e a tripulação explorou a região, indo até o norte do estado do estado e hoje existe uma trilha chamada de “Caminhos de Darwin”.
E ao final dos quatros anos de viagem do Captain Darwin, o que você planeja ter em mãos?
Planejo escrever um livro, contando sobre a viagem e minhas aventuras, as diferentes espécies que observei, os cientistas com quem encontrei e também, sonho em encontrar um denominador comum entre os diversos projetos de conservação que conheci e apontar qual seria a melhor solução para a proteção de certas espécies ou algum tipo de problema ambiental e fazer com que essas estratégias possam ser replicadas onde se fazem necessárias.
Ao visitar cada um desses projetos, estou tentando entender o que faz eles serem bem-sucedidos. Até este momento já notei que é muito importante ter uma linguagem comum entre pessoas de áreas muito diferentes, como cientistas, políticos e a sociedade em geral. Muitas vezes, programas de conservação não têm bons resultados porque esses três atores não conseguem interagir ou se comunicar da maneira mais relevante.
O Captain Darwin velejando no mar
Também planejo ter um documentário – Planeta 2222 -, em que mostrarei a viagem do Captain Darwin e tentarei mostrar um cenário de como nosso planeta parecerá em 200 anos, quando nossos netos, bisnetos e tataranetos viverão nele. Meu objetivo é prever com o mundo será se decidirmos agir, como uma comunidade global, agora e não esperarmos até que todas as espécies sejam extintas.
O que está faltando para que não deixemos essas espécies desaparecerem?
Precisamos redefinir nossa relação com a natureza e nos encantarmos novamente com ela.
Abaixo o divertido vídeo em que Rault conta mais sobre o seu projeto:
Fotos: divulgação Captain Darwin