A vida selvagem que ainda pulsa na Baía de Guanabara

Quando os portugueses chegaram ao Rio de Janeiro, por volta de 1500, se depararam com uma baía, que na época, foi confundida com a foz de um rio. Descobriram, logo depois, com os índios temiminós, que aquela não era uma foz, mas uma exuberante baía oceânica, cheia de vida, rica em fauna e flora.

A entrada de mar foi batizada então pelos colonizadores de Baía do Rio de Janeiro, porque o calendário marcava o primeiro mês do ano. Do tupi-guarani veio o nome pela qual ela se tornou realmente conhecida: gwa (baía, enseada),  (semelhante) e ba’ra (mar), a baía semelhante ao mar.

Durante muitos séculos, a Baía de Guanabara foi um santuário da biodiversidade dos trópicos. Seus mangues, florestas alagadas, rios e águas oceânicas eram habitat de centenas de espécies, como botos, tartarugas-marinhas, caranguejos, aves e até baleias-franca, que no passado, em sua rota migratória, faziam parada obrigatória por ali.

Todavia, anos depois, a urbanização e o crescimento desenfreado do estado do Rio de Janeiro foram responsáveis por jogar toneladas de lixo e poluição na Baía de Guanabara. Mas o que o trabalho dos biólogos do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) tem revelado é que mesmo com toda sujeira e perda de habitat, centenas de espécies de animais ainda sobrevivem na região.

A maior parte destes animais está em duas Unidades de Conservação (UCs), remanescentes da baía original: a Área de Proteção Ambiental de Guapi-Mirim e a Estação Ecológica de Guanabara. Nelas foram registradas mais de 450 espécies: 242  de aves, 167 de peixes (sendo 81 marinhos e 86 fluviais), 34 de répteis e 32 de mamíferos. Os dados são resultado do primeiro censo realizado no local, um projeto que começou em 2008.

“As unidades de conservação estão situadas no fundo da Baía de Guanabara, região metropolitana do Rio de Janeiro, abrangendo parte dos municípios de São Gonçalo, Itaboraí, Magé e Guapimirim”, explica Mauricio Barbosa Muniz, analista ambiental do ICMBio.

Devido à enorme variedade e quantidade de animais presentes nas UCs, elas estão sendo chamadas de “Arca de Noé”. “Grande parte da biodiversidade original da Baía de Guanabara ainda é encontrada dentro dos limites da reservas de Guapi-Mirim e Guanabara. Infelizmente, por causa da poluição e degradação, as demais áreas da baía já não mais apresentam tal biodiversidade”, afirma Muniz.

A despoluição da Arca de Noé se deve aos esforços de conservação e monitoramento constante das UCs, administradas pelo ICMBio. Outro fator importante para as áreas terem se mantido preservadas é que seus rios passam por cidades menos povoadas, ou seja, estão menos sujeitos a receber grandes  quantidades de esgoto e detritos.

Durante a realização do censo, não só foi constatada a melhora na qualidade da água de rios e mangues na Arca de Noé, como foram notados também o aumento da população de peixes e répteis, além da enorme abundância de aves: biguás (que aparecem na linda imagem que abre este post), pato-do-mato, biguatinga e outras espécies migratórias do Hemisfério Norte, tais como trinta-reis-de-bando e trinta-reis-real. “Percebemos um crescimento no número de indivíduos e da reprodução de várias espécies”, confirma o biólogo.

As boas condições das áreas preservadas são muito importantes ainda para impulsar a economia local, sobretudo, a pesqueira. Estima-se que mais de 2 mil famílias vivam da comercialização de peixes e crustáceos, de alto valor comercial, que encontram-se nas águas da região, entre eles, tainhas, corvinas, robalos, camarões, siris e caranguejos.

Desconhecida por muitos, a Arca de Noé é de extrema importância para a conservação ambiental deste pedaço da baía, alertam os especialistas do ICMBio. Do mesmo modo, é fundamental a despoluição do resto da Guanabara, algo que foi prometido pelo governo estadual para os Jogos Olímpicos, em 2016, mas infelizmente, nunca executado.

Espécies ameaçadas de extinção na Baía de Guanabara

Apesar da boa notícia sobre a vida selvagem que ainda pulsa nas Unidades de Conservação de Guapi-Mirim e Guanabara, há também um alerta importante sendo dado pela equipe de biólogos do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade: algumas espécies correm o risco de desaparecer da baía fluminense.

Uma delas é o boto-cinza. Em 1985, quando começaram os estudos na região, eles eram 400 indivíduos. Hoje restam pouco mais de 30. “Os botos-cinza são animais topo de cadeia do ecossistema marinho da Baía de Guanabara, ou seja, nos indicam como anda a saúde de todo este ecossistema para sua sobrevivência”, explica Mauricio Barbosa Muniz. “A poluição de origem doméstica e industrial, bem como o intenso uso portuário e industrial da baía, são os principais responsáveis pela quase extinção dos botos-cinza”.

A vida selvagem que ainda pulsa na Baía de Guanabara

Outras espécies também em perigo são o gato mourisco (um felino de pequeno porte) e a lontra. “Nossa esperança é que tal como a Arca de Noé, após a despoluição de toda a Baía de Guanabara, a biodiversidade local se reestabeleça”, diz o biólogo do ICMBio.

Especialistas afirmam que a despoluição total da baía pode levar mais de 20 anos. Outros países já limparam seus rios e lagos, depois de os usarem por séculos como esgoto a céu aberto. É o caso, por exemplo, do Tâmisa, em Londres, e do Sena, em Paris. Se eles conseguiram, o Rio de Janeiro também pode. Basta vontade, esforço político e pressão por parte da população.

Outra lição que fica do trabalho feito pelos biólogos cariocas é que, as futuras gerações só terão oportunidade de conhecer e conviver com algumas espécies da vida selvagem, caso mais áreas sejam declaradas como unidades de conservação. Esta é uma ferramenta vital para garantir a sobrevivência e chance de reprodução de animais e plantas, tanto nativos do Brasil, como aqueles que usam o país como parada migratória.

Abaixo, seguem fotografias feitas pela equipe do ICMBio nas áreas da Arca de Noé. Dá para se ter uma pequena noção da beleza com que os colonizadores portugueses se depararam quando chegaram ao Rio de Janeiro e que os índios, com sua grande sabedoria, sabiam preservar e valorizar.

A vida selvagem que ainda pulsa na Baía de Guanabara


Fotos: Gabriel Mello e Daniel Mello

Deixe uma resposta

Suzana Camargo

Jornalista, já passou por rádio, TV, revista e internet. Foi editora de jornalismo da Rede Globo, em Curitiba, onde trabalhou durante 6 anos. Entre 2007 e 2011, morou na Suíça, de onde colaborou para publicações brasileiras, entre elas, Exame, Claudia, Elle, Superinteressante e Planeta Sustentável. Desde 2008 , escreve sobre temas como mudanças climáticas, energias renováveis e meio ambiente. Depois de dois anos e meio em Londres, vive agora em Washington D.C.