Verdades e mitos sobre as vacinas contra a COVID-19

Verdades e mitos sobre as vacinas contra a COVID-19

Estamos chegando ao fim de 2020 com números assustadores. A pandemia da COVID-19, que do dia para a noite colocou o planeta em choque e profissionais de saúde diante de um vírus completamente desconhecido, extremamente contagioso e letal, já tirou a vida de 1,7 milhão de pessoas e contaminou mais de 80 milhões.

Todavia, há uma luz no final do túnel. Em tempo recorde, em diferentes partes do mundo, cientistas e pesquisadores desenvolveram vacinas contra o novo coronavírus. Até este momento, duas delas já foram aprovadas para uso nos Estados Unidos e na Europa, a produzida pelo laboratório farmacêutico americano Pfizer, em parceria com a alemã BioNTech, e a fabricada pela companhia Moderna, também americana. Além delas, estão em uso vacinas na China e na Rússia.

Nas últimas semanas vários países já começaram a vacinação de suas populações. O Reino Unido foi o primeiro no continente europeu, seguido pelos Estados Unidos. Na América Latina, Chile, Argentina e México iniciaram a imunização.

O Brasil ainda está em compasso de espera pela aprovação de duas vacinas, a Coronavac, da chinesa Sinovac, que em nosso país tem a parceria com o Instituto Butantan, de São Paulo, e a da Universidade de Oxford, junto com a farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca, que tem acordo com a Fudanção Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Mas infelizmente, há muita desinformação e fake news sendo disseminadas pela internet e pelas redes sociais em relação à vacinação contra a COVID-19.

Para esclarecer as dúvidas de nossos leitores e tantos outros brasileiros, entrevistamos uma das maiores especialistas do país no assunto, a médica infectologista e epidemiologista Cristiana Toscano.

A professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), é membro do Grupo Técnico Assessor para vacinas (TAG) da Organização Pan-americana da Saúde (Opas) e também, membro do Grupo de Trabalho de Vacinas para COVID-19 do Grupo Estratégico Internacional de Experts em Vacina e Vacinação (Sage) da Organização Mundial da Saúde (OMS) – ela é a única brasileira a fazer parte desse grupo.

Abaixo, nossa conversa:

Nunca antes na história da ciência vacinas foram desenvolvidas em tempo tão rápido. Por esta razão, muitas pessoas estão desconfiadas, colocam dúvidas se seriam realmente seguras. O que você tem a dizer para estas pessoas?
Na verdade, estamos nos beneficiando de dois processos muito importantes que agilizaram o processo de desenvolvimento das vacinas contra a COVID. Primeiro, havia muitos grupos de pesquisa que já estavam estudando vacinas para outros tipos de coronavírus e também, em novas plataformas tecnológicas, incluindo aí as vacinas genéticas, com RNA e DNA, e de vetores virais. O segundo motivo é que estamos vendo como o financiamento intensivo articulado e coordenado em busca de um objetivo comum, como no caso das vacinas, tem um efeito muito positivo no desenvolvimento de tecnologias e foi isso que aconteceu desde o começo dessa pandemia.

A mensagem importante que eu gostaria de colocar é que esses são os motivos que permitiram que fossem desenvolvidas vacinas em uma velocidade tão rápida e que esse processo foi feito sem nenhum ônus para as etapas necessárias para a avaliação de eficácia e segurança em humanos. Nenhuma etapa de testes foi suplantada, omitida ou menosprezada. E há evidências que garantem a eficácia dessas vacinas.

Por que crianças não participaram dos testes das vacinas anti-COVID? O fator transmissibilidade foi preponderante?
De fato, os testes feitos com as vacinas não incluíram crianças, gestantes e mulheres em período de amamentação por questões de segurança. E esse é o processo habitual que seguimos para todas as vacinas e não foi diferente para a vacina contra a COVID. Primeiro é avaliado um grupo de adultos saudáveis e depois se amplia para grupos de maior risco. No caso da COVID, as crianças não eram um grupo de risco para doença grave ou morte. Mas é nesse momento agora, que estão se iniciando estudos em fases dois e três, com crianças e dentro de alguns meses deveremos ter os dados de eficácia e segurança em relação a elas também.

Não seria mais lógico vacinar apenas os 10% da população considerada grupo de risco?
Quando pensamos em estratégias de vacinação pensamos em uma série de questões, como a eficácia da vacina, a eficácia contra a transmissão, contra a infecção, contra a doença grave… O que sabemos agora é a eficácia dessas vacinas contra a doença, mas ainda não sabemos contra a infecção ou a transmissão e considerando ainda o quantitativo reduzido de ofertas de vacinas, então a priorização é para reduzir a morbidade na população. Por isso é que serão vacinadas primeiramente as pessoas com maior risco de desenvolver doença grave e morte por COVID-19 e os profissionais de saúde.

Do ponto de vista populacional, a medida que mais vacinas estejam disponíveis, é importante ampliar a imunização para outros grupos que sejam mais expostos e tenham maior risco de transmitir para outras pessoas. Lembrando que a circulação do vírus só consegue ser impactada pela vacina uma vez que uma proporção significativa da população esteja imune ao vírus. Estimativas apontam que a chamada “imunização de rebanho” represente que 60 a 70% da população tenha sido vacinada ou já tenha tido a doença, mas essa porcentagem ainda não está totalmente definida.

O vírus não irá circular pelos assintomáticos e morrer naturalmente? Ou virar o mesmo da gripe?
As evidências sugerem que esse vírus, o SARS-CoV-2, irá permanecer entre os humanos, circulando por um período mais longo de tempo, como aconteceu com o vírus pandêmico da gripe, o H1N1. Este foi um novo subtipo do vírus influenza, que foi introduzido entre os humanos, e depois passou a circular habitualmente entre a população. Então hoje em dia na vacina da gripe que a gente toma anualmente, tem a vacina contra o H1N1. Acreditamos que será o mesmo com o coronavírus. Ele passou a infectar a população, extremamente suscetível a ele, porque era um vírus novo, que cruzou a barreira de animais para humanos. E quem não se vacinar continuará sendo suscetível a ele.

Já se sabe qual o tempo de proteção ao vírus para as pessoas vacinadas?
As evidências dos ensaios clínicos de fase 3 obtidos recentemente consideram dados de eficácia bastante alta da vacina quando realizada a avaliação de pelo menos dois meses após a vacinação com as duas doses preconizadas pelo esquema vacinal. Entretanto, a real duração dessa proteção será avaliada através do acompanhamento dos indivíduos participantes nos ensaios clínicos ao longo do tempo.

Por serem produzidas com RNA mensageiro, as vacinas da Pfizer e Moderna podem alterar o código genético das pessoas vacinadas?
A vacina de RNA é composta por um RNA mensageiro, que na verdade é uma sequência genética que codifica a produção de uma proteína, que estimula a produção de anticorpos neutralizantes contra o vírus. Este é o objetivo do RNA mensageiro e por isso que ele compõe a tecnologia dessa vacina inovadora.

Mas é importante ressaltar que a vacina de RNA não altera código genético humano! O RNA permanece no citoplasma e não entra no núcleo de nenhuma célula humana, onde fica o nosso DNA. Além disso, ele se degrada rapidamente no citoplasma após a codificação dessa proteína.

Então esses rumores de que a vacina de RNA pode alterar o código genético são fake news, completamente infundados.

Insulina e hormônio de crescimento também não são feitos com material geneticamente modificado?
De fato, insulina, hormônio de crescimento, outras vacinas e diversos medicamentos são feitos utilizando partículas de material genético ou organismos geneticamente modificados, e usados há muito tempo, com segurança. E especialmente essas vacinas para COVID de RNA e DNA evoluíram de pesquisas de vacinas genéticas para câncer, que já são estudadas há mais de duas décadas e com resultados bastantes positivos e promissores. Então é uma tecnologia bastante inovadora e que abre uma nova possibilidade para o desenvolvimento de vacinas para outras doenças no futuro.

É verdade que a vacina da Pfizer pode provocar choque anafilático?
A vacina da Pfizer começou a ser utilizada no Reino Unido e nos Estados Unidos há algumas semanas e foram observadas sim algumas reações alérgicas graves, com choque anafilático. Ainda está sendo analisado qual o componente da vacina que pode ter causado a reação e por isso existe a recomendação que a aplicação seja feita em locais onde possa ser prestado um atendimento rápido no caso de um choque anafilático, já que as reações são raras, mas podem acontecer.

Pessoas alérgicas a alguns alimentos não devem tomar a vacina então?
Não. Não há nenhuma evidência científica de que indivíduos com reações alérgicas a medicamentos, alimentos, insetos, látex ou outras alergias tenham um risco maior do que qualquer outro grupo da população a ter uma reação alérgica à vacina. Então esses indivíduos devem ser vacinados normalmente. E isso é claramente reforçado na recomendação que foi feita recentemente pelo American College of Allergy, Asthma and Immunology, que publicou diretrizes internacionais específicas sobre a vacina.

As pessoas que já tiveram COVID precisam tomar a vacina assim mesmo? Por que?
Não sabemos ainda quanto dura a proteção de quem já teve a doença e existem casos de indivíduos que tiveram infecção leve ou sem sintomas terem menos anticorpos, por isso acredita-se que a vacina também possa beneficiar essas pessoas. No entanto, dada à escassez de vacinas no momento, há a questão de que seria mais sensato priorizar grupos populacionais que ainda não tiveram infecção e teriam risco maior de desenvolver doença grave e mortalidade.

Cada país está fazendo uma recomendação específica, dependendo de seu cenário, então nos Estados Unidos e no Reino Unido estão vacinando a todos, independente se a pessoa já teve infecção prévia ou não, na Alemanha os indivíduos que tiveram a infeção nos últimos três meses podem não tomar a vacina e deixar para mais tarde.

Quais são os principais sintomas relatados pelos voluntários que já tomaram as vacinas em testes?
Os principais eventos relatados são dor, vermelhidão e inchaço no local da aplicação da vacina, mas também dores musculares, um quadro de cansaço e dor de cabeça. Mas na grande maioria são sintomas brandos e que ocorrem com várias outras vacinas também.

Algumas pessoas temem que ao tomar a vacina elas podem contrair o coronavírus? Como responder a essa dúvida?
Isso é impossível. Temos diversos tipos de tecnologias usadas para produzir as vacinas. As já aprovadas, como a da Pfizer e da Moderna, nos Estados Unidos, são feitas, como já mencionei, com RNA mensageiro, que não é capaz de causar a infecção porque não contem o vírus. E a outra tecnologia, sendo utilizada pela vacina da Universidade de Oxford, em parceria com a Fiocruz, tem um vetor viral que introduz um material genético capaz de produzir uma proteína do vírus, mas não é o vírus. Ou seja, não é capaz de causar a doença.

Já a vacina da CoronaVac, da parceria da Sinovac com o Butantan, tem um vírus inativado, então na verdade é um vírus morto, ou seja, também não tem a capacidade de causar a doença.

Não existe nenhuma possibilidade com essas tecnologias que estão sendo utilizadas da vacina pode causar a doença ou facilitar a infecção.

Depois de se tomar a vacina, quando poderemos deixar de usar a máscara de proteção e abraçar as pessoas novamente?
Na verdade a gente não poderá deixar de usar a máscara, manter o distanciamento social e baixar a guarda depois de tomar a vacina por inúmeros motivos. Em geral as vacinas são de duas doses, o nosso corpo estará protegido do vírus uns 15 dias após a segunda dose, mas lembrando que haverá 5% das pessoas que não são protegidas pela vacina – é a isso que se refere aqueles 95% de eficácia dela -, e segundo, que a vacina protege contra a doença e não temos ainda a informação se elas protegem contra a infecção, então pode ser que mesmo tomando a vacina possamos contrair o vírus e ficar assintomáticos e daí poderíamos transmití-lo para outra pessoa.

Por último, não sabemos ainda também qual será a proteção dessa vacina. Ela foi observada por curto prazo, então não temos certeza ainda se a proteção será mantida por seis, oito, dez meses. Algumas vacinas precisam de doses de reforços ao longo dos anos para se manter a proteção e ainda continuaremos a avaliar esta questão nos estudos para poder ter esta resposta.

E ainda, por estarmos observando mutações do vírus, o que é normal, e apesar de acreditarmos que as vacinas protejam contra essas variações, então, precisamos manter as medidas de proteção.

Você acredita que será necessário tomar a vacina anti-COVID anualmente?
Ainda não se sabe, mas é o seguimento dos estudos que irá nos dizer a duração dessa proteção e a necessidade de uma nova vacina periodicamente.

É preciso tomar as duas doses da vacina do mesmo fabricante?
Sim. Até o momento não há nenhum estudo avaliando a segurança e como acontece a resposta imune ao se tomar duas doses de vacinas diferentes, lembrando que cada vacina tem uma forma diferente de estimular a resposta imune.

Se eu tomar a vacina e pegar a COVID, poderei transmitir a doença para outras pessoas?
Sim. Apesar da eficácia alta das vacinas já registradas, algumas pessoas podem não ficar protegidas e se elas pegarem a COVID poderão transmitir a doença para outras pessoas.

No caso das vacinas que requerem refrigeração altíssima e controle no transporte, validade e manipulação, em um país tropical como o Brasil, como se pode garantir todos os cuidados necessários com elas?
Existe uma série de cuidados e desafios logísticos relacionados à cadeia que precisam ser observados. É importante lembrar que se a temperatura exigida para o armazenamento das vacinas (Pfizer e Moderna) não for mantida, elas perdem o efeito. Também há um tempo máximo que essas vacinas funcionam após o descongelamento: em refrigeração de 2 a 8 graus, a da Moderna dura 30 dias e a da Pfizer 5 dias.

Então, independente de ser um país tropical ou não, toda essa logística, que não é fácil, não é rotineira e nem habitual, precisa ser estruturada e disponibilizada antes de se utilizar essas vacinas.

Por último, por que você acredita que é tão importante que as pessoas tomem a vacina?
Primeiro, eu gostaria de ressaltar que as vacinas são as tecnologias de saúde que atualmente mais salvam vidas no mundo inteiro. As vacinas são responsáveis por evitar a morte de 3 a 4 milhões de pessoas por ano. A humanidade desenvolveu muito a área de vacinas nas últimas décadas, com muita pesquisa, muito investimento e muitas inovações. E existe um processo muito, muito, muito rigoroso em relação à eficácia e à segurança das vacinas, que inclusive, é muito mais rigoroso daquele em relação a medicamentos. Até porque a estratégia de vacina é feita como prevenção porque ela é administrada em pessoas saudáveis.

Existe uma preocupação muito grande também em garantir que qualquer vacina que seja introduzida tenha um perfil de segurança e eficácia cuidadosamente avaliado porque há uma clareza muito grande de que qualquer vacina que ponha em risco o indivíduo vacinado pode comprometer anos ou décadas de trabalho de todos os programas de imunização do mundo.

Em nenhum momento, nenhum comitê ou instituição nacional ou internacional iria permitir que se fosse utilizada uma vacina sobre a qual houvesse uma mínima dúvida em aspectos relativos à segurança.

Além disso, um aspecto muito importante é que, somente através da vacinação é que de fato conseguiremos sair dessa pandemia. É um vírus que se transmite muito facilmente, ele sofre mutações, com capacidade de provocar síndromes clínicas muito variadas e com transmissão de pessoas para pessoas mesmo entre indivíduos assintomáticos. Enfim, é uma infecção muito difícil de controlar com medidas convencionais.

Minha mensagem final é ressaltar a importância da vacina e garantir que há um cuidado enorme de todos os pesquisadores, todas as instituições e comitês em acompanhar e avaliar muito criteriosamente todos os dados das pesquisas clínicas para se fazer recomendações baseadas em evidências sobre a segurança e a eficácia da vacina para todos nós.

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Fotos: Marco Verch Professional Photographer/Creative Commons/Flickr (abertura) e Cristiana Toscano/arquivo pessoal 

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Suzana Camargo

Jornalista, já passou por rádio, TV, revista e internet. Foi editora de jornalismo da Rede Globo, em Curitiba, onde trabalhou durante 6 anos. Entre 2007 e 2011, morou na Suíça, de onde colaborou para publicações brasileiras, entre elas, Exame, Claudia, Elle, Superinteressante e Planeta Sustentável. Desde 2008 , escreve sobre temas como mudanças climáticas, energias renováveis e meio ambiente. Depois de dois anos e meio em Londres, vive agora em Washington D.C.