Tribo de crianças

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A natureza sempre foi um elemento essencial na minha vida. É meu oxigênio, meu refúgio, minha motivação. Para meu companheiro, Flavio, também é assim. Nosso primeiro encontro foi ao ar livre e muitas das nossas escolhas são pautadas pelo contato com a natureza. Nossos filhos, com 8 e 4 anos, crescem brincando na natureza possível dos arredores de São Paulo. Nosso quintal é seu habitat natural e eles passam mais tempo do lado de fora de casa do que a soma de todo o tempo de telas a que têm acesso. As férias e feriados são para caminhadas, explorações e, às vezes, acampamentos.

Entretanto, Flavio e eu sempre fomos um tanto quanto solitários. Sempre fizemos nossas pequenas aventuras sozinhos, a dois ou na companhia de poucos amigos. Quando nossa filha mais velha, Raquel, nasceu continuamos a seguir esse padrão, fazendo passeios ao ar livre a três. Filha única até quatro anos e meio, esse modelo funcionou muito bem durante os primeiros anos de vida dela. Mas chegou o tempo em que o quintal ficou pequeno para seu corpo em crescimento e seu espírito ansiava pela companhia de outras crianças. Nessa época, passamos a procurar ativamente a companhia de outras famílias, e logo ficou clara para nós a importância do convívio entre as crianças durante nossos passeios e aventuras na natureza.

Em todo o mundo, as crianças sempre andaram em bando, do lado de fora. Os mais velhos liderando os mais novos, meninos e meninas de várias idades fluindo num movimento próprio, no qual os processos acontecem espontaneamente, de forma despreocupada e, ao mesmo tempo, tão rica em ideias, caminhos e sugestões. Jay Griffiths, no livro Kith – The Ridlle of Childhood, usa o termo tribo de crianças para descrever o fenômeno que ela compara a um cardume de peixes: elétrico, intenso, responsivo, oscilando em seu microcosmo autossuficiente.

A separação das crianças por idade dentro do ambiente escolar, as famílias nucleares, a diminuição do convívio com os primos, a perda da rua como território de convívio social – tudo isso contribuiu para tirar das crianças a experiência de andar em bando, especialmente ao ar livre, explorando, descobrindo, interagindo longe da supervisão direta de adultos.

Para mim, reside aí uma das grandes motivações de reunir outras famílias em passeios, piqueniques e viagens. A oportunidade de observar essa pequena tribo se formar, à medida que as crianças se tornam mais conhecidas umas das outras, ganhando segurança em suas relações, intimidade para mergulhar em um mundo próprio que corre paralelo às interações entre os adultos. Com o passar do tempo e o reconhecimento do território disponível, o bando vai se tornando mais autoconfiante para ampliar seu raio de ação e movimento, imergindo na experiência de viver um lapso de tempo de acordo com suas próprias regras.

Acredito que a qualidade desses encontros mais informais, na natureza, longe das dinâmicas e limitações que caracterizam o tempo vivido na escola ou em outros ambientes de cuidado ou aprendizagem, é muito especial. É uma socialização diferente, vivida na mistura de idades, no encontro com o outro fora da atmosfera institucionalizada, mas ao mesmo tempo perto da família, no brincar espontâneo que flui de cada criança e do grupo como um cardume em movimento.

Essa é uma das belezas dos encontros Natureza em Família. Buscando ativamente o convívio com outras famílias em meio à natureza e conscientemente permitindo que as crianças criem esse pequeno universo particular. Confiando em seu brincar livre e autônomo, nós adultos estamos dando a elas o enorme presente de sentirem-se parte de uma tribo, donas de sua própria cultura, e de viverem a experiência ancestral de pertencer a si mesmas e aos seus pares.

Foto: Arquivo Pessoal

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Maria Isabel Amando de Barros

Engenheira Florestal e mestre em Conservação de Ecossistemas pela ESALQ/USP, sempre trabalhou com educação e conservação da natureza. É cofundadora da OutwardBound Brasil e atuou na gestão e manejo de unidades de conservação na Fundação Florestal do Estado de São Paulo. Depois do nascimento da Raquel e do Beni passou a estudar a relação entre a infância e a natureza no mundo contemporâneo. Desde 2015, trabalha como pesquisadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana.