Trans Sol: coletivo promove inclusão de pessoas trans no mercado de trabalho pela costura

Acompanhar um dia de produção do coletivo Trans Sol, com o vai e vem das máquinas de costura e a concentração de suas integrantes, parece uma atividade como outra qualquer. Aos poucos, no entanto, as histórias de vida das mulheres trans (transgêneras, transexuais e travestis) que o compõe, se revelam.

Preconceito, exclusão, dificuldade no acesso educacional, falta de vagas no mercado de trabalho são algumas das barreiras diárias enfrentadas por pessoas trans no Brasil. O país lidera os rankings de violência, de acordo com levantamento da ONG Transgender Europe. Ainda segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a cada 48 horas uma pessoa trans é assassinada.

Grande parte dessas pessoas não consegue oportunidade no mercado de trabalho. E, muitas vezes, mesmo as que são graduadas costumam ser recusadas por sua identidade de gênero. Por todos esses motivos, muitas trans acabam se prostituindo. De acordo com informações da Antra, cerca de 90% das travestis e transexuais vivem exclusivamente da prostituição.

É aqui que coletivo Trans Sol busca quebrar essa realidade, ao oferecer inclusão via costura e moda.

“A inclusão, o direito de ocupar os espaços, de estar na rua, tudo isso a gente entende que vai conseguir através da moda. Se conseguirmos fazer um produto tão interessante que as pessoas olhem e gostem, e que a gente possa contar essa história, conseguiremos fazer esse caminho de conversar com a sociedade”, avalia Priscila Nunes, coordenadora do Trans Sol.

A participação do coletivo em feiras e eventos vem mostrando o potencial que essa fala de Priscila tem para se tornar realidade. O grupo participou do Jardim Secreto Fair Especial de Economia Solidária, sobre o qual falei aqui, no blog, e vendeu muitos quimonos produzidos por elas.

Conheci o trabalho do Trans Sol no início do processo de formação do coletivo. Na época, produziam bonecas gigantes, que enchiam os olhos com um encanto trazido pela excentricidade e beleza das peças únicas. O caminho para dar concretude ao empreendimento foi iniciado no final de 2015, quando duas amigas – Priscila e Mavica Morales Galarce – começaram a participar das redes do Projeto Ecosol SP como Estratégia de Desenvolvimento, realizado pela Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários (Unisol Brasil) via convênio com a Secretaria do Trabalho e Empreendedorismo da Prefeitura de São Paulo.

Priscila é bonequeira e Mavica é hábil com crochê. No início, as duas amigas iam até as pessoas e ofereciam o que sabiam em troca de ouvir as histórias. Vindas de outro coletivo, da militância, queriam trabalhar nas bases, chegar em pessoas que gostariam de ajudar. Mavica já tinha trabalhado com moradores de rua e percebeu que, mesmo entre esse público, as travestis eram também segregadas.

Sem recursos para estruturar um projeto de trabalho com pessoas trans, a dupla passou muito tempo planejando como executar a ideia, até que Priscila foi a uma reunião de curadoria da Rede Artesanato SP, que estava selecionando produtos para um evento, e ouviu sobre movimentos sociais e economia solidária. De lá para a Incubadora Pública Projetos Sociais da Prefeitura de São Paulo foi um pulo.  Começou a participar da Rede, de reuniões e de feiras. E o início da concretização do projeto foi por acaso. Ao menos assim define Priscila.

A ponte com o Projeto Reinserção Social Transcidadania, da Secretaria do Trabalho e Empreendedorismo da Prefeitura de São Paulo (cuja proposta é fortalecer as atividades de colocação profissional, reintegração social e resgate da cidadania para a população LGBTT em situação de vulnerabilidade) foi efetivada pela Incubadora, que já tinha interesse em desenvolver projeto voltado a esse público, mas não tinha quem soubesse trabalhar com ele. E, então, as pessoas foram chegando. A Secretaria desenvolve o Programa Operação Trabalho (POT), que busca pessoas desempregadas à procura de trabalho e promove reinserção no mercado. Para isso, concede uma bolsa mensal vinculada a processos de formação e a uma série de programas, incluindo economia solidária.

O coletivo logo foi demonstrando interesse em aprender mais do que a confecção de bonecas e peças de crochê. Queriam costurar, aprender a fazer roupas. Priscila e Mavica chamaram um amigo costureiro, que trouxe mais um amigo estilista, e começaram a avançar nessa frente de corte e costura, tendo uma aula por semana.

No processo, várias barreiras precisaram ser derrubadas. Mesmo no meio LGBTT, as travestis são pouco aceitas. E a dupla costureiro e estilista, relata Priscila, teve um choque de realidade. “Nunca tinham conversado com travestis e perceberam que são pessoas iguais a todos nós, só precisando de oportunidades. E toda essa violência, essa carapaça que elas vestem, na verdade é uma proteção. Elas só revidam o que fazem com elas”.

Dois meses depois de começarem a trabalhar, veio o primeiro desafio: participar do Ecosol Fest, festival de economia solidária em São Paulo, que já divulguei aqui, também. O grupo levou suas bonecas gigantes para a feira. “Quando a gente fez as bonecas, a situação mudou dentro da sala de aula. Elas começaram a se respeitar e a entender que, se não trabalhassem juntas, não conseguiriam chegar ao seu objetivo”, lembra Priscila.

Embora tenham passado por diversas formações na Incubadora, logo Priscila percebeu que suas integrantes não seriam capazes de entrar no mercado de trabalho. Conclusão de curso e certificado não garantiam portas abertas: “A gente entendeu que não podia simplesmente terminar o curso e pegar um grupo novo de pessoas. Elas tinham que continuar com a gente. Então, se antes nosso coletivo era formado por quatro pessoas, hoje ele é bem maior”.

Quimonos, vestidos de boneca e a mudança do interdito


Em 2017, o Trans Sol modelou e costurou roupas para bonecas Blythe colecionadas pela artista plástica Cristina Botallo. Foi um desafio, porque significava moldar peças em escala bem menor. Mas o coletivo se saiu bem.

Uma parceria com a produtora Casa 1 e o Jardim Miriam Arte Clube (Jamac) proporcionou, também neste ano, um desfile e leilão de quimonos confeccionados por elas. O Jamac estampou as peças e o Trans Sol costurou. “Elas escolhem cor, tecido, têm muita criatividade. A gente fez o desfile e uma das moças foi, estava receosa. Mas quando viu as roupas que ela fez disputadas num leilão, o sorriso logo se abriu. E as pessoas sabiam quem tinha feito aquele trabalho, que é uma coisa importante. Isso foi uma passagem”, define Priscila.

E foi mesmo. Na sequência, em uma semana, elas produziram 20 quimonos para o Jardim Secreto Fair Especial Economia Solidária. Enquanto o primeiro trabalho foi difícil no sentido de conseguir engajá-las, o segundo foi bem mais fácil a partir do resultado da venda dos quimonos na Casa 1: todas foram pagas e ainda reinvestiram em aquisição de material.

“Elas estão conseguindo ver essa roda, que ainda é pequenininha, começar a girar. Estão tendo esse entendimento. Hoje, estamos com dez pessoas. Eram 25 quando começamos. Algumas saíram por conta de uma interrupção da bolsa POT (Programa Operação Trabalho), porque não tinham vale transporte para ir até a Incubadora para as aulas e fazer produção. Duas conseguiram trabalho em outros espaços. Uma delas, que sempre gostou de cozinhar, prestou concurso e hoje trabalha na cozinha de uma creche. E a outra trabalha como atendente em um café de teatro no bairro do Bixiga. Mesmo as que saíram mantêm contato conosco. Criou-se um vínculo”, avalia.

O espaço da Incubadora foi fundamental nessa trajetória. O grupo não possui maquinário, e ali obteve espaço para se reunir, ter acesso a formações e usar as máquinas de costura. Mas a contribuição foi além disso. Trouxe também diversidade e trocas. Ao fazer os cursos técnicos, de economia solidária e planejamento, as integrantes do Trans Sol conviveram com outras pessoas. E essas pessoas puderam ver de perto quem elas são.

“Eu não acredito que isso pudesse acontecer de outra forma, num curso pago por exemplo, onde você é minoria. No começo, elas eram conhecidas como as meninas da Priscila, ou da Mavica. E hoje todo mundo já as conhece por seus próprios nomes. Elas têm muitas histórias para contar, muita informação. As pessoas sempre imaginam o corpo da travesti como um objeto, não como um ser humano. E a Incubadora proporciona essa quebra, de você entender o outro como ser humano. E respeitar. É um espaço mesmo de construção social”, diz Priscila.

A-gênero

As bonecas, os quimonos, as roupas das bonecas Blythe. Peças que trazem a valorização da pessoa, do ser humano que confeccionou as peças. Esse é o futuro do Trans Sol.

Nos planos do grupo está a criação de uma marca que trabalhe com sustentabilidade social e que produza e comercialize roupas a-gênero. Além das roupas que o Trans Sol quer produzir – modelagens especiais voltadas para as pessoas trans e travestis -, as roupas a-gênero trazem o entendimento de que não importa o que se vista, todos são seres humanos. Esta foi uma construção do grupo, que deve guiar a produção das peças daqui em diante. Os quimonos produzidos e vendidos por elas já trazem essa orientação.

As peças do Trans Sol são encontradas em feiras de economia solidária, mas podem também ser encomendadas por meio da página do grupo no Facebook.

Fotos: Divulgação Trans Sol

Deixe uma resposta

Mônica Ribeiro

Jornalista e mestre em Antropologia. Atua nas áreas de meio ambiente, investimento social privado, governos locais, políticas públicas, economia solidária e negócios de impacto, linkando projetos e pessoas na comunicação para potencializar modos mais sustentáveis e diversos de estar no mundo.