Sobre escolhas, sabores e intolerâncias

plantação de milho

“Não basta ser gostoso. Nosso prato precisa ser bom de verdade.”

Sabe aquele conceito que diz “o mundo é o que você come”? Acredito muito nisso, e cada vez mais. Moldamos o mundo, sua geografia e jeito de operar de acordo, em parte, com a nossa dieta. São milhões e milhões de quilômetros quadrados de terra destinados exclusivamente a produzir alimentos (para nós e para os animais que fazem parte do cardápio de muita gente). É por essa razão que é tão importante pensarmos sobre o que consumimos à mesa.

Apesar de parecer bastante óbvio e preocupante, uma vez que não temos condições de produzir alimentos fora da Terra, estamos longe, zilhões de milhas distantes de uma dieta minimamente consciente dos rastros deixados pelo caminho (que começa bem antes do supermercado).

Com exceção da triste parcela da população que não tem muita escolha na hora de se alimentar, ou porque não tem terra para plantar ou porque o dinheiro é curto demais, boa parte da população ainda escolhe o que comer pelo prazer imediato, aquilo que a faz salivar e ter alguns minutos de alegria, pequenos orgasmos gastronômicos, seja com um delicioso pastel de rua ou um horrível e inaceitável foie gras no mais badalado restaurante da cidade. Come-se porque é gostoso (o sabor, a sensação, o momento, a companhia, o status). Depois a gente vê como lidar com as inconveniências (uns quilinhos a mais aqui, um colesterol alto ali, o cartão de crédito que estourou acolá).

Para essas pessoas, não está em questão a maneira como o alimento foi produzido, se poluiu o solo e a água, se respeitou os trabalhadores, se é produto nacional ou não, se tem muitas calorias, gordura trans ou transgênicos, se é orgânico, se foi produzido por uma multinacional que coleciona passivos socioambientais, enfim, nada disso faz diferença. Importa mesmo é o sabor e a vontade de comer, e ponto.

Essas ‘dietas do sentido’ estão completamente ajustadas ao mercado de consumo. São ótimas aliadas do capitalismo sem fronteiras e limites. São vendidas pela mídia como o suprassumo da alimentação e aprovadas por uma massa que mantém a roda girando exatamente do mesmo jeito, todos os dias.

Podemos pensar: mas que chatice não ser assim, ter que questionar tanto, pensar tanto para simplesmente comer! Bom, para mim, essas escolhas têm ligação direta com princípios éticos que procuro seguir em meu cotidiano. Não é somente sobre escolher um prato, é sobre escolher em que tipo de mundo quero viver, que mundo quero apoiar e patrocinar cada vez que paro minhas atividades para fazer uma refeição ou lanche, que seja.

Se, por um lado, o mundo é o que a gente come, por outro, acredito que o tipo de comida que escolhemos ingerir diz muito sobre o que somos e como agimos em sociedade. Mas é exatamente aí que moram as maiores incoerências e confusões. E tenho visto muitas, ultimamente…

Meses atrás precisei almoçar fora de casa e fui a um restaurante que vendia a ideia de uma comida que preserva o bem estar animal. Nada de carne, leite e derivados, nem mel. Saí de lá decepcionadíssima. As verduras, os legumes e os cereais não eram orgânicos. O prato principal era uma versão do filé à parmegiana, com soja (muito provavelmente, transgênica) e um creme à base de margarina (que é quase o mesmo que plástico). Não era saboroso. Não era nada barato.

Para piorar, os atendentes eram todos mal humorados e não gostaram nem um pouco quando perguntei se o cardápio era orgânico. Foram grossos, nem um pouco respeitosos. Querem cuidar dos bichinhos, mas acho que estão meio atrapalhados…

Não como carne vermelha há 25 anos. Meio sem querer, ao longo do tempo, fui colecionando motivos para isso, além do fato de não gostar do sabor da carne e isso não ser, portanto, uma privação. Se não como também porque sei que a criação de gado é uma das razões do desmatamento do Cerrado, Mata Atlântica e da Amazônia, não faria sentido trocar um pedaço de boi (que horror!) por um bife de soja, cuja monocultura – transgênica, em sua maior parte – também tem se sobreposto à mata nativa como um grande tapete do mal.

Pensar no bem estar animal é legítimo e muito me agrada, mas é preciso, então, ser mais coerente, incluir não apenas os animais de criação, mas também aqueles que fazem parte dos ecossistemas ameaçados pela produção de soja, por exemplo. Não é fácil ser coerente, mas é preciso tentar ou estar ciente de nossos limites.

Quanto ao mau humor alheio, queria dizer que também sou um tipo de bicho e, penso, mereço respeito e consideração. Não me parece muito interessante restringir a alimentação levantando a bandeira do bem estar animal e, ao mesmo tempo, ser intolerante a humanos, fazer cara de soberba diante daquele que não aderiu à sua dieta… Desculpem o mau jeito, mas o mundo precisa de mais tolerância, mais empatia, mais ouvidos e menos bocas. Ou seremos apenas um bando de chatos e equivocados, falando cada vez mais de comida na televisão, entre uma notícia e outra sobre o aumento da fome e a redução da biodiversidade no mundo.

Foto: Paisagem em monocultura (Bobby McKay via Flickr, Photopin)

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Giuliana Capello

Jornalista ambiental e permacultora, escreve sobre bioconstrução, arquitetura e design sustentáveis, economia solidária, consumo consciente, alimentação orgânica, maternidade e simplicidade voluntária. É autora do livro Meio Ambiente & Ecovilas (Editora Senac São Paulo).