O jardineiro fantasma
A primavera chegou oficialmente há poucos dias, mas por aqui ela já tinha se anunciado pelos bichos, que ficaram mais ativos desde as últimas semanas. Os lagartos-teiú, por exemplo, desaparecidos desde que o clima começou a esfriar, voltaram a cruzar nosso jardim soltando pedaços de sua pele como parte do processo natural de renovação. A sinfonia matinal do canto das aves, junto com as cigarras, também fica mais marcante a cada dia. E agora tem o casal de saracuras-três-potes, tema da história de hoje.
As saracuras são aves características de áreas mais úmidas, como brejos, beiras de rios e bordas de lagoas, o que não é exatamente o caso onde moramos – uma área mais alta e seca. Às vezes ouvíamos seu canto muito longe e em certa ocasião, há muito tempo, uma delas passou brevemente por aqui algumas vezes. Então que, semanas atrás, no meio da madrugada, acordamos com o casal cantando em dueto muito perto do nosso quintal. Inclusive a nossa vizinha, que não tem tanto conhecimento sobre sons de aves, também reparou na melodia inédita e veio perguntar se tínhamos escutado.
Poucos dias depois deste ocorrido, eu estava sentado em frente ao computador quando, através da janela, vi um vulto diferente pelo canto do olho. Lá estava uma das saracuras e, logo depois, para nossa surpresa, uma segunda saiu de trás do arbusto. Nosso casal de cantoras da madrugada tinha finalmente dado as caras!
E assim elas começaram a aparecer sistematicamente, dia após dia, o que me deixou meio intrigado. Afinal, o que estas aves estavam fazendo tão longe de algum corpo d’água?! Logo desconfiei e descobri a razão: elas estavam interessadíssimas nos pequenos peixes que mantemos para combater as larvas de mosquito no nosso laguinho do quintal.
Então fomos confrontados com um dilema: deixar as saracuras comerem os peixinhos e permanecerem por perto, ou protegermos os peixes sob risco das aves irem embora?
Acabamos chegando em um meio termo. Colocamos sobre parte do laguinho um disco de arado como proteção para eles poderem se esconder embaixo – é em cima dele que a saracura da foto (tirada da minha janela) está pousada. Aparentemente, o casal não gostou da nossa decisão e desapareceu por uns dias.
Entretanto, tempos depois, certa manhã começamos a escutar um som misterioso de rastelo sobre folhas secas, como se tivesse um jardineiro rastelando um pátio aqui ao lado. Não era ninguém limpando nosso quintal e nem na casa ao lado, que está desocupada há muito tempo. Seria um jardineiro-fantasma vindo das trevas nos assombrar?! Não demorou muito para descobrirmos a verdade…
Já que pegar peixes tinha se tornado tarefa meio difícil, as saracuras começaram a revirar com seus bicos a folhagem na mata ao lado, em busca de outros bichinhos para comer que estivessem escondidos sob as folhas secas. É assim que, nos últimos dias, à melodia harmônica do canto das aves e das cigarras somou-se o compasso ritmado de rastelo no quintal, com o qual aos poucos vamos nos acostumando – até já batizamos a seção rítmica do novo conjunto de “As Saracuras Rasteleiras”?
Saracura toma banho no nosso laguinho em um dia de calor
Ah, e se você ficou curioso para ouvir o canto da saracura, ouça como ele é neste link.
Fotos: Daniel de Granville
Biólogo com pós-graduação em Jornalismo Científico, começou a carreira fotográfica na década de 90, quando vivia no Pantanal e trabalhava como guia para fotógrafos renomados de várias partes do mundo, o que estimulou seu interesse pela atividade. Já apresentou exposições, palestras e cursos na Alemanha, EUA, Argentina e diversas regiões do Brasil. Em 2015 foi o vencedor do I Concurso de Fotografia de Natureza do Brasil, da AFNATURA, e em 2021 ganhou o primeiro prêmio na categoria “Paisagem” do Concurso Global da The Nature Conservancy. Vive atualmente em Florianópolis, onde tem se dedicado ao ensino de fotografia e continua operando expedições em busca de vida selvagem Brasil afora
Que legal! Aqui em casa (Teresópolis-RJ) a história foi quase a mesma!
Quando compramos o sítio não tínhamos ideia da presença das saracuras e elas acabaram por ser as protagonistas do nosso quintal!
Como o laguinho do sítio estava irremediavelmente rachado, colocamos uma bacia de barro com água, onde eleas tomam vários banhos por dia.
O dueto matinal acontece embaixo da nossa janela às 6 da manhã, mas felizmente não é todo dia.
Oi Paulo! Que bacana, o canto delas é demais mesmo. Semanas atrás elas estavam animadas demais, fazendo esse dueto sob nossa janela – às 3h da madrugada, hehehe! Agora estamos morando em outra cidade, em ambiente bem mais urbanizado, mas ainda assim escutamos as saracuras bem ao longe, em uma mata dos arredores…
Oi Daniel! Também tenho um laguinho no meu quintal e também sou visitado por saracuras, bem-te-vis, pombos selvagens, sabiás (inclusive tem um casal chocando aqui), e outros pássaros.
Esse laguinho é uma das melhores coisas que já fiz!
Que maravilha! Temos o privilégio de “conviver” com algumas saracuras. Elas vêm e vão de uma área verde lindeira ao quintal e onde tem um córrego temporário e uma área úmida. Seu canto é lindo!
Eu sei por que. É porque essas aves, cada uma delas, tanto “sara” quanto “cura”…! (kkkkk)