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Quilombo Campo Grande: famílias são despejadas pela polícia em meio à pandemia

Em novembro de 2018, contei a história do Quilombo Campo Grande, do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), e da campanha #NoMeuBuleNão, criada pelo ilustrador Gladson Targa. O jovem ativista queria chamar a atenção para a ação movida por João Faria da Silva, da Jodil Agropecuária e Participações, e propunha boicote às marcas que compravam o café produzido por ele. Afinal, se elas compravam de Silva, o apoiavam em seus atos.

Na época, a ação teve o respaldo de uma liminar do juiz Walter Zwicker Esbaille Junior, do Tribunal de Justiça de Minhas Gerais (TJ-MG), mas o desembargador Marcos Henrique Caldeira Brant suspendeu a decisão.

Silva é um dos maiores produtores (e exportadores) de café do país e arrendou parte dos 3.195 hectares da Fazenda Ariadnópolis, de propriedade da Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (Capia), dona da usina que faliu em 1996 e que deixou dívidas trabalhistas e as terras em situação de completo abandono.

Tempos depois da falência da usina, sem trabalho, sem dinheiro e sem ter para onde ir, os ex-funcionários ocuparam as terras abandonadas para sobreviver. A ocupação começou em 1998, mas foi efetivada em 2002 e, de lá pra cá, o empresário Jovane de Souza Moreira, da família proprietária da usina, os pressiona, vigia, e reivindica a reintegração de posse do local que foi recuperado pelos assentados ao longo dos anos. 

O Quilombo Campo Grande tem cerca de 3.800 hectares e abriga 11 acampamentos (cada um com cerca de 8 hectares). Reúne 1.800 pessoas organizadas em 450 famílias que plantam, em média, 600 hectares de terra anualmente. Produzem alimentos orgânicos e o famoso café Guaií, que também é exportado, e criam gado. Desde que tomaram posse das terras improdutivas e abandonadas da usina, eles a reivindicam para reforma agrária.

Jovane quer reativar a usina falida para cumprir o acordo comercial firmado com Silva, que prevê o arrendamento de parte dos 4 mil hectares da terra para o plantio de café, enquanto outra parcela seria destinada ao cultivo da cana-de-açúcar. O acordo vale por sete anos, ou seja, vai até 2023.

Segundo o site Repórter Brasil, Jovane chegou a “ameaçar um funcionário da Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais) que instalava energia elétrica nas casas do assentamento, dizendo que as terras eram suas. Apesar da tentativa de intimidação, cerca de 329 casas receberam a instalação”. O advogado do empresário negou a acusação.

Risco de contaminação por coronavírus

Mesmo com os apelos de advogados do Movimento dos Sem Terra (MST), dos próprios assentados, de ativistas e de parlamentares que defendem os direitos humanos para que a ação de despejoexpedida pelo juiz Roberto Apolinário de Castro em fevereiro – não fosse realizada devido à pandemia, um oficial de Justiça apareceu na quarta-feira da semana passada, 12/8, acompanhado de uma tropa de choque da PM, para cumprir a reintegração de posse.

Durante quase 60 horas, a tranquilidade do quilombo foi transformada pela investida policial e a resistência dos assentados.

“Foram três dias de tensão, violações de direitos humanos e solicitações para que o governador Romeu Zema suspendesse a ação policial. A mobilização do aparato policial promoveu aglomeração expondo não somente as famílias sem-terra, mas também toda a população da região à propagação do coronavírus, inclusive grávidas, idosos e outras pessoas do grupo de risco”, ressaltou o MST, em nota e nas redes sociais.

Os sem-terra usavam máscaras de proteção, respeitando uma das medidas básicas para evitar o contágio da Covid-19, mas se aglomeraram para resistir à ação e fugir das bombas de gás lacrimogêneo.

O MST classificou o despejo de violento e disse que, em meio à pandemia, “Zema colocou a vida e a saúde de milhares de pessoas em risco, demonstrando o seu descaso com o povo, mostrando sua face covarde e criminosa”. Os policiais, por sua vez, citaram a agressividade dos membros do MST, que teriam colocado em risco os policiais e conselheiros tutelares.

Os apelos ao governador para que intervisse e não permitisse que a ação tivesse continuidade, foram inúmeros e em vão. Já no primeiro dia, Zema disse, em seu Twitter, que a Secretaria de Desenvolvimento Social e Econômico (Sedese) havia pedido a suspensão da ordem de despejo em Campo do Meio. O que deixou ativistas e sem-terra animados.

No entanto, não foi o que aconteceu. E, mais tarde, por meio de sua assessoria de imprensa, explicou que a solicitação foi entregue ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) antes do início da operação, mas que o juiz Roberto Apolinário de Castro autorizou a reintegração. E ele nada poderia fazer. E nada mais fez.

Ação de despejo é atividade essencial?

Os moradores contaram que, primeiro, a PM destruiu a escola do assentamento, que atendia crianças e adultos. Todos correram para salvar os materiais e, assim que saíram, o trator acabou de demoli-la. Casas de sete famílias e lavouras – “com duas décadas de história” – também foram destruídas.

E o MST destacou a questão que agrava a situação dos assentados nessas terras: o limite entre as áreas do Quilombo e a área que o proprietário alega ser sua.

O movimento destaca que, como os assentados estão há muito tempo no local, já teriam direito a usucapião. Não só: ocuparam uma terra que, antes, não tinha nenhum fim social, nem produzia, estava abandonada.

Para o MST, a área que Jovane reivindica legalmente não é dele, de fato e, a princípio, se restringia a 23 hectares. Mas, em despacho mais recente, de fevereiro deste ano – quando o juiz Roberto Apolinário de Castro assinou a ação de despejo -, a área da reintegração de posse aumentou, passando para 52 hectares. Pior: eles dizem que a operação policial não se limitou a essa área e foi além dos hectares determinados pela liminar.

As sete famílias despejadas estão sendo realocadas em outros lotes e a escola deve ser reconstruída em outro local.

Na sexta-feira, 14/8, o MST entrou com ação no STF – Supremo Tribunal Federal – para exigir que a reintegração de posse seja revista e que sejam impedidas quaisquer outras ações de despejo pelo país, até que a pandemia acabe.

Zema disse que nada podia fazer, mas, neste momento de pandemia, qualquer pessoa com um mínimo de dignidade teria impedido que essa ação fosse executada. Quantas pessoas podem ter se infectado durante a operação policial? Agora, ações de despejo são considerados pela lei como atividades essenciais?

Projetos para impedir despejos emperram no Congresso e no Executivo

Há um Projeto de Lei parado nas mãos de Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados. Ele “dispõe sobre a suspensão do cumprimento de toda e qualquer medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resulte em despejos, desocupações ou remoções forçadas, durante o estado de calamidade pública reconhecido em razão do COVID-19”, ou seja, que proíbe ações de despejo até 31 de dezembro.

Durante sessão online, na semana passada, parlamentares da oposição cobraram, de Maia, uma posição sobre o PL, mas ele não deu garantias de que colocaria o tema em votação, mesmo depois de ter regime de urgência aprovado pelo plenário. Existem, ainda, 21 propostas que tramitam de forma conjunta com o PL na Câmara. Mas não só!

O deputado André Janones protocolou o PL 827/2020, de sua autoria, em março. E, em junho, Bolsonaro vetou conteúdo do PL 1179/2020, o primeiro analisado e aprovado pelo Congresso, em maio.

Pra se ter ideia da dimensão deste cenário, dados do Tribunal da Justiça de São Paulo (publicados no site Yahoo, por meio da Lei de Acesso à Informação) apontam que, somente na capital paulista, entre 20 de março e 20 de maio deste ano (primeiros três meses da pandemia), foram registradas 4.018 ações de despejo.

Fontes: MST, Repórter Brasil, Folha, Estado de Minas, Brasil de Fato

Fotos: Divulgação/MST

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