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“Quando você compartilha o saber, o saber só cresce”, dizia Nêgo Bispo, pensador, poeta e ativista político quilombola

"Quando você compartilha o saber, o saber só cresce", dizia Nêgo Bispo, pensador, poeta e ativista político quilombola

Nêgo Bispo foi filósofo, poeta, escritor, professor, ativista político, militante social e um dos principais representantes do pensamento quilombola. Muito além de nossa capacidade de ‘rotulá-lo’, também foi um semeador da palavra – como o chamavam, carinhosamente –, deixando legado precioso de sabedoria.

Em 12 de dezembro, completaria 64 anos (nasceu no vale do Rio Berlengas, região de Francinópolis), mas, nove dias antes, vítima de duas paradas cardíacas depois de diversos desmaios que o levaram diversas vezes ao hospital, Antonio Bispo dos Santos silenciou. Ancestralizou. 

No dia seguinte, como era seu desejo, foi velado e enterrado onde cresceu e viveu boa parte de sua história, na roça do Quilombo Saco Curtume, em São João do Piauí (PI), ao som de cantos e atabaques

O prefeito Ednei Amorim declarou luto oficial de três dias: “Nêgo Bispo prestou relevantes serviços ao nosso município. Foi professor, escritor, e sobretudo, um dos principais expoentes da luta em defesa das comunidades quilombolas brasileiras”. 

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Deixou a companheira Edileusa, dois filhos e quatro netos, além de centenas de filhos, netos e irmãos que adotou durante a vida. E uma infinidade de leitores e de admiradores.

“Você precisa dizer ao povo as coisas que sabe”

Nêgo Bispo foi o primeiro de sua família a ser alfabetizado. A decisão [dos pais] de enviá-lo para a escola comunitária tinha como objetivo formar alguém do quilombo para dominar a escrita e compreender os contratos de regularização de terras impostos pelo Estado.  

Foi até o nono ano (1º ano do antigo colegial) e, com o que aprendeu, não só traduzia burocracias criadas pelos brancos, como lia e escrevia cartas, colaborava na contabilidade dos comércios na comunidade e ainda organizava festas. 

Até 1983, viajou muitas vezes ao Rio de Janeiro, até que decidiu se dedicar unicamente à roça terra, inspirado por uma conversa com sua mãe Pedrina.  

“Meu filho, você estudou para ajudar nós, não estudou só para você. Se você tá cuidando só da sua roça, então o saber que nós lhe demos está perdido. Você precisa dizer ao povo as coisas que sabe”. 

Foi o que Nêgo Bispo fez, regando a sementinha que sua mãe depositou em seu coração e que pautaria sua linda trajetória.  

“Você tem que assumir o compromisso que vai ensinar tudo o que lhe ensinei para quem precisar. E enquanto você ou alguém que aprendeu com você está ensinando, passando para frente o nosso conhecimento”, explicava o mestre: “eu estarei vivo, mesmo enterrado”.  

Movimentos sociais, partidos e a coletividade

Nos anos 1990, ganhou notoriedade ao participar de movimentos sociais e se filiar a partidos políticos. Fundou e atuou na Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e, depois, na Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ/PI).

Foi presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Francinópolis, quando ganhou o apelido Nêgo. Mais tarde integrou a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Piauí (Fetag-PI) e o Partido dos Trabalhadores (PT). Mas, ao notar que as organizações não compreendiam a luta quilombola, abandonou-as.  

Acreditava na coletividade e dizia que, movimentos que “tomam como referência partidos e organizações sindicais” e que consideram “que dá para resolver as coisas entrando para a lógica da inclusão ao sistema, acabam repetindo cenas como essa de homenagear Zumbi dos Palmares”.

“Palmares existiu antes de Zumbi e continuaria existindo sem ele. Zumbi é que não existiria sem Palmares. A referência não é Zumbi, é Palmares. Assim como a referência não é Antônio Conselheiro, mas Canudos […]. Essa história de personificar a luta dá no que deu”, resumiu.  

Contracolonialismo

Nêgo Bispo também criticou as estruturas da universidade com seu conhecimento eurocêntrico e sua “incapacidade de aprender com os quilombolas” porque o conhecimento devia ser ensinado a partir de seus saberes. 

E, mesmo confrontando a academia, circulou por universidades do Brasil e do exterior, quem sabe por acreditar que “um dia, ainda, eles descobrem os quilombos”. Antes de morrer, viu esse respeito brotar em alguns lugares por onde passou. 

conceito decolonial pautava seu pensamento. Ele criticava a colonização à qual a sociedade estava (e está) submetida e na qual foi organizada, pois entendia que era o cerne do apagamento das identidades, dos modos de vida e dos territórios originais.

Por isso, em suas falas e escritas, propôs a prática do contracolonialismo, tão bem compreendido por povos indígenas, africanos e quilombolas. Nele reside a urgência de valorizar o conhecimento produzido por essas comunidades, por isso seria o “antídoto” contra a colonização, que definia como “veneno”. 

A partir de diálogos e reflexões, Nêgo Bispo foi um dos mais aguerridos combatentes do racismo estrutural, dando voz e cor “às lutas negras e quilombolas”. Entendia os quilombos como ‘espaços de resistência’ e lutou por comunidades que se autossustentassem. Também lutou pelas mulheres. 

Dizia que deveríamos construir conhecimento e buscar evoluir por meio do envolvimento e não do desenvolvimento. Para ele, “aprender é uma pergunta permanente”. E dizia: 

“Aprender, mesmo, a gente aprende quando o saber não é mercadoria. Quando é com mestres e mestras, eles não cobram: eles ensinam a manter o conhecimento vivo. Quando você compartilha o saber, o saber só cresce. É como as águas que ‘confluenciam’”.

Em instâncias governamentais, Bispo participou de espaços de negociação por direitos das comunidades quilombolas e ainda criou redes de luta por direitos com ativistas. 

Ideias no papel

Nêgo Bispo publicou dois livros – Colonização, quilombo: modos e significações (UnB, 2015) e A Terra Dá, A Terra Quer (Ubu Editora, 2015) – e deixou outro a caminho: em 2024, Colonização e quilombomilagres e feitiços será lançado pela Cia das Letras. 

As três obras e dezenas de artigos publicados em livros organizados por terceiros ou por ele, revistas e sites ajudam a consolidar o pensamento quilombola.

“Sempre fruto de vivências na luta, das confluências com povos contra-coloniais, seus livros, poemas e palavras ficam como referências necessárias nas ciências humanas e na literatura que, com certeza, inspirarão a ‘geração neta’, como o mestre gostava de se referir à juventude”, destaca nota da organização Teia dos Povos, articulação de comunidades e territórios autogeridos, movimentos sociais e grupos de apoio. 

Repercussão

Nas redes sociais, Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, lamentou a morte de Nêgo Bispo, reproduzindo uma frase sua: “Eu vou falar de nós ganhando, porque pra falar de nós perdendo eles já falam”. E continuou: 

“Um dos maiores pensadores da nossa época ‘ancestralizou’. Nêgo Bispo fez a passagem e deixou aqui um legado enorme para o pensamento negro brasileiro. Um abraço a toda sua família e amigos”.

Ela ainda lembrou de um dos últimos registros de Nêgo Bispo, quando alertou para a importância de direcionar pesquisas para as histórias de resistência e vitórias das populações negras no Brasil, em vez de concentrá-las nas violências sofridas ao longo da história.

Silvio de Almeida, ministro dos Direitos Humanos, escreveu, também nas redes sociais: “Lamentamos imensamente a morte de Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo. Este importante pensador brasileiro e ativista quilombola deixa um legado inesquecível para a cultura nacional”.

Joelson Ferreira, do Assentamento Terra Vista do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), integrante da Teia dos Povos e amigo de Bispo, contou ao Brasil de Fato que “ele falava muito da importância da unidade entre os povos”. E lembrou de uma frase sua: “Quando as favelas e os guetos perdem o medo de se juntar com os povos originários e dos quilombos, o asfalto derrete”. 

A CONAQ, fundada e presidida pelo pensador quilombola, destacou que “sua contribuição inestimável para a compreensão e preservação da cultura e identidade quilombola será lembrada e reverenciada por gerações. Neste momento de perda, expressamos nossas condolências à família, amigos e admiradores, e reafirmamos a importância de honrar seu legado e perpetuar suas ideias. Que sua memória inspire e ilumine o caminho daqueles que seguem a luta pela valorização e reconhecimento das comunidades quilombolas”.

Por fim, celebro a vida e o legado de Nêgo Bispo com um poema de sua autoria, que revela a essência e o poder de sua luta.

“Quando nós falamos tagarelando
E escrevemos mal ortografado
Quando nós cantamos desafinando
E dançamos descompassado
Quando nós pintamos borrando
E desenhamos enviesado
Não é porque estamos errando
É porque não fomos colonizados”.

A seguir, assista ao vídeo produzido pelo Itaú Cultural, quando Nêgo Bispo foi homenageado pelo Prêmio Milu Vilela.

Foto (destaque): reprodução vídeo do Itaú Cultural

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