Projeto Bruno e Dom: mais de 50 jornalistas de 10 países se unem para continuar o trabalho do repórter e do indigenista, assassinados no Vale do Javari
Hoje, 5 de junho, faz um ano que o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista brasileiro Bruno Pereira foram assassinados em uma emboscada quando navegavam no rio Itacoaí, no Vale do Javari, oeste do Amazonas (fronteira com o Peru).
Dom decidiu ir à Terra Indígena Vale do Javari (a segunda maior do Brasil) para conhecer o trabalho da Equipe de Vigilância da Univaja (EVU) iniciado a partir de treinamento idealizado por Bruno, que conhecia a região como poucos, para salvar a Amazônia (tema do livro que estava escrevendo) dos invasores.
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(O livro de Dom – Como salvar a Amazônia: Pergunte às pessoas que sabem – será concluído e publicado por uma equipe de jornalistas premiados, entre eles Eliane Brum (Sumaúma), Kátia Brasil (Amazônia Real), Jon Lee Anderson (New Yorker), Tom Phillips e Jonathan Watts (The Guardian) e Andrew Fishman (Intercept Brasil). A família do jornalista lançou uma campanha de financiamento para a conclusão do livro).

Bruno havia sido coordenador da Funai no Vale do Javari, mas foi afastado do cargo por Marcelo Xavier, presidente bolsonarista do órgão, e obrigado a trabalhar na burocracia administrativa em sua sede, em Brasília. Pouco tempo depois, o indigenista licenciou-se da fundação e voltou à região para dar andamento ao trabalho iniciado, prestando serviços para a Univaja – União dos Povos Indígenas do Vale do Javari.
Naquele dia cedo, Bruno e Dom haviam saído da base da Funai na terra indígena que abriga diversos povos – Marubo, Kanamari, Mayuruna/Matsés, Matis, Kulina, Pano, além dois pequenos grupos dos povos Korubo e Tsohom Dyapá, de recente contato -, em direção à Atalaia do Norte.
Consórcio jornalístico internacional
Alguns meses depois do crime, a organização francesa Forbidden Stories – reuniu mais de 50 jornalistas de 16 organizações internacionais de mídia, localizadas em 10 países, em um consórcio jornalístico internacional para dar continuidade ao trabalho dos dois amigos por meio do Projeto Bruno e Dom – Uma investigação sobre a pilhagem da Amazônia (no final deste post, leia o editorial publicado pela organização, no qual explica a finalidade da iniciativa).
A missão da Forbidden Stories é tornar visível e impactante o trabalho de repórteres que não podem mais investigar.
Integram o consórcio: Amazônia Real (agência sediada em Manaus), Repórter Brasil,TV Globo, Folha de São Paulo e Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), do Brasil; Ojo Público (Peru; rede investigativa fronteiriça), The Guardian e The Bureau of Investigative Journalism (Reino Unido),Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP; EUA), Le Monde(França), Expresso (Portugal), Paper Trail Media (Alemanha), NRC (Holanda), Tamedia (Suiça) e Der Standard (Áustria) –(os links acima indicam as páginas que reúnem os projetos de cada veículo)
Durante quase um ano, essas organizações “produziram uma obra para a posteridade, honrando o desejo de Dom Phillips de lutar pela salvação da Amazônia”, destacou a Amazônia Real.
Para a Forbidden Stories, o resultado desse trabalho representa apenas uma batalha dentro de uma luta que está longe de acabar.
“A gente está mostrando que a voz do Dom Phillips não foi calada e a voz do Bruno Pereira também não. Os dois vão permanecer vivos na Amazônia. E estamos provando que é possível juntar mídias tradicionais e independentes em diversos países em prol dessa causa, que é a causa do bom jornalismo e é a da democracia”, acrescentou Kátia Brasil, cofundadora da Amazônia Real.
Últimas imagens de Bruno e Dom
Em 1º de junho, o jornal britânico The Guardian, para o qual Dom Phillips colaborava regularmente (do Brasil), dedicou boa parte de sua primeira página ao Projeto Dom e Bruno. Em uma das reportagens, apresentou as últimas imagens dos dois, inacreditavelmente recuperadas do celular do indigenista.
Quatro meses depois do assassinato, indígenas da EVU voltaram ao local do crime certos de que encontrariam outros vestígios, que poderiam ajudar nas investigações. Encontraram!
Eles haviam pedido à jornalista Sônia Bridi – que dirige o documentário Vale dos Isolados – O Assassinato de Bruno e Dom (exibido em 2/6 pela Globo e agora disponível na Globoplay, só para assinantes) – um aparelho detector de metais e, com ele, encontraram, afundado na lama sob ramos e galhos de árvores, o celular de Bruno, além de outros objetos: seu óculos, além da carteira de imprensa, dos cadernos de anotação (irrecuperáveis!) e do notebook de Dom.
“Quando encontraram a carteira de imprensa do Dom e os cadernos que ele usava para anotações, foi especialmente triste para mim. Foi a materialização, nos objetos que fazem parte do nosso ofício, da morte brutal de um jornalista”, contou Sônia.
O celular foi enviado ao Instituto Nacional de Criminalística, da Polícia Federal, em Brasília. Peritos conseguiram recuperar seus dados, entre eles as imagens inéditas que agora circulam pela mídia e mostram Dom em conversa com um de seus algozes. Tudo com data e hora, informações que podem contribuir com a investigação.
Em editorial, Katharine Viner, editora-chefe do The Guardian, sentenciou: “Os defensores da floresta não devem ser mortos por expor crimes. Jornalistas não devem ser mortos por relatar fatos”.
A seguir, leia o artigo da Forbidden Stories sobre o Projeto Dom e Bruno e, depois, assista ao trailer produzido pela organização para divulgar a iniciativa.
“Sem acesso a informações independentes, ninguém salvará o planeta”
De autoria de Laurent Richard, fundador e diretor da Forbidden Stories, o editorial publicado no site da organização – “Continuamos o trabalho do Bruno e do Dom na Amazônia porque o nosso futurodepende disso” – explica o pensamento que move a organização e a levou a reunir tantos profissionais da imprensa para dar continuidade à investigação de Dom e Bruno.
Leia o texto na íntegra, a seguir:
“Em 26 de junho de 2022, onze dias após a descoberta dos corpos de Bruno Pereira e Dom Phillips, câmeras de todo o mundo captaram a revolta de Sian Phillips, irmã do jornalista britânico assassinado, durante seu funeral.
Cercada por parentes, todos de camisetas pretas estampadas com uma foto de Dom em meio à mata densa, ela explicou que seu irmão foi morto por ‘tentar contar o que está acontecendo com a floresta’.
Investigar crimes ambientais se tornou um dos temas mais perigosos para jornalistas cobrirem nos últimos anos. Segundo a Repórteres Sem Fronteiras (RSF), aproximadamente dois jornalistas são mortos por ano devido ao seu trabalho sobre desmatamento, mineração ilegal, grilagem de terras, poluição e outros temas relacionados ao impacto das atividades industriais.
Os ambientalistas também são alvos frequentes. De acordo com um relatório da Global Witness, 1.700 ativistas ambientais foram mortos entre 2010 e 2020.
Contudo, Dom Phillips era um dos repórteres mais experientes, tendo realizado coberturas na Amazônia por mais de 15 anos. Bruno Pereira, especialista em comunidades indígenas, também conhecia esse terreno melhor do que ninguém. Os dois partiram em uma missão juntos no Vale do Javari, onde traficantes de madeira, de drogas e de peixes transformaram o local em um polo de contrabando criminoso.
No entanto, os assassinos de Bruno e Dom não impedirão que a opinião pública descubra o que eles tanto tentam esconder.
Durante um ano, sob a coordenação da Forbidden Stories, mais de 50 jornalistas de 16 organizações de imprensa deram continuidade ao trabalho das duas vítimas, para que seu trabalho não fosse silenciado, como eles foram.
Bruno e Dom morreram por tentar nos informar sobre os crimes daqueles que sufocam o ‘pulmão’ do nosso planeta.
E os temas trabalhados pelos dois estão mais próximos do seu cotidiano do que você imagina. O apetite global por carne bovina, por exemplo, está acelerando a catástrofe, com cerca de dois terços do desmatamento na Amazônia sendo causado pela pecuária.
Em 2019, já havíamos coordenado o Projeto Sangue Verde (Green Blood), com 30 veículos de comunicação dando continuidade às investigações de jornalistas indianos, guatemaltecos e tanzanianos sobre os danos ambientais causados pela indústria de mineração.
Traçando as várias cadeias de suprimentos, nossos repórteres puderam rastrear as ações de dezenas de multinacionais, e terminaram chegando no coração do Vale do Silício, na Califórnia.
Sem jornalistas em campo, ninguém saberá o que está por trás das publicidades de industrialistas, promovendo ‘campanhas ecológicas’, uma mais verde do que a outra. Além do forte impacto que as mudanças climáticas produzem nas populações mais vulneráveis, assim como nos jornalistas e ambientalistas que tentam protegê-las e divulgá-las.
No entanto, é um direito da imprensa, proclamada oficialmente no Rio de Janeiro sob a égide das Organizações das Nações Unidas (ONU) durante a ECO-92 (Earth Summit), o poder de questionar as empresas poluidoras e os tomadores de decisões políticas que permitem que elas o façam, à moda de Não Olhe para Cima(filme conta a história de Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence), astrônomos que fazem uma descoberta surpreendente de cometa orbitando dentro do sistema solar que está em rota de colisão direta com a Terra, exibido pela Netflix).
Sem acesso a informações independentes, ninguém salvará o planeta”.
Assista ao trailer produzido pela Forbidden Stories sobre o Projeto Bruno e Dom:
Fontes: Forbidden Stories, Amazônia Real e Repórter Brasil
Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.