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Professor da rede pública fala dos desafios do ensino virtual durante a pandemia

Em meu último post – Educação em tempos de coronavírus – provoquei uma reflexão sobre o impacto do coronavírus na educação na perspectiva de uma família de classe média. Recebi vários comentários interessantes, incluindo o de um amigo de longa data, Felipe Rocha, que é professor da rede pública de ensino do Rio de janeiro. Considerei suas observações tão pertinentes que propus que escrevesse um texto com suas reflexões a partir de sua perspectiva para que eu pudesse divulgar em meu blog. Aqui está, e recomendo muitíssimo a leitura!
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Por Felipe Rocha dos Santos*

Sou professor da rede pública municipal da cidade do Rio de Janeiro – a maior rede pública de ensino da América Latina. Atuo em duas escolas do subúrbio carioca: o CIEP Padre Paulo Corrêa de Sá, na Favela do 77, no bairro de Padre Miguel, e o Espaço de Educação Infantil Professora Maria Cecília Ferreira, em Realengo, nas proximidades da Favela do Batan.

A leitura do artigo de Renato Guimarães, me trouxe a percepção das famílias da classe média durante a pandemia e me provocou a escrever algumas notas sobre como professores do ensino público estão desenvolvendo o seu ofício em tempos tão difíceis, para ajudar a enriquecer o debate.

Apesar de as realidades das escolas municipais do Rio de Janeiro serem bem distintas, estas escolas possuem duas características parecidas: estão localizadas em favelas da Zona Oeste da cidade e atendem aos estudantes de classes populares

Os direitos sociais “gritam”

Em seu artigo, Renato compartilha as preocupações das famílias de classe média envoltas no dilema entre “prover o currículo do ano” e a necessidade de repensar o seu como “participantes ativos do processo educacional”. Vindo para o campo dos professores da rede pública (pelo menos das escolas em questão), percebo que as inquietudes dos responsáveis estão mais relacionadas aos direitos sociais do que às questões próprias do âmbito educacional.

Para deixar isto mais claro, lembro de alguns exemplos reais que vivo nas duas escolas. 

“Como faço para manter esse menino quieto nesta casa pequena?”

Esta é uma pergunta que ouço com frequência, e que reflete a dificuldade em fazer o isolamento social morando numa casa com condições precárias e muitas vezes habitadas por um núcleo familiar extenso. Venho aprendendo que a relação com a rua nas favelas é diferente, por serem estas uma extensão das casas.

Esta pergunta reflete, portanto,  a inexistência de políticas de habitação para as camadas populares ao longo de décadas. Embora não seja uma questão educacional, nós – professores – temos que ser sensíveis a essa questão.

“Como posso saber se meu filho tem direito à cesta básica?”

Essa pergunta, por sua vez, tem relação com o direito de proteção à maternidade e à infância, mas pode estar relacionada também com a assistência aos desamparados. Infelizmente, tenho que relatar que as escolas voltaram a ser essenciais na alimentação diária dos alunos, algo que parecia ter sido superado até um passado recente. 

Outros exemplos poderiam ser apresentados, mas acredito que já é possível perceber que há uma relação direta com temas sociais mais amplos, extrapolando as questões estritamente pedagógicas. A tudo isso se somam as dificuldades enfrentadas pelas famílias para a realização das propostas das escolas, incluindo dificuldades financeiras e técnicas para acessar plataformas/ferramentas/conteúdos por meio da internet, além da dificuldade em fotocopiar as apostilas semanais ou a busca por conteúdos adicionais pelas famílias. 

Ainda dialogando com Renato, também acredito que, em tempos de pandemia, se escancara “o acirramento maior das desigualdades no país“, pela falta de acesso ao capital econômico ou cultural por parte das famílias dos estudantes da rede pública.

Coisa de louco! Felipe Neto, por favor, nos ajude!

Agora, preciso pontuar algumas das dificuldades encontradas pelos professores para desenvolver o seu trabalho pedagógico em tempos de pandemia.

Já temos no horizonte um problema que precisa ser superado: as dificuldades dos alunos de acessarem a internet. As duas escolas onde trabalho escolheram o Facebook e o WhatsApp como alternativas de comunicação com os estudantes. Pesou o argumento do não consumo (ou pouco consumo) dos pacotes de dados. Argumento imbatível!

E, aqui, precisamos destacar que a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro facilitou o uso da ferramenta Microsoft Teams para a Educação para professores e alunos. Aos docentes, foi oferecido um curso de formação para que viabilizassem suas aulas no modelo de ensino remoto, enquanto que, para os estudantes, foi ofertada uma conta de e-mail para poderem acessar as aulas

Reparem a dificuldade na comunicação dos gestores em níveis centrais com os profissionais que estão no chão da escola. Tudo certo para quem está no órgão central, mas a dificuldade do acesso à Plataforma Teams persistia diante do problema de consumo dos pacotes de dados dos estudantes e de seus responsáveis. Alternativas ainda estão sendo negociadas para que o Teams se torne o canal oficial entre professores e estudantes do sistema educacional do Rio de Janeiro.

Por ora, a opção do WhatsApp e do Facebook nos leva para o caminho da gravação das aulas. Um processo difícil porque não temos esse tipo de formação nas nossas graduações. Assim, levamos muito mais tempo para planejar e executar uma aula do que em “tempos normais”.

Hoje, o planejamento da aula demora mais tempo porque tenho que escolher como vou trabalhar determinado conteúdo. Depois de vinte anos de magistério, não preciso treinar para ministrar as aulas, mas me peguei treinando para realizar uma gravação de vídeo. 

Gravando em 3, 2, 1! Gravações realizadas e milhares de erros. Regravações! No fim, aprendo que não preciso parar a gravação porque posso editar posteriormente. Ih! O carro do ovo (“A galinha chorou! 30 ovos por 10 reais!”) passou na rua onde moro e criou um ruído na comunicação…

Depois de tudo gravado é hora de editar a aula no laptop. Edição concluída e o produto é uma aula de cinco minutos? Não é possível! Cinco horas de produção equivalem a cinco minutos de aulas? É para rir ou para chorar? 

Incertezas e aprendizados

Brincadeiras à parte, a pior sensação, para mim, ainda é a incerteza sobre como os estudantes receberão as aulas. E, aqui, está incorporada uma determinada compreensão de currículo. Não penso o currículo como um conjunto de conteúdos que precisam ser repassadas aos alunos durante o ano. Existem maneiras muito mais interessantes de acessar tais conhecimentos do que as aulas expositivas nas escolas. 

Compreendo o currículo como o conjunto de experiências pedagógicas que ocorrem em torno de um determinado conhecimento. Tal compreensão pressupõe um processo de escuta dos alunos e, por consequência, de valorização e protagonismo dos estudantes. 

Já passou o tempo de os alunos serem compreendidos apenas como consumidores de conteúdo (ou, pelo menos, já deveria ter passado). As aulas devem (deveriam) estimular a recriação dos conhecimentos e ao estudante cabe (caberia) o papel de parceria com os professores. Em outras palavras, os alunos são corresponsáveis pelas aulas e os professores são mediadores do processo de aprendizagem.

Durante a gravação dos vídeos, me deparei com uma dificuldade relacionada à falta de diálogo com os estudantes para se tecer o currículo, para trocar as experiências que construímos no cotidiano. Eu me sinto sozinho na condução de uma aula gravada, mas nutro a esperança de que as crianças reinventem em suas casas o que estou propondo.

E o que abordei nestes últimos parágrafos são questões de ordem pedagógica, mas que ainda estão em disputa no campo da educação. Ainda não é consensual essa determinada atuação profissional. 

Paulo Freire vive!

Em busca de uma possível conclusão para este texto, gostaria de reforçar que são muitas as questões que se apresentam aos professores, nestes tempos de pandemia, embora sejam distintas de acordo com a esfera de atuação (público ou privada) e com a situação sócio-econômica dos alunos.

Optei, então, por apresentar alguns elementos que influenciam a minha experiência de docência na rede pública, e destaco que nossas preocupações não são apenas de ordem pedagógica. Aliás, as questões sociais mais amplas, muitas vezes, são aquelas que norteiam as ações pedagógicas. 

Num período em que o patrono da educação brasileira – o eterno e gigante PAULO FREIRE – sofre ataques do ministro da educação, é significativo sinalizar que muito do que foi escritos acima é influenciado pelas obras de Paulo Freire. É um ato político! PAULO FREIRE VIVE E SEMPRE VIVERÁ!

Agora, assista ao trecho de um vídeo que produzi para uma de minhas aulas:

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*Felipe Rocha é professor, com mestrado em educação e especialista em educação física escolar, atuando no 1° Segmento do Ensino Fundamental nas escolas públicas municipais do Rio de Janeiro. É Professor, também, no curso de licenciatura em Educação Física na UNILAGOS – Araruama, ministrando as disciplinas Estágio Supervisionado e Introdução a Educação Física. Desenvolve seus estudos nas temáticas de currículo e intervenções pedagógicas na Educação Infantil.

Fotos e vídeo: arquivo pessoal

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Marcio Okabe
3 anos atrás

O que penso é tenho defendido é que as escolas abram mão do conteúdo este ano e adotem uma abordagem mais LIVRE. Os professores ajudem a INSPIRAR os alunos a criarem com o que tem em casa.
Não seria nada mal uma campanha que aproximasse crianças que tem acesso a internet e mais recursos com crianças mais pobres para elas JUNTAS compartilharem IDEIAS e EXPERIÊNCIAS.
Talvez o maior aprendizado neste momento, não seja conhecer a história da Mesopotâmia ou a composição de uma célula.
O maior aprendizado pode ser a EMPATIA e a a VIDA REAL.

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