Depois de tantas mobilizações contra o governo Bolsonaro, nos últimos quatro anos – acampamentos em Brasília, reivindicações junto ao STF e outras instituições, participação em reuniões com o Parlamento Europeu, conferências internacionais do clima e na ONU e processos no Tribunal de Haia -, a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) reuniu 30 candidaturas indígenas (25 mulheres), formando a Bancada do Cocar, para disputar vagas na Câmara dos Deputados e nas Assembleias Legislativas.
No domingo, 2 de outubro, elegeu duas mulheres líderes de destaque do movimento indígena – Sonia Guajajara (com 156.966 votos)e Célia Xakriabá (com 101.154 votos) – por São Paulo e Minas Gerais, respectivamente, ambas pelo PSoL.
Uma vitória importantíssima na luta contra retrocessos impostos pelo presidente e aliados desde 2019, e contra os candidatos conservadores e de ultradireita também eleitos deputados federais no último domingo, entre eles o inimigo número um do meio ambiente, o ex-ministro Ricardo Salles.
Em 2023, o Congresso Nacional – também o Senado! – terá algumas das figuras mais nefastas do governo de Bolsonaro ocupando seus assentos, como Sergio Moro (Justiça), Tereza Cristina (Agricultura), Damares Alves (Direitos Humanos) e Marcelo Queiroga (Saúde), entre outros.
Mas Sonia e Célia não estarão sozinhas para combater essa gente. Apesar de terem perdido a companhia de Joenia Wapichana – a primeira deputada indígena, eleita em 2018 por Roraima, que atuou de forma brilhante em defesa dos direitos indígenas, mas não conseguiu se reeleger -, elas devem se aliar a deputados/as ambientalistas, feministas e do movimento sem-terra e a parlamentares que integram a Frente Parlamentar Mista pelos Povos Indígenas, que Joenia preside desde 2019.
(vale destacar que, em abril desse ano, Joenia resgatou a Frente e a transformou em mista, reunindo parlamentares não só da Câmara, mas também do Senado).
A ideia da APIB e das duas lideranças é formar uma bancada mais ampla na luta contra a bancada ruralista e grupos que defendem a mineração em terras indígenas que, em entrevista ao Universa/UOL, Sonia chamou de Bancada da Terra. “Será um Congresso difícil e mais conservador, mas também estaremos com uma bancada forte. Vamos levar nossa luta para a institucionalidade”.
De acordo com as duas lideranças, a prioridade da Bancada do Cocar é a demarcação das terras indígenas, seguida do controle do desmatamento e a proibição da mineração, com novas políticas que incluem o resgate e o fortalecimento dos órgãos de fiscalização.
“Temos 27 estudos de demarcação concluídos que foram devolvidos para a Funai pelo governo Bolsonaro. Vamos articular a volta dessas demarcações. Independentemente se Lula for eleito, vamos pressionar o Estado brasileiro para demarcar nossas terras”, contou a futura deputada federal paulista.
“Vamos ser uma bancada combativa. Estamos preparadas para ‘mulherizar‘, ‘indigenizar‘ e ‘reflorestar‘ a política”, acrescenta Célia. “Antes, a gente entrava no Congresso com spray de pimenta; agora vamos entrar pela porta da frente. Vamos chegar para ocupar e incomodar com nossa voz, narrativa e identidade. Vamos entrar naquele lugar cheio de paletós com a força das nossas pinturas e com nosso cocar”.
Sonia Guajajara
Ela nasceu Sonia Bone em 1974 em Araribóia, no Maranhão, e é do povo Guajajara/Tentehar, que vive nas matas da Terra Indígena batizada com o nome do município.
Aos 15 anos, com o apoio da Funai (que ainda era um órgão de proteção aos indígenas), rumou para Minas Gerais para cursar o ensino médio, voltando a seu estado de origem para se formar em Letras e Enfermagem.
É pós-graduada em Educação e mestra em Cultura e Sociedade e, em 2013, tornou-se coordenadora-executiva da APIB, cargo que ocupou até iniciar sua campanha às eleições deste ano. Sua gestão foi forte e combativa e ajudou a fortalecer o movimento e a projetar os povos indígenas no Brasil e no mundo.
Em 2018, foi candidata à vice-presidência da República, na chapa com Guilherme Boulos pelo PSoL. Agora, é a primeira indígena eleita deputada federal pelo maior colégio eleitoral do país e terá Boulos como aliado no Congresso: ele foi o deputado federal mais votado por SP.
Sonia tem voz no Conselho de Direitos Humanos da ONU e já recebeu diversos prêmios e honrarias – locais, nacionais e internacionais. Destaco, aqui, a distinção da revista americana TIME, que, em maio deste ano, a elegeu como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo.
Em setembro, a organização do Prêmio Sakharov, o principal reconhecimento de direitos humanos da Europa, divulgou os indicados deste ano e Sonia está entre eles. Ela concorre com o jornalista e ativista australiano Julian Assange, criador do site Wikileaks, o presidente da Ucrãnia, Volodymyr Zelensky, o povo ucraniano e a Comissão da Verdade Colombiana. O escolhido será conhecido em dezembro.
Sobre sua eleição, Sonia diz: “Ganhar no maior colégio eleitoral no Brasil é reconhecimento da luta e da urgência das nossas pautas”. E promete ser “uma pedra no sapato” de Ricardo Salles.
“Ele deveria se envergonhar de sair candidato depois do que fez no Ministério do Meio Ambiente, como anistiar desmatadores e permitir a extração de madeira ilegal. A gestão dele foi trágica, e ele vai ser uma pessoa perigosa para os direitos indígenas no Congresso”, declarou ao Universa.
Célia Xakriabá
A ativista Célia Nunes Correa nasceu em 1990, na terra do povo Xakriabá, no município de São João das Missões, no norte de Minas Gerais. Completou sua educação básica e o ensino médio na Escola Indígena Estadual Xuburank, em sua cidade.
Em 2013, integrou a primeira turma de Educação Indígena da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB) e doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
É dela a bela e potente frase “Antes do Brasil da Coroa, existe o Brasil do Cocar”, que lançou nas redes sociais e ganhou ainda maior repercussão com o rapper Owerá MC, do povo Guarani, em sua performance ao lado do DJ ALOK.
O artista internacional abraçou a causa indígena e tem ajudado a disseminar sua cultura e a importância da floresta ao lado de Owerá e de artistas indígenas, como Mapu Huni Kuï e Rasu Yawanawá, entre outros (saiba mais aqui e aqui). A futura deputada federal mineira é autora do roteiro de um documentário que está sendo produzido com o apoio do Instituto ALOK, que será lançado no ano que vem, junto com o novo álbum do artista, inteiramente dedicado aos cantos indígenas.
Sobre sua candidatura, Célia destacou, à reportagem da Universa, que “reuniu viabilidade, preparo e ideologia — porque parecia que as candidaturas, em 2022, não poderiam ser ideológicas. Mas eu estava com os pés no chão. Fiquei surpresa com esse resultado, tinha colocado para mim que eram as forças ancestrais que iriam decidir”.
Juliana Cardoso, também eleita por SP
“São Paulo fez história e levou uma mulher petista, afroindígena, feminista e de luta para Brasília! Gratidão pelos mais de 125 mil votos que nossa candidatura de sonhos, resistência e luta recebeu!”.
Foi assim que a educadora, ativista e vereadora Juliana Cardoso (está no quarto mandato, iniciado em 2008), de origem indígena, celebrou sua vitória pelas redes sociais.
Ela é referência na defesa dos direitos humanos, tendo presidido a Comissão dos Direitos Humanos da Câmara Municipal em 2016.
No domingo, recebeu 125.517 votos e, a partir de fevereiro de 2023, trabalhará na Câmara dos Deputados ao lado de Sonia, da trans Erika Hilton e de mais 67 parlamentares de São Paulo.
Não dei destaque à eleição de Juliana porque meu objetivo era falar das lideranças que integram a APIB e atuam tanto no país como fora dele, focadas na causa indígena.
Indígena bolsonarista não conta!
A militar das Forças Armadas, atriz e evangélica Silvia Nobre Lopes – também conhecida como Silvia Waiãpi – foi eleita com 5.435 votos pelo Amapá, mas é aliada de Bolsonaro desde 2018, do mesmo partido do presidente, e apoia sua política anti-indígena, por isso não está com Sonia e Célia no destaque deste post.
Hoje, a equipe de Bolsonaro anunciou que Silvia foi escolhida para assumir a coordenação da campanha no Amapá para o segundo turno.
Pouco importa, então, sua origem e o fato de ser a única parlamentar indígena eleita em seu estado. Ela não representa os povos originários, como explicou Sonia Guajajara em 2018, quando Silvia foi convidada por Bolsonaro para integrar sua equipe de transição:
“Ela tem origem indígena, mas não é uma liderança, nem fala em nome dos povos indígenas. A nomeação de jeito nenhum vai significar apoio dos povos indígenas a esse governo. Somos um dos alvos prioritários!”.
Assim que Bolsonaro assumiu o governo, dois acontecimentos terríveis marcaram a vida dos indígenas. O desmonte do projeto Mais Médicos, que atendia essa população – especialmente onde nenhum profissional brasileiro queria atuar – e a nomeação de Silvia para a direção da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI).
Em julho daquele ano, 115 indígenas ocuparam o órgão, em Brasília, para pedir sua exoneração.
Em fevereiro de 2020, ela deixou o cargo, mas continuou orbitando no governo. Em 2021, foi nomeada Conselheira Nacional de Promoção da Igualdade Racial, cargo vinculado do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de Damares Alves, da qual é protegida.
E Kleber Karipuna, diretor executivo da APIB, afirma que ela não é reconhecida como liderança representativa dos povos indígenas e acrescenta:
“Silvia trabalha numa linha totalmente diferente da nossa e é do PL, mesmo partido do presidente que atacou os interesses indígenas quando estava no governo. O debate e embate dentro do Congresso com as nossas deputadas vai ocorrer a depender de como vai ser sua postura. Nossa linha é sempre de defesa dos povos indígenas”.
Fonte: Universa/UOL e APIB
Fotos: Mídia Ninja (Sonia) e Edgar Kanaykõ Xakriabá (Célia)