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Para esse Dia dos Namorados, Carlos Drummond de Andrade e o galanteio das aves

Para esse Dia dos Namorados, Carlos Drummond de Andrade e o galanteio das aves

Estava pensando em escrever sobre o namoro dos passarinhos quando me deparei com o texto de Carlos Drummond de Andrade, no livro “Ruschi, o agitador ecológico”, de Rogério Medeiros. Ensaiei algumas introduções pensando nas aves engaioladas que escuto cantar, como por exemplo os tangarás.

Fico imaginando um tangará escolhendo galhinhos especiais no meio da floresta, se preparando desde muito cedo, ensaiando danças super elaboradas com quatro ou mais pares para conquistar uma fêmea. Trancafiado, cantando, seria por desespero? Talvez. Bom, Drummond expressa isso tudo, inspirado por Augusto Ruschi, o “agitador ecológico” e como sempre, deixa uma mensagem direta: “…amai à vossa maneira, com os recursos e graças de que dispuserdes. (…)”

Então, para este Dia dos Namorados, deixo o recado do poeta…

O GALANTEIO DAS AVES
de Carlos Drummond de Andrade

Estou cansado de sequestros e assaltos; cansado da inflação, de debates sobre a inflação; do calor, das fraudes da Previdência Social; da basbaquice dos que nunca viram seio de mulher e acham o topless o fim do mundo ou a suprema delícia do universo; estou cansado do vazamento dos açudes que espalham a fome, a destruição e a morte, quando a função deles era criar riqueza e ajudar a vida; estou cansado.

E estando cansado, peço a todos que me deixem em paz no meu canto, observando o galanteio das aves. É, o galanteio das aves. Operação que me dá prazer e nenhum trabalho, pois na realidade quem observa por mim é o Augusto Ruschi, aquele brasileiro da melhor qualidade, sábio sem impostura, que vive lá no Espírito Santo em parceria com a natureza. Sábio valente, pois não se furta a protestar contra os atentados de toda sorte que o falso desenvolvimento inflige às fontes da vida humana, como ainda agora nesse caso da fábrica de celulose que, pelo despejo de seus efluentes, vai exterminando flora e fauna marítimas. Mas estou cansado também da poluição e deixo a Ruschi a dura tarefa de combatê-la. Só quero ver hoje o idílio das aves, que ele viu com o maior cuidado e interesse científico-amoroso e registrou em um livro precioso, recém-publicado: Aves do Brasil.

Claro que o livro não trata só de namoro entre aves. É um estudo que divulga o conhecimento da avifauna brasileira sob todos os aspectos, inclusive o amor. As ilustrações de Etienne e Yvonne Demonte trazem as aves para dentro de nossa casa. Quase que elas estão piando e voando. E Ruschi, anos e anos a fio, vai se chegando à espécies mais diversas, vai supreendendo o apelo erótico, o modo particular de cada ave cumprir seu destino genético. Aqui está jacamim-de-costas-cinzentas, meio assustado com o desmatamento da Amazônia (presumo). Chega a hora do acasalamento. Ele eriça a plumagem negro-púrpura, “abre e estende as asas, deixa-as tremular, para em seguida fazer movimentação do pescoço e da cabeça, frente à fêmea, que acompanha em parte essa cadência, ao mesmo tempo em que é emitido algum som e, às vezes, o esturro”, espécie de estrondo wagneriano. Ah, as aves semostradeiras!

Já o macho-araraúna, com sua belíssima coloração azul-cobalto, encontrável quer em Minas, quer no Piauí (ainda?), é de ficar longas horas, dias seguidos, acariciando a namorada com o bico. “Toca-a desde a cabeça até o crisso, e na maior parte do tempo permanecem em posição oposta.” Carícia total: “O bico inicia as incursões na cabeça e passa pelo restante do corpo, permanecendo muito tempo sob a asa, quando a fêmea as eleva, deixando que o companheiro faça a raspagem da pele. Esse movimento é realizado com emissão de voz, surda, rouca e baixinho.” Olha aí a arara ensinando requintes de chamego!

Carece falar na corte do beija-flor à sua amada? É um show com jogos de luz mudando a cor da plumagem, para fascinar a mocinha. Quanto ao tucano-de-bico-preto, esse maroto sabe tocar castanhola com o bico avantajado, que lhe alça e deita o corpo junto ao objeto de seus dengues.

Ritual complicado é o do galo-da-serra, que se processa pela manhã e à tarde, em vários dias, com a presença de alguns machos e pelo menos uma fêmea. Peitos estufados, eles cantam, gritam e dançam. Depois o casal faz ninho na pedra de uma gruta. O canto nupcial do corrupião sofre gradações: é baixo e rouco a princípio, depois mais sonoro e melodioso, e acaba suave ou agudo, conforme lhe dá na telha. E vai se repetindo até que a garota entregue os pontos. Os sanhaços-de-encontro brigam ruidosamente entre si, disputando a fêmea; segue-se o chilreio do vencedor, com muito bater de asas e momices de cabeça e bico. E os tiês-sangue partem para a agressividade, na disputa de uma noivinha.

Há muita luta entre as aves, para a conquista do direito de amar. Lutam galos-de-campina, gaturamos-bandeirinha, tantos outros. Findo o entrevero dançaril e musical, o macho é todo doçura, e até oferece um seixo à eleita para ser colocado à borda do ninho. (Mas isto é gentileza de pinguim, que Ruschi anotou, embora a ave só chegue ao Brasil trazida pela correnteza.) No Rio Grande do Sul e nos dois Mato Grosso, a fêmea do maçarico-oceânico toma a iniciativa do galanteio, e para isto o bom-deus-natura a dotou de cores mais vistosas que as do macho.

Eu passaria aqui a manhã inteira mostrando ao leitor como amam as aves do Brasil, e estou certo de que isto lhes aprazeria mais do que a atrasada discussão em torno do aborto, por exemplo — essa realidade social que se pretende manter ignorada ou proibida no papel, quando a vida difícil ou preconceituosa a tornou inevitável e tacitamente aceita, que remédio? Amai, passarinhos, amai, aves de médio e grande porte, amai à vossa maneira, com os recursos e graças de que dispuserdes. Amai e ostentai vossas plumagens deslumbrantes, se as possuirdes; se não as tiverdes, vale a melodia do canto; e se este for estridente ou sem graça, vale ainda o gesto de amor, o ato de amar. E que homens como o bom Ruschi vos protejam do aniquilamento com que a mentirosa civilização vos está ameaçando.

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Foto: Renato Rizzaro

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