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Obra da artista Criola, pintada em edifício em BH, pode ser apagada por intolerância e racismo

Em novembro de 2018, a artista e grafiteira mineira Criola pintou um mural de 1365 m² na fachada do edifício Chiquito Lopes, no centro de Belo Horizonte. Nele, retratou uma mulher negra nua, que “segura” um útero com a mão direita e tem o ventre atravessado por uma cobra coral.

A obra foi desenvolvida para o Circuito Urbano de Arte (Cura) com a intenção de apresentar “um caminho interno de honra às mulheres e seu sangue sagrado e os povos originários brasileiros e seus descendentes como legítimos guardiões dos portais da espiritualidade que sustentam o nosso país”.

Híbrida Astral – Guardiã Brasileira é uma obra inquietante, que chama a atenção, não só pelas cores vivas e pelos traços fortes, mas também pelos simbolismos que carrega.

“Obra de gosto duvidoso”

Criola faz parte da nova geração de artistas urbanos brasileiros e “conduz sua produção a partir de questões pautadas pelo seu universo feminino e pela busca da conexão com a sua ancestralidade“, explica seu site. Tem obras espalhadas pelo Brasil e em Paris.

O mural gigante que mistura componentes da cultura negra e indígena, foi bem recebido pela cidade e pelos moradores do condomínio, exceto por um deles – Elvécio Correa – que, insatisfeito com o que via – a medida que a obra avançava -, convocou uma assembleia para pedir sua interrupção.

Vale explicar, aqui, que, como para realizar a pintura, o Cura fez uma proposta para o edifício, que aprovou o projeto sem necessidade de convocar uma assembleia. Em casos como esse, basta que o conselho consultivo, formado por seis condôminos, decida.

Por considerar a proposta do Cura como uma oportunidade para fazer os reparos e a reforma necessários na parede do prédio – assumidos pelo festival sem qualquer custo para o condomínio -, o síndico Neivaldo Ramos acionou o conselho e apresentou a proposta, que foi aprovada.

Mais: o projeto ainda representava a valorização histórica e cultural do edifício. E o acordo ainda incluiu a manutenção da obra e da parede, pelo Cura, por cinco anos.

Então, a pedido de Elvécio, a assembleia foi realizada. Neivaldo conta: “Todos discutiram, todos indagaram, todos aplaudiram a adesão ao projeto Cura (exceto Elvécio), principalmente devido à reforma necessária para preservação e conservação do prédio”, explicou Ramos.

Foto: Reprodução/site Cura

“O pessoal do projeto Cura também esteve presente, prestou todos os esclarecimentos, inclusive sobre a aprovação do projeto e da obra pelo conselho deliberativo do Patrimônio Artístico e Cultural de Belo Horizonte”. 

Janaína Macruz, idealizadora e curadora do Cura, participou da assembleia e contou ao G1/Minas: “Foi super interessante, porque é raro em uma reunião de condomínio se discutir arte. Nós contamos a história do festival e tivemos um bom retorno dos moradores”.

Isso se revelou na votação: os 55 condôminos presentes votaram pela conclusão da pintura. O único voto contra foi o do morador que solicitou a reunião. Ele não aceitou o resultado e o caso foi parar na Justiça, com base em um argumento bastante subjetivo que já havia sido usado em conversas com o síndico, por Whatsapp: “obra de gosto duvidoso“.

Mas há um detalhe no processo que talvez defina sua real motivação: o reclamante se baseou na Lei 4.591, de 1964, ou seja, da época da Ditadura Militar, que determina que qualquer decisão no condomínio precisa da aprovação unânime de todos os moradores. No entanto, essa lei foi revogada no Código Civil de 2002, ou seja, não é válida.

O juiz da 22ª Vara Civil da Comarca de Belo Horizonte negou a liminar e Criola pode finalizar seu mural. No entanto, há mais de um ano o processo aguarda a sentença final. E tudo pode acontecer. Ainda mais num cenário social e político caótico e conservador como o que vivemos, que exacerbou a luta antirracista, não só no Brasil como no mundo.

Racismo e petição

Foto: Reprodução/site Cura

Para Criola, Janaína e os advogados envolvidos no processo, não há dúvida de que o que move o morador é racismo.

“Eu comecei a pintar justamente por não me ver retratada nos outdoors, na publicidade, que sempre apresentavam a imagem de uma mulher branca, de cabelo liso. Quando a gente faz uma linha de força, incomoda, mesmo, porque são as pessoas pretas – que são invisibilizadas – que estão sendo retratadas ali”, explica a artista. 

“As cores que eu escolhi não foram aleatórias. A personagem não foi aleatória. Foi uma resistência, mesmo! Está além de mim. Esta além dessa pintura. É uma ferida, mesmo. O Brasil precisa olhar de frente pra essa ferida e curar”, completa.

Janaína acrescenta: “A pintura mostra uma mulher negra e nua e a artista é uma mulher negra. É explícito que é um ato racista”.

Em seu Instagram, o Cura contou que, devido à “relevância da luta contra o racismo em tempos como o que estamos vivendo, onde há uma nítida disputa de narrativas com o crescimento do fascismo, bem como a insegurança jurídica causada pela irresponsabilidade de uma ação judicial, sem qualquer amparo legal, e que coloca em risco o trabalho Híbrida Ancestral da artista Criola, o Cura decidiu entrar no processo judicial como parte interessada, na qualidade de Assistente dos Réus e com poderes para apresentar recursos”.

O perfil ainda explica que as advogadas feministas e antirracistas do Coletivo Margarida Alves, que fazem assessoria jurídica popular e têm “importante trajetória no campo dos direitos humanos, já apresentaram as razões de fato e de direito pelas quais o Cura entende que o processo deve ser julgado totalmente improcedente, preservando-se a re-existência da obra de Criola, um símbolo de luta do povo afrodescendente brasileiro”.

Enquanto isso, a artista lançou um abaixo assinado nas redes sociais para ser anexado ao processo. A intenção é chegar a 20 mil assinaturas. Até agora, 23/11, às 20h50, tem 18.445. Este documento pode ser um reforço que representa o “reconhecimento do público em relação ao valor cultural da obra e o pedido de celeridade do julgamento”.

Que tal assinar a petição agora?

Acompanhe Criola em seu Instagram, conhece o seu Projeto Curadoria, que lançou com outras mulheres em 2017 e resultou no e-book Mulheres Criativas – 100 Histórias de Mulheres Inspiradoras.

Maior festival de arte urbana do mundo

Mirante da Sapucaí / Foto: Cura/Divulgação

O Cura foi lançado em 2016 na capital mineira e se transformou no maior festival de arte pública de Minas Gerais, exibindo pinturas em empenas (paredes laterais de edifícios).

As obras podem ser vistas de longe: do Mirante da Sapucaí (foto acima), das avenidas Presidente Antônio Carlos e Cristiano Machado e da Rua dos Caetés e formam o “único mirante de arte urbana do mundo“. É maravilhoso! No site, um mapa indica onde as obras estão expostas.

Na edição deste ano – realizada de 22/9 a 4/10 – o tema foi a arte dos povos originários – indígenas e negros – traduzida por 18 artistas, que espalharam suas obras pelo hipercentro e pela região da Lagoinha.

O artista indígena Jaider Esbel foi o único que não pintou mural: instalou duas serpentes gigantes no Viaduto Santa Tereza, o que causou grande impacto em quem passava pela via. Teve gente sem noção que divulgou nas redes sociais que se tratava de uma obra comunista, feita pelos chineses, por causa das cobras. Que tempos…

Devido à pandemia, o festival também foi realizado virtualmente, com lives que abordaram as narrativas das diásporas africana, indígena e periférica na arte. 

O convidado especial foi o líder indígena Ailton Krenak – autor de dois livros essenciais: Ideias para Adiar o Fim do Mundo e A Vida Não é Útil – que, lá de sua aldeia às margens do Rio Watu, ou Doce como o chamamos, fez uma belíssima explanação e respondeu perguntas bastante interessantes dos espectadores.

Agora, assista ao vídeo que resume o processo criativo de Criola. Em seguida, conheça os artistas e suas obras em andamento, na edição do Cura deste ano.

Foto: Reprodução do Instagram/Cura

Fontes: Instagram (depoimentos de Criola, Cura), G1/Minas, Jornal Hoje em Dia/Globo

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