O cacique Aritana se foi: o povo Yawalapiti perdeu seu líder generoso e conciliador, um dos mais altivos do Xingu

UM OUTRO CÉU
Sumiu, mesmo!?
desde sempre esteve oculto

nas dobras do tempo
inescapável como o raio em noite escura
desce à terra pra trazer dor e loucura.

Escondido nestas dobras
dormita feito obra de um gênio que malogra,
pois nunca soube do bem
que das alturas o Céu contém. ?
Ailton Krenak
5/7/2020

No momento em que recebi a notícia da morte do Aritana, eu assistia a uma live linda com Ailton Krenak, ambientalista e uma das principais vozes do saber indígena. Tomada pelo amor que suas palavras sempre tão sábias e certeiras provocam em mim e pela tristeza ao saber do desaparecimento do cacique Yawalapiti, não tive dúvida: escrevi para Ailton.

Sem jeito, pedi que descrevesse o que sentia e o que, pra ele, representava mais este momento de tanta dor. “Mônica, querida, que tristeza. Não consigo fazer uma fala neste sentido. Tristeza não tem fim”, escreveu. Compreendi, claro, e agradeci, me desculpando pelo pedido atabalhoado.

Alguns minutinhos depois, Ailton me enviou o poema com o qual iniciei este texto. “Este poema responde este momento pra mim. Tive esta visão diante de tantas mortes. Uma lista de companheiros de muitas aldeias”, explicou em seguida.

Foto: Alberto Cesar Araújo / Amazônia Real

Recebi o poema como um presente. Uma homenagem especial e amorosa de Ailton para Aritana e todos os indígenas cujas vidas estão sendo ceifadas de forma tão veloz e cruel, nesta pandemia.

A doença já chegou a 148 povos indígenas, matando 633 e infectando 22.325, de acordo com dados do Comitê Nacional de Memória e Vida Indígena atualizados hoje, às 12h10.

No Xingu, a Covid-19 chegou em meados de junho e está se alastrando. Pela primeira vez em mais de 50 anos, o ritual tradicional do Quarup, que homenageia os mortos, foi cancelado.

A Covid-19 entre os Yawalapiti

Quarup, na aldeia dos Yawalapiti Foto: Renato Soares

Aritana Yawalapiti era uma das principais lideranças da Terra Indígena do Xingu (TIX) (batizado pelos irmãos Villa-Lobos como Parque Indígena do Xingu) e vivia na aldeia Tuatuari, que leva o nome do rio que a margeia e fica a cerca de 8 km do Posto Leonardo.

Em junho, perdeu o irmão, Matariwá, e um primo e, em 12/7, uma sobrinha, Nhapukalo. Todos diagnosticados com Covid-19. A jovem aguardava um leito de UTI no hospital de Água Boa, em Canarana, que só foi liberado na tarde do dia em que faleceu.

Logo depois de perder seus parentes queridos, o líder Yawalapiti começou a enfrentar problemas respiratórios. O jornalista Sergio Valente contou, em sua coluna no UOL, que “ele não queria deixar a terra indígena devido às condições dos hospitais da região, onde não há UTI (Unidade de Terapia Intensiva), e também da capital de Mato Grosso, Cuiabá, onde a pandemia levou ao colapso de unidades hospitalares, porém foi convencido a viajar”.

Vale contar, aqui, que, com a pandemia, o Posto Leonardo foi adaptado para cuidar de doentes leves infectados por coronavírus. Talvez por isso, Aritana resistiu antes de aceitar ir para um hospital na cidade. Em meio a essa movimentação, uma campanha de financiamento online foi lançada para arrecadar fundos para equipar melhor esse posto como uma espécie de “hospital de campanha” e apoiar o povo Yawalapiti no combate à doença. A ideia é que os indígenas da região só saiam para ir à cidade em casos muito graves.

Em 19/7, o cacique cedeu aos apelos da família e dos amigos e foi internado em um hospital municipal de Canarana, Mato Grosso, um dia depois de o cacique Raoni, da etnia Kayapó, dar entrada em um hospital de Sinop, também no Mato Grosso, com hemorragia digestiva (Raoni teve alta em 25/7).

O estado de saúde de Aritana era muito preocupante devido à sua idade – tinha 74 anos – e por ser hipertenso. Ele chegou a apresentar melhora no quadro clínico geral e até voltou a se alimentar, segundo a família, mas logo foi transferido para um hospital particular em Goiânia e internado na UTI para ser entubado, pois seu pulmão já estava bastante comprometido. Seu quadro se manteve estável até falecer hoje cedo.

Nobre e generoso guerreiro

Aritana em 2003, no Quarup de Orlando Villas-Bôas – Foto: Renato Soares

Aritana era filho de Paru Yawalapiti e Tepori Kamaiurá, o primeiro. Ainda menino, conheceu os irmãos Cláudio e Orlando Villas-Bôas que, em 1961, junto com Paru e seu tio, o cacique Raoni, criaram o Parque Indígena do Xingu, uma reserva de 26 mil km², que garantiu a cerca de 7 mil indígenas de 16 etnias – aweti, ikpeng, kaiabi, kalapalo, kamaiurá, kisêdiê, kuikuro, matipu, mehinako, nahukuá, naruvotu, wauja, tapayuna, trumai, yudja e yawalapiti – o direito de viver em suas terras ancestrais.

Aos 19 anos, por sua liderança nata, Aritana tornou-se cacique. Antes de assumir “a nobre missão, passou cerca de 5 anos em reclusão, recebendo ensinamentos e orientações que o preparariam para essa nova etapa de vida, de liderança e proteção de seu povo”, publicou, hoje, o Instituto Raoni em seu perfil no Instagram.

E o amigo Renato Soares, fotógrafo e indigenista, acrescenta: “Aritana parece ter vindo pronto para liderar. Nasceu pra isso. É muito raro. São poucos esses personagens como Aritana. Posso citar Raoni, Afukaká Kuikuro, Tafukumã Kalapalo…”.

Sua trajetória como líder Yawalapiti foi marcada pela luta em defesa dos direitos dos indígenas, “especialmente a demarcação de terras, a preservação ambiental, a saúde e a educação”.

Aritana e Renato Soares, na aldeia Tuatuari, em 2017 – Foto: André Leite

Sempre sábio, respeitoso, generoso e amoroso, Aritana ficou conhecido por sua habilidade em promover o diálogo entre os povos indígenas e a sociedade não-indígena, quando chegou a representar diversas etnias, pela confiança que conquistara. “Aritana era um conciliador“, destaca Renato Soares, que o conheceu em 1994 na casa de Orlando Villas-Bôas. Por isso, também, dominava diversas línguas indígenas.

“Muitos conflitos entre etnias deixaram de acontecer por causa de Aritana, muitas desavenças, muitas brigas familiares foram esquecidas por causa dele, em qualquer aldeia ou etnia”. E acrescenta:

“Ele foi criado com princípios que valorizavam o outro, perceber o outro, olhar para o outro, se preocupar com o outro, cuidar do outro. Era uma pessoa que dificilmente dizia não, que procurava sempre atender o que o outro precisava. Foram raras as vezes em que eu o vi dizer ‘não’ pra alguém”.

Foto: Renato Soares

“Se você me perguntar se conheço alguma pessoa feliz, de fato, te respondo que Aritana era um homem feliz. Tinha seus problemas, como toda liderança, claro, mas resolvia as questões com uma leveza tão grande. Em qualquer circunstância, sua voz era muito serena, e muito firme”. E completa:

“Apesar da simplicidade, era uma das figuras mais enigmáticas que já conheci. Uma pessoa que estava à frente deste tempo. Não acredito que vá existir outro líder como ele. Era uma figura poderosa, que sabia que tinha esse poder e sempre se comportou de forma digna, com muita leveza. Um guerreiro nobre. Difícil explicar”.

“Tive a honra de conviver com esse homem mais de 25 anos da minha vida: saí pra pescar e caçar com ele, andamos na mata, conversamos, choramos juntos no falecimento do irmão. Tive a honra de lutar ao lado dele pra mostrar o indígena com dignidade para a sociedade. Conhecê-lo melhorou muito em mim, aprendi muito com ele. Me sinto triste, hoje, esfacelado por sua morte, mas feliz e honrado por tê-lo conhecido, por ter convivido com ele”, finaliza Renato.

Aritana era, por tudo isso, um dos líderes mais altivos do Xingu, conhecido e muito respeitado no país e fora dele.

Foi campeão de huka-huka, a luta esportiva tradicional do Xingu. Quando o movimento indígena pela integridade do território do Xingu inspirou uma novela de TV, nos anos 70, o líder ganhou grande projeção. A história foi batizada com seu nome – que rapidamente caiu na boca dos brasileiros -, filmada em sua aldeia e ficou no ar de 1978 a 1979. O ator Carlos Alberto Ricelli interpretou Aritana na tela.

Homenagem em livro

O sonho de publicar um livro sobre o povo Yawalapiti é antigo, mas, no final do ano passado, deixou de ser apenas um desejo de Renato Soares. Na verdade, do fotógrafo e de Aritana. “Há pouco mais de suas semanas, uns dias antes de ser internado, ele falou comigo sobre o livro”.

Mas a ideia de Renato é mais ambiciosa: a publicação de uma série de livros sobre os povos indígenas que tem fotografado nos últimos quase 30 anos para seu projeto Ameríndios do Brasil.

Provocado pelo fotógrafo e editor Valdemir Cunha, da Editora Origem, e impulsionado pela revolta de tudo que tem acontecido com esses povos desde que Bolsonaro assumiu a presidência, Renato decidiu que tava na hora de publicar a obra.

O projeto está aprovado na Lei Rouanet, mas é muito difícil conseguir patrocínio, ainda mais com a pandemia. Então, ele aderiu a uma campanha de financiamento coletivo, que, em uma semana, arrecadou quase metade da meta.

Com a morte de Aritana, nada muda no projeto que já tinha um espaço especial dedicado ao líder Yawalapiti, e a campanha continua por mais 45 dias.

Do que o cacique tinha medo?

Foto: Alejandra Faúndez

Em 2017, Renato Soares organizou uma expedição fotográfica ao Xingu, na aldeia Tuatuari do povo Yawalapiti. Escrevi um pouco sobre ela, aqui. Foi quando conheci Aritana e me apaixonei por ele, pelas crianças, pelas mulheres, pelos rituais, pela cultura, pela vida desse povo.

Foram sete dias intensos e inesquecíveis, que deixaram marcas profundas na alma e demoraram ainda um tempo pra sair “da pele”, mesmo já de volta a São Paulo.

Também pudera… todos os dias eles se paramentavam, se pintavam, cantavam e dançavam pra nós. Todos os dias alguns deles almoçavam e/ou jantavam com a gente. Todos os dias contavam histórias – algumas muito fantásticas envolvendo Mamaés. E eu me pegava de boca aberta, ouvindo cada palavra.

Todos os dias as crianças nos levavam para nadar no rio. Todos os dias admirávamos a feitura do beijú nas grandes ocas, as mulheres com suas crianças. Todas as noites, admirávamos um dos céus mais estrelados que já vi na vida. Todos os dias víamos a união, a cooperação e a imensidão da aldeia.

Esta não foi a primeira vez que visitei uma aldeia indígena (visitei os Krahô, em 2016), mas conhecer Aritana e seu povo foi uma das mais incríveis jornadas que eu poderia experimentar. A figura de Aritana estava no meu imaginário desde menina, por causa da novela, claro. Mas poder vê-lo com meus olhos e constatar sua grandeza, foi uma benção.

É, até hoje, impossível descrever essa aventura por inteiro. Sempre que lembro dela, surgem novas sensações e o desejo de lá voltar. E a alegria de ter conhecido esse povo e seu líder amoroso. Só posso honrar ter convivido, mesmo que tão rapidamente, com eles.

Mas claro que esta viagem também foi especial graças à companhia de todos que do grupo fizeram parte. Do Renato, da Lucíola Zvarick (sua esposa, que se tornou grande amiga), do André Leite (braço direito de Renato nos negócios e nas aventuras) e das demais criaturas que toparam viajar de avião, de ônibus (modelo dos anos 80), de barco (por seis horas!!!) para descobrir essa etnia. Falo de todos no texto que escrevi logo que voltei de viagem.

Conheci gente muito bacana e revi a chilena Alejandra Fajundez, uma mulher muito especial e sensível que conheci na aldeia dos Krahô.

Logo depois da viagem, ela dedicou um poema para cada um de nós. Também o fez à Aritana, com um detalhe: depois que viemos embora, ela permaneceu na aldeia alguns dias e teve a oportunidade de conviver por mais tempo com o líder Yawalapiti.

Hoje, triste por sua morte, Alejandra escreveu um post lindo em seu perfil no Facebook e publicou o poema, que reproduzo aqui, para finalizar esta homenagem. Afinal, não é todo dia que se pode começar um texto com um poema e terminar com outro. Aritana, em vida e na ausência, inspira poesia.

Alejandra escreveu assim: “Estar com Aritana foi uma experiência muito marcante e transformadora para a minha vida, de um aprendizado e valor incalculáveis conhecer sobre liderança, sobre humanidade e sobre o povo do Xingu. Lembro-me que, nesses dias, eu e André (Leite) tivemos uma conversa muito profunda com Aritana sobre o medo, que deu origem a este poema que partilho e que, agora, está ecoando, com muita dor, no meu coração:

DO QUE VOCÊ TEM MEDO?
7 agosto de 2017

O Cacique tem medo.
Um medo profundo que não diz e que vai domar devagar.
O Cacique tem medo que a chuva e o vento de outubro inundem sua oca e adoeçam seus netos.
O Cacique tem medo que os donos das terras vizinhas movam as cercas à noite, ou coloquem fogo na floresta e, assim, escondidos e malditos, construam caminhos com pavimento sem permissão.
O Cacique tem medo que seus filhos esqueçam palavras na sua língua e que chegue o dia em que, na sua aldeia, ninguém mais lembre delas.
O Cacique tem medo que as aldeias vizinhas esqueçam que as lutas são um jogo e se transformem em inimigos sem perceber.
O Cacique tem medo que os maus políticos continuem ganhando eleições e ameacem seus direitos e suas vidas.
O Cacique tem medo da seca, porque seu povo passa fome e não é mais como antes.
Mas o Cacique Aritana guarda seus medos em silêncio, porque quando toda a sua comunidade dorme e a onça ofegante surge com seu lamento faminto, ele pega sua lanterna, caladinho sem acordar ninguém.
Levanta-se sereno e nu da sua rede, e sem armadura nem lança sai ao vento na noite, a percorrer a sua aldeia para proteger o seu povo, para mandar mensagens de aviso para a fera selvagem….
sai sozinho, erguido, disposto, corajoso, porque sabe que pode matar, se necessário, porque há muitos anos perdeu o medo de feras”.

O cacique Aritana se foi. O povo Yawalapiti perdeu seu líder amoroso, generoso, conciliador. Perdemos todos nós, brasileiros.

Fotos: Renato Soares

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Mônica Nunes

Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.