A noite dos Mamaés

Kwarup é uma festa em homenagem aos mortos realizada entre as etnias do Alto Xingu. É a celebração de passagem onde o espírito do homem vai habitar a aldeia dos mortos. E acontece em uma única noite.

Primeiro, um toro de madeira da árvore Mari é cortado e tem a base enterrada no pátio da aldeia. Os homens se juntam ao seu redor para entalhar e pintar as formas do morto. O toro é adornado com o Tucanapi, um cocar de penas de Tucano, de Arara, de Japim e as penas sagradas do Gavião Real. Também amarram braçadeiras coloridas à sua volta e o colar de caramujo Muirapeí decora seu pescoço. Neste momento, o espírito do homenageado ganha direito a uma nova vida nas formas do Kwarup. E o homem já está presente para o cerimonial!

As fotos abaixo mostram bem como são adornados os toros para esta celebração.


Nessa noite, ninguém dorme. É durante o ritual do Kwarup que os espíritos dos ancestrais retornam à aldeia para levar aqueles que morreram recentemente. A celebração é longa, pois todos se encontram para contar histórias daqueles que se foram, suas aventuras pela vida, suas sortes e seus feitos. Nessa noite, a comunidade também recebe visitantes de outras aldeias e é, ali no pátio, que todos se encontram para dar continuidade aos rituais.

Diz a lenda que, numa noite fria, o tronco do Kwarup pediu a um homem que acendesse uma fogueira porque ele estava com frio. O homem atendeu seu pedido, mas logo caiu morto no pátio da aldeia. Desde então, todos os homenageados ganham uma grande fogueira para se aquecerem nessa noite. Esta fogueira é também o fogo dos acampamentos dos convidados no entorno da aldeia.

Os integrantes da aldeia visitante fazem uma imensa roda. Todos se juntam e cantam até chegarem ao pátio central, onde estão os Kwarups. O fogo cerimonial deve ser levado direto ao acampamento. É também, neste momento, que os campeões fazem seus desafios: entram na área onde estão os toros e, lá, tiram os cinturões que adornam os Kwarups, desafiando o campeão da casa para a luta do Huka-Huka.

Assim que chegam ao centro da aldeia fazem uma tremenda algazarra: todos pegam os longos troncos de pindaíba, acesos com fogo, e “batem em retirada” para os acampamentos ao redor da aldeia.

Os acampamentos ficam ao ar livre, pois nesta época não chove. As fogueiras criam um clima misterioso e logo eles se reúnem para contar histórias para os mais jovens. Este são momentos de pura união, no qual todos ali estão homenageando não apenas aqueles que se foram, mas todos os seus ancestrais. É nesta noite de histórias que eles revivem seu passado glorioso.

Mamaé quer dizer espirito. Tudo que tem vida tem seu Mamaé. Das árvores à floresta, dos peixes aos rios que singram sinuosos pelos vales do Xingu. Os pássaros e todos os animais têm seu Mamaé, menos a Irara (espécie de fuinha), por ser muito antiga, e a Cutia, por não guardar segredos.

Mamaé é o indivisível, pois está por toda parte sem precisar estar.

Agora, mergulhe nesse universo com as imagens que fiz em uma das várias celebrações de Kuarup que presenciei no Alto Xingu, nos últimos 20 anos…

Fotos: Renato Soares

2 comentários em “A noite dos Mamaés

  • 16 de fevereiro de 2017 em 5:53 PM
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    Belíssimas capturas e textos indígenas ????

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Renato Soares

Fotógrafo e documentarista especializado no registro de povos indígenas, bem como da arte, cultura e biodiversidade do país. Mineiro, desde 1986 realiza viagens para retratar formas de expressão cultural dos grupos étnicos brasileiros. Colaborador do blog Por Trás das Câmeras, Renato descreve o que chama de "Diário de Campo". É autor ainda do blog Ameríndios do Brasil, mesmo nome do seu projeto de fotografia com os índios