No Amapá, mulheres produzem biocosméticos como alternativa ao garimpo, inspiradas pela floresta preservada

Por Carolina Pinheiro*

No Alto Araguari, interior do Amapá, um foco de retomada da cultura popular abre janela para a valorização do conhecimento ancestral, colocando os povos residentes no seu lugar de direito. Um grupo de quase 30 mulheres faz uso sustentável dos recursos naturais produzindo biocosméticos, garantindo renda e qualidade de vida para os ribeirinhos.

Associação Sementes do Araguari, fundada em 2020, durante a pandemia, é resultado de anos de luta dos moradores, que passaram por período de instabilidade após a extinção de um garimpo que operava desde 1974 no local. O encerramento da atividade, em 2009, gerou impacto socioeconômico imediato na realidade das pessoas.

Fernanda Brandão, analista ambiental do ICMBio, esclarece que o fechamento do garimpo Capivara provocou um hiato na vida das famílias, que precisaram se readaptar. “Nosso intuito, como órgão responsável pelo fim da prática ilegal, era o de apresentar outras possibilidades para que a comunidade pudesse decidir, dentro do seu território, o que tem valor e o que deve ser cuidado,” afirma.

Doraci Soares do Nascimento, participante da Associação Sementes do Araguari, é coletora de sementes, produtora de biocosméticos e – aqui, ela trança com fibras da mata um tipiti, usado no fabrico da farinha de mandioca. Foto: Maurício de Paiva.

Na busca por alternativas, mães, tias e avós do lugar conceberam a ideia de produzir biocosméticos a partir da matéria-prima extraída das matas. Frutos e plantas como andiroba, pracaxi, breu-branco, copaíba e fava são utilizados na fabricação de sabonetes, pomadas, óleos in natura e velas repelentes. Só de sabonetes elas produzem cerca de mil por mês.

Segundo Arlete Pantoja, coletora de sementes e presidente da associação, o entendimento de que é possível explorar as riquezas sem impactar o ambiente mudou a forma de interação entre moradores e floresta. “A conquista de independência, salário e condições mais dignas era um sonho antigo, que descobrimos ser realizável por meio do convívio harmônico com a natureza”.

As agroextrativistas contam também com três pontos de venda em Macapá, um na sede do ICMBio, localizado também na capital amapaense, e outro em Curitiba, além de participarem de feiras pelo Brasil.

Da coleta ao beneficiamento de extratos, o processo ocorre dentro de um ciclo de chuvas e cheias. São seis meses de maré cheia e seis de maré baixa. A coleta da andiroba, por exemplo, acontece dentro da água. É a correnteza que traz os frutos caídos das árvores para perto das casas dos ribeirinhos, onde serão recolhidos pelas crianças em paneiros.

Cada paneiro – um cesto trançado, de fibras, feito artesanalmente – armazena cerca de 14 quilos de frutos. Ao passar pelo processamento na prensa das sementes, tal pesagem corresponderá a dois litros de óleo. Portanto, uma tonelada terá a medida de 300 litros. Em seguida, é realizada a mistura dos materiais, que são levados ao fogo, colocados em formas, depois congelados, embalados e acondicionados em basquetas, nos barcos, para transporte.

Estefany Furtado, cientista ambiental e mestre em Biodiversidade Tropical pela Universidade Federal do Amapá (Unifap), fala sobre a relação dos caboclos com as sementes:

“Acho lindo como eles conhecem todas as plantas, sabem onde pisar, que árvores não sacudir, em qual delas tocar o terçado [grande facão] para fazer barulho ou chamar por ajuda. É uma relação de respeito com a natureza, mas também de necessidade. Eles precisam conhecer tudo para sobreviver – caçar, buscar plantas na floresta, fazer medicamentos. Naquele território, são eles os professores”.

Linha de produtos da Sementes do Araguari. Foto: Associação Sementes do Araguari

Extrativismo, ação dinâmica 

As três décadas de atuação predatória do garimpo, contudo, refletem uma problemática recorrente desde a chegada dos colonizadores às Américas. Para os habitantes do Rio Araguari, compreender os impactos nocivos da atividade do garimpo e assimilar os impactos positivos do extrativismo como ação potencial para garantir renda mudou a realidade da comunidade.

Na região de divisa entre as Florestas Nacional e Estadual do Amapá e o maior parque nacional do Brasil, o Montanhas do Tumucumaque, a reconexão das populações com a floresta foi um aceno histórico como forma de resistência dos povos tradicionais.

Laura Furquim, arqueóloga e mestre em Arqueobotânica da Floresta Amazônica pela Universidade de São Paulo (USP), pondera a respeito de um cenário impactado pela invasão europeia:

“Eu acho que a volta do olhar e da relação com as práticas extrativistas faz parte de uma retomada após um período de longa duração de colonização alimentar, dos saberes, dos espaços e dos corpos. As mulheres indígenas falam que existe um conjunto do corpo, território, e conhecimento”.

Julia Leal amassa a pasta de mandioca para preparo de farinha; a mandioca é um recurso florestal ancestral entre os ribeirinhos amazônicos, base da alimentação de numerosas comunidades. Foto: Maurício de Paiva

A pesquisadora cita Paulo Borari, pajé e antropólogo do Baixo Tapajós, que fala sobre um processo de reemergência que estaria em curso nas comunidades amazônicas, “como se as pessoas tivessem submergido, na água, para passar por um período muito difícil, que foi o colonial e neocolonial – e entendo o período colonial como algo que se estende até o presente – para; enfim, emergir, retornar à superfície”.

Ao olharmos para o registro arqueológico, notamos que essas práticas agroextrativistas, da agrobiodiversidade, e sobretudo de agroflorestas, são milenares. “Quanto mais conhecemos os vestígios arqueobotânicos, paleoecológicos, dos sítios antigos, mais vemos que, desde o início da ocupação humana da Amazônia, há 12 mil anos em alguns lugares, já existia uma prática combinada, uma dieta generalista, ou seja, que permeia a prática de agrofloresta”, reitera Laura.

Rio Araguari em área da Floresta Nacional do Amapá. Foto: Maurício de Paiva

Matas são bibliotecas 

Pensar em soluções para a Amazônia contemporânea força a quebra de paradigmas e estabelece paralelos. No Alto Araguari, as agroextrativistas têm o conhecimento empírico, mas ainda aprimoram o método para que possam estabelecer ponte com o conhecimento acadêmico.

Para Therezinha de Jesus Soares dos Santos, farmacêutica do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa), o ensinamento da prática farmacêutica é importante para que as ribeirinhas desenvolvam técnica de manipulação da matéria bruta provinda das plantas.

Desde 2015, ela ministra oficinas de capacitação – chamadas Farmácia da Terra – para as mulheres envolvidas no projeto. “Reitero sempre a importância de pensar o local em todo o seu potencial, pois são diversas as possibilidades. Para se ter ideia, há mais de cem espécies de copaibeira na floresta, sendo que 30% a 50% delas possuem uma ação terapêutica”, diz.

A farmacêutica alerta, porém, que se, por um lado, o cenário é favorável, por outro, falta incentivo. “Há demanda por equipamento, espaço próprio para o processamento dos materiais, maquinário, aquisição de rótulo e embalagens. Não temos uma governança preocupada em atender a população. Portanto, o trabalho é redobrado e a luta, diária”, diz.

Junior Pantoja Leal identifica planta nativa da região do Rio Araguari; comunidades locais buscam aliar o conhecimento acadêmico ao conhecimento empírico, transmitido pelas gerações a partir da experiência na floresta. Foto: Maurício de Paiva

A economia da floresta em pé 

As conquistas são gradativas em um país que segue na contramão da agenda climática global. Na era do tipping point (ponto de inflexão), “ciência, tecnologia e fortalecimento das populações tradicionais são o caminho decisivo para a emergência de atividades econômicas capazes de manter a floresta em pé e evitar a destruição dos serviços ecossistêmicos dos quais todos dependemos, a começar pelo sistema climático”, conforme diz o sociólogo Ricardo Abramovay, em estudo publicado em 2019.

Estefany Furtado, da Unifap, enfatiza que entraves como a falta de assessoria e deinvestimento em políticas públicas são gargalos para a viabilidade econômica de comunidades tradicionais: “Falta assistência, educação e saúde nas localidades, o que compromete o modo de vida das populações, que muitas vezes são obrigadas a se deslocar da zona rural para a urbana”.

Hoje, as sementeiras do Araguari chamam a atenção do novo mercado. Bioeconomia e agroecologia estão no centro do debate sobre a salvaguarda cultural e valorização da sociobiodiversidade da Amazônia.

Dados do relatório sobre o estado das florestas mundiais publicado pela FAO (órgão da ONU para Alimentação e Agricultura) em 2020, confirmam que, para virar a chave do desmatamento e da degradação florestal, é preciso modificar a forma de produção e consumo de alimentos, alinhando que garantam a segurança fundiária e o respeito pelos direitos e conhecimentos das comunidades locais e dos povos indígenas, detentores da maior capacidade de monitoramento da biodiversidade.

No segundo semestre de 2021, a Associação Sementes do Araguari, em parceria com o Instituto Iepé, obteve recurso, aprovado de 2021 a 2025, que possibilitará a construção de uma miniusina de beneficiamento e compra de máquinas de processamento. O terreno, na área de uso sustentável da Floresta Estadual do Amapá, para a realização das obras, já foi escolhido.

*Este texto foi publicado originalmente no site da agência Mongabay Brasil, em 30/11/2021 e foi republicado aqui, no Conexão Planeta, por Mônica Nunes

Foto (destaque): Maurício de Paiva (Gloriaci Pantoja, tida como a matriarca das sementeiras do Rio Araguari)

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