Morte brutal do jovem congolês Moïse Mugenyi Kabagambe mobiliza sociedade contra racismo e xenofobia

Morte brutal do jovem congolês Moïse Mugenyi Kabagambe mobiliza sociedade contra racismo e xenofobia

Moïse Mugenyi Kabagambe fugiu da violência no Congo, ainda criança, em 2010. Com a mãe e irmãos, ele encontrou, no Brasil, um país e amigos para amar, apesar das dificuldades que enfrentava diariamente em busca de uma vida digna. 

Segundo o irmão, Djodjo, ele aguardava o processo de naturalização: amava tanto o país que queria ser brasileiro. Mas, em 24 de janeiro, seu sonho foi interrompido ao ser brutalmente assassinado num quiosque localizado no posto 8, na Barra da Tijuca, bairro nobre do Rio de Janeiro. 

linchamento de Moïse é mais uma das incontáveis violências praticadas contra negros e refugiados no país, onde, de acordo com o Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), em 2017 – portanto, depois do golpe! – se matava um jovem negro a cada 23 minutos. 

Em 2019, a organização Words Heal the World divulgou resultado de relatório que apontava que, nesse ano no Brasil, haviam sido registrados no Brasil 12.334 crimes de ódio. Sendo “72,8% deles por preconceito racial (8.979 casos), 14,04% por preconceito à orientação sexual (1.732 casos); 10,65% por preconceito de gênero (1.314 casos); 1,83% por preconceito religioso (226 casos) e 0,67% (83 casos) por ódio à origem”.

(2019 foi o primeiro ano do governo Bolsonaro e, de lá pra cá, a violência aumentou barbaramente, portanto, esses dados devem estar bastante defasados). 

Quem se lembra do menino João Pedro e da menina Ágatha, mortos por balas ‘perdidas’ nas comunidades onde viviam? Do músico e segurança Evaldo dos Santos Rosa, que morreu vítima de 80 tiros de fuzil disparados contra seu carro? E da deputada Marielle Franco, assassinada em março de 2018, logo que deixou a Assembleia Legislativa? 

A morte de Marielle certamente é a base da barbárie incentivada por Bolsonaro, que contribui para que colecionemos tantos crimes sem solução. 

Para Ivana Lay, mãe de Moïse, a morte do filho não é fruto do racismo: “Meu filho cresceu aqui, estudou aqui, todos os seus amigos são brasileiros. Não é tragédia, mas assassinato. E nem se pode dizer que é racismo porque os homens que bateram nele são negros”.

Atos pacíficos pelo país

Cartazes exigem fechamento do quiosque Tropicália na Barra da Tijuca, onde Moïse foi espancado / Foto: Reprodução de vídeo

É inacreditável que crime tão hediondo tenha permanecido abafado por quase uma semana até sua família protestar em frente ao quiosque e clamar por justiça. 

Um casal de namorados pediu aos algozes que parassem de bater em Moïse, mas estes alegaram que o jovem estava bêbado, importunando as pessoas e precisava de um “corretivo”. E não havia nenhum policial presente naquele momento. 

A partir do protesto da família, a revolta viral nas redes sociais ajudou a colocar o linchamento do congolês, em 1 de fevereiro, em segundo lugar nos trending topics do Twitter com a hashtag #JustiçaPorMoïse – foram mais de 38 mil tweets com manifestações do público, autoridades, jogadores de futebol e artistas.

E, finalmente, a imprensa, calada até então, se rendeu ao fato: não poderia ignorar tamanha barbárie e o apelo popular.

No entanto, limitar tal apelo ao ativismo digital não vai nos ajudar a pressionar as autoridades. Ainda estamos na pandemia e com um vírus poderoso espalhando a covid-19, é verdade. Mas parte dos brasileiros está vacinada, então dá pra ocupar as ruas, respeitando as medidas sanitárias já bastante conhecidas. 

No Rio de Janeiro, a comunidade congolesa convocou, para 5/2, próximo sábado, um ato por Moïse, em frente aos quiosques Biruta e Tropicália, local do crime, na Barra da Tijuca. E estão sendo convocados – por comunidades de imigrantes e movimentos negros – protestos simultâneos em outras cidades

São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Brasília já aderiram. E a sua cidade?

Na capital paulista, o encontro será no MASP, na Avenida Paulista, no mesmo dia e hora do protesto carioca, assim como em Porto Alegre (local a confirmar) e Brasília: o ato deve ter início em frente ao Palacio do Itamaraty.

Na capital mineira, o grito contra o racismo e a xenofobia será hoje, 3/2, às 17h, na Praça Sete.

Antecipando os protestos, nesta madrugada, manifestantes vestidos com roupas pretas ocuparam parte da Avenida Lúcio Costa, na Barra da Tijuca (foto abaixo). Apesar de colocarem pneus incendiados na via, o encontro foi pacífico. Ativistas das organizações Levante Popular da Juventude e Anistia Internacional Brasil participaram do ato.

Foto: Reprodução de vídeo

Como ajudar a família de Moïse

Logo que a morte de Moïse tornou-se pública, um líder da comunidade congolesa no Rio de Janeiro criou uma campanha de financiamento na plataforma Vakinha para ajudar sua família com custos imediatos e o sepultamento. 

A meta era arrecadar 16 mil reais, mas foram doados 21,6 mil. 

Em seguida, o projeto Meu Rio lançou outra campanha para arrecadar recursos para apoiar Ivana Lay, mãe de Moïse, e seus irmãos – que não têm renda fixa – “enquanto se reconstroem e lutam por justiça”, diz o texto de apresentação. A intenção é chegar a R$ 50 mil. 

O crime e a milícia

Foto: reprodução de vídeo

Moïse trabalhava, sem qualquer vínculo trabalhista – marca registrada do governo Bolsonaro -, oferecendo bebidas e quitutes de quiosques aos frequentadores da praia da Barra. Em dias de muito calor, chegava a faturar 200 reais, e foi o que aconteceu naquele fim de semana. 

Na segunda-feira, à noite, ao cobrar suas diárias do gerente do quiosque Tropicália, teve o pagamento negado. E, assim, se iniciou a discussão que culminaria com sua morte a pauladas (e com um taco de golfe) por três homens, gravada por câmeras de segurança.

A perícia revelou que ele sofreu traumatismo do tórax e contusão pulmonar. O vídeo foi entregue à polícia, que o liberou para a imprensa. Quem teve estômago para assistir, ficou horrorizado – eu não quis, me bastaram os relatos que li e ouvi. 

Foto: reprodução de vídeo

Os três homens que aparecem no vídeo foram interrogados e presos preventivamente: vão responder por homicídio duplamente qualificado, praticado sem motivo (ou por motivo ignorado) e a vítima é impedida de se defender. O processo corre em sigilo.

Em seus depoimentos, os criminosos sustentaram os argumentos declarados na praia, desqualificando Moïse. Disseram que estavam com raiva, mas que não queriam matá-lo. Não? Quem desfere cerca de 30 golpes de porrete no corpo de num ser humano imobilizado, quer o que, então? 

As investigações ainda apontam que o dono do quiosque Biruta, para o qual Moïse e dois de seus assassinos trabalhavam, é policial. E a família declarou que tem sido intimidada por policiais desde que tornou o crime público e começou a buscar informações por justiça.

Mas não vou entrar nos detalhes da investigação. Desejo que os culpados sejam devidamente punidos, presos e afastados do convívio público e que se investigue o envolvimento e o domínio da milícia – trata-se de uma máfia, certo? – nos quiosques da orla do Rio de Janeiro, que explora,  ‘escraviza’, ameaça e mata quem para ela trabalha. 

Para economizar com transporte, Moïse – como muitos dos atendentes desses quiosques – dormia ali, mesmo, na praia, como contou o advogado Rodrigo Mondego, procurador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ que acompanha a família do congolês. 

“Moïse trabalhava na região, por conta da diária baixíssima que recebia, de não ter direito trabalhista, dormia no trabalho para poder não pagar duas passagens de ônibus e poder chegar em casa com um pouco mais de dinheiro para sustentar a sua família”.

Sem direitos

Foto: reprodução Facebook

Vale lembrar que, com a frouxidão dos direitos trabalhistas já no governo Temer – os trabalhadores ‘conquistaram a liberdade’ de negociar com seus patrões, afinal! –, a exploração tornou-se uma prática comum e legitimada. Imagina em casos como este, no âmbito da milícia

Em entrevista à jornalista Renata Lo Prete, de O Globo, o sociólogo José de Souza Martins – especializado em linchamentos no Brasil e autor de livro sobre o tema – declarou que o assassinato de Moïse traz uma novidade para suas pesquisas já que aconteceu a partir de uma reivindicação por um direito: o de receber pelo trabalho realizado. 

Martins fala sobre diversas peculiaridades do crime de linchamento, entre elas, a negação do fato – neste caso, querer matar -, como têm feito os assassinos do refugiado. Vale ouvir o áudio:

Repercussão 

Ilustração: Nando Motta

A embaixada da República Democrática do Congo (RDC) cobrou explicações das autoridades do Rio de Janeiro e do Ministério das Relações Exteriores sobre a execução de Moïse.

Em comunicado, a embaixada ainda revelou que há outros quatro casos de congoleses assassinados, também de forma brutal, que não foram esclarecidos pela polícia. Talvez nem investigados, mas engavetados. Segundo O Globo, Moïse seria a terceira vítima de espancamento na orla da Barra da Tijuca em menos de um mês! 

Câmara dos Deputados pediu à prefeitura a cassação do alvará de funcionamento do quiosque onde o jovem imigrante foi morto. Todos os quiosques são concessões da prefeitura que, em 1 de fevereiro, informou que a medida já tinha sido encaminhada. 

Ao mesmo tempo, a concessionária Orla Rio, que administra diversos quiosques na cidade, suspendeu a operação do quiosque até que as investigações sejam concluídas.

Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) e a área de direitos humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ)estão dando assistência à família de Moïse.

Em comunicado, as organizações Cáritas RJACNUR (Agência da ONU para Refugiados) e OIM (Organização Internacional para as Migrações) destacaram que, quando chegaram ao Brasil, em 2010, Moïse e sua família foram reconhecidos pelo governo brasileiro como refugiados. “Ele era uma pessoa muito querida por toda a equipe do PARES Caritas RJ, que o viu crescer e se integrar”, destaca o texto. 

No InstagramCaetano Veloso desabafou: “Chorei hoje lendo sobre o assassinato de Moïse Mujenyi Kabagambe num quiosque na Barra da Tijuca. Que o nome do quiosque seja Tropicália aprofunda, para mim, a dor de constatar que um refugiado da violência encontra violência no Brasil. Para mim e certamente para Gilberto Gil, Capinam, Rita Lee, Tom Zé, Sérgio Dias, Gal Costa, Arnaldo BaptistaJulio Medaglia, Manuel Barenbein…”. 

E finalizou: “Fere a memória de Rogério Duprat, Torquato Neto, Nara Leão, Guilherme Araújo… Sobretudo a de Hélio Oiticica, que criou o termo. Tenho certeza de que a família Oiticica está comigo nessa amarga revolta. O Brasil não pode ser o que há de mesquinho e desumano em sua formação”. 

Para a cantora Ludmila, este é mais um caso de racismo: “Mais uma vez a carne mais barata do mercado é a carne negra”, citando uma das música de destaque do repertório de Elza Soares, falecida recentemente. Se ela estivesse viva, certamente a cantaria em protesto pela morte do jovem congolês.

Moïse torcia para o Flamengo: nas redes sociais, o clube lamentou sua morte e prestou solidariedade à família. E Gabigol, seu atacante, também se pronunciou: 

“Este não é o Rio que aprendi a amar e que me recebeu de braços abertos! Queremos justiça, não podemos normalizar crimes como esse. Que seja feita justiça a Moïse Mugenyi e toda sua família! Estamos juntos de vocês”. 

Esta semana, durante partida entre a seleção brasileira e o Paraguai, o atacante Antony homenageou Moïse, quando marcou o terceiro gol, e ofereceu a ele a vitória. No Twitter, pediu justiça.

Enquanto isso, o governo silencia. A ministra Damares Alves disse que é assim que trabalha, “em silêncio”, apesar da pressão do grupo técnico do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para que a pasta se posicione a respeito do assassinato brutal de Moïse. Ela só sabe gritar quando é pra impedir o aborto de uma menina violentada por um parente.

Conselho Nacional de Direitos Humanos – vinculado ao ministério de Damares, formado por representantes do governo e da sociedade civil – solicitou providências das policias civil e militar do Rio de Janeiro sobre o caso.

No campo da arte, as homenagens de ilustradores engajados como Gladson Targa (que ilustra este post), Nando Motta (acima) e Cris Vector (abaixo) – só para citar alguns – se destacaram e nos deram alento.

Desde que o Brasil foi sequestrado por Temer e Bolsonaro e sua trupe vil e autoritária, eles têm nos ajudado a elaborar e passar pelo cenários de retrocessos que temos vivido nos últimos seis anos.

Ilustração: Cris Vector

A situação dos refugiados no Brasil

racismo estrutural e a xenofobia estão por toda parte, no Brasil, e praticamente condenam os refugiados a uma vida difícil, em especial angolanos, congoleses e haitianos, entre outros. 

O jornalista Caio Barreto Briso contou em seu Twitter que, segundo Aline Thuller, coordenadora da Caritas RJ, não há qualquer empatia para com esses refugiados. E, nas contratações – mesmo em condições informais de trabalho –, empresários do Rio de Janeiro dão preferência para imigrantes brancos, como os sírios por exemplo. 

Negros só são aceitos e chamados para executar trabalho braçal, como carregar e descarregar caminhões, como sempre acontece com Chadrac, primo de Moïse.

“Conheci um economista congolês q falava francês, lingala, português e inglês. Sonhava ser contratado como tradutor na Rio 2016, mas só conseguiu vaga como voluntário. Um administrador virou faxineiro. Chadrac, formado em hotelaria, carregava pedras em troca de 60 reais por dia”, conta Caio, que aproveitou pedir ajuda para esses imigrantes.

“Quem quiser ajudar congoleses, angolanos e haitianos e tiver vaga de trabalho no Rio, procure a Cáritas pelo telefone (21) 99580-4488”.

As pessoas em refúgio se viram obrigadas a deixarem seus países e a vida que tinham devido à perseguição e ao risco de morte. 

O Brasil é signatário de acordos internacionais que protegem os refugiados e, por isso, não deveria alimentar o ódio contra os que pedem socorro e uma oportunidade para refazer a vida e oferecer seus talentos. Nesse contexto, muitos são considerados usurpadores do trabalho alheio.

Somam-se a isso as dificuldades para regularizar sua documentação, comprovar qualificação a partir do registro de trabalhos anteriores, e inserir em sua área de conhecimento. Resta-lhes o trabalho precarizado que, no caso do Rio de Janeiro em especial, ainda encontra a atuação de máfias como as milícias cariocas. 

Por isso, é urgente que as mortes de Moïse, de Marielle e de Evaldo – entre tantos – não sejam esquecidas! Para que o Brasil possa ser, de fato, um país acolhedor, uma mãe que abraça a todos, como disse Chadra, primo do jovem congolês, em seu apelo por justiça. 

Ilustração (destaque): Glason Targa

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Mônica Nunes

Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.