Publicitária de sucesso na área digital, Luciana Maltchik Capobianco trocou sua empresa pela causa dos refugiados depois que uma ação despretensiosa no Tinder – aplicativo de relacionamentos – ganhou repercussão ao mostrar o preconceito com pessoas nessa condição.
Sensibilizada com a dificuldade dos refugiados em conseguir trabalho e refazer a vida no Brasil, Luciana passou a fazer a ponte entre eles e empresas e a criar projetos que os ajudem a se recolocar, após o trauma de serem obrigados a deixar seus locais de origem.
Esse trabalho deu origem ao Instituto ‘Estou Refugiado‘, que já conseguiu empregar mais de 2 mil pessoas, vindas principalmente da Venezuela, mas também sírios, congoleses, afegãos e de outras várias nacionalidades. “É um trabalho que envolve muito sentimento e é muito gratificante. Quero sempre fazer mais”, declarou ao Mulheres Ativistas.
O que fez você trocar a publicidade pela causa dos refugiados?
Tudo começou em 2015, quando a guerra na Síria fez surgir um grande número de refugiados e as imagens de pessoas morrendo no Mediterrâneo dominavam o noticiário. Naquela época, estava em crise pessoal, trabalhando muito, com muitos clientes, mas tinha vontade de fazer algo que tivesse um impacto real no mundo.
Queria poder fazer o que sei, que é contar histórias e engajar pessoas em alguma causa, e achei que poderia fazer algo em relação aos refugiados. Chamei a equipe da minha agência de comunicação digital, a Plano Digital, e criamos um vídeo como um experimento social usando a plataforma Tinder. Inventamos o perfil de um engenheiro mecatrônico, que falava cinco línguas, e o colocamos como estrangeiro.
Uma semana depois, havia 30 matchs de moças que gostaram dele. Aí mudamos a foto por outra equivalente e uma palavra no perfil, ao invés de estrangeiro, inserimos refugiado. Em um mesmo espaço de tempo, ele teve apenas três interessadas. A partir desse vídeo (assista abaixo), conseguimos mostrar de forma bem-humorada e leve a questão do preconceito.
Como o vídeo levou ao movimento ‘Estou Refugiado’?
A repercussão fez com que algumas empresas interessadas em contratar refugiados nos procurassem e refugiados fossem à agência conversar com a gente. Nasceu organicamente e me apaixonei pela causa, essa é a verdade.
No início, fazia a ponte com algumas organizações e igrejas, mas, quando começamos a ter muitas ofertas de trabalho, resolvi ver o que estava acontecendo com essas vagas e percebi que, quando você conta uma história e cria um movimento, tem que ir até o fim com ele, ou seja, se quer que dê certo, precisa pegar aquela vaga, fazer o contato com o refugiado, conectar as pessoas e acompanhar o processo.
A partir daí, foi uma transposição de tempo. Quando vi, 20% a 30% da equipe da agência estava se dedicando ao movimento e ninguém mais queria trabalhar para os clientes. Meu tempo estava todo tomado em procurar e conversar com empresas sobre a importância de contratarem refugiados, dizer que o trabalho é a primeira grande oportunidade para saírem de uma situação de vulnerabilidade, em um abrigo, para que possam refazer sua vida no Brasil.
Me senti agradecida com o retorno que o projeto começou a dar.
Foi por isso que resolveu transformar o movimento em um instituto?
Depois que fizemos a primeira ação, percebi que havia muito a ser feito e que não queria simplesmente transferir esse projeto para uma organização, queria ser a organização e, para isso, abri mão da minha empresa. Queria doar minha criatividade, leveza, contatos.
Não é fácil vir para o terceiro setor, a questão de recursos é muito complicada, ainda estou construindo o caminho para que possamos fazer uma transformação social maior. Também abrimos redes sociais, criando todas as propriedades digitais, site, constituindo o movimento como uma organização.
Começamos a desenvolver projetos diferentes. Um deles é um totem interativo que carrega a história de 200 refugiados no Brasil, o qual já levamos para museus, para a Bienal de Arte de São Paulo, rodamos o Sesc.
É um instrumento que faz as pessoas pararem, escutarem uma história e se emocionarem com ela. Ao mesmo tempo, recebem um currículo na mão e têm a possibilidade de fazer alguma coisa, como entregar esses currículos para sua empresa, para seu pai, sua mãe, um amigo ou vizinho, e ajudar a mudar uma vida.
Esse projeto fez muito sucesso e vamos reativá-lo, depois de ficar guardado durante a pandemia.
Mas você já tinha uma história de trabalhos com organizações antes disso tudo…
Em toda minha carreira publicitária, sempre levei clientes pro bono para as agências onde trabalhei, buscando soluções criativas para ajudar a fortalecer movimentos e causas. Além disso, tem minha história com meu marido João Paulo Capobianco [ambientalista, atualmente presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS)], que me faz respirar, por tabela, a questão ambiental.
Nos conhecemos quando eu trabalhava em uma das primeiras produtoras de internet do Brasil e ganhamos a conta do Instituto Socioambiental (ISA), onde ele era secretário-executivo. João foi o ativista que me incentivou a tomar a decisão de largar a publicidade e fazer o que me deixava mais feliz.
Além disso, minha identificação com a causa dos refugiados está relacionada com o fato de eu vir de uma família com avós judeus, imigrantes da Romênia, região da antiga Bessarábia, que também fugiram de perseguições e passaram dificuldades. É uma coisa que sempre me tocou desde a infância.
Quem são os refugiados no Brasil?
Temos cerca de 350 mil refugiados no país, segundo o último relatório da ACNUR – Agência da ONU para Refugiados, entre solicitantes e refugiados reconhecidos, que são aproximadamente 60 mil, a grande maioria venezuelanos.
Atualmente, entre 500 e 900 pessoas atravessam a fronteira vindas da Venezuela por Pacarana, em Roraima, em busca de sobrevivência no Brasil. Depois deles, vêm sírios e congoleses. Apesar de não receber um grande número de pessoas – por exemplo, a Colômbia recebeu 2 milhões de venezuelanos e o Peru, 800 mil – nosso país conta com solicitação de refúgio de cerca de 100 nacionalidades, o que é uma grande diversidade.
Hoje, porém, os venezuelanos são o maior desafio. Depois de ficarem em abrigos em Roraima, entram em processo de interiorização e são distribuídos entre diversas capitais. É a partir do momento que chegam nos abrigos em São Paulo que vamos até lá, entrevistamos as pessoas, fazemos currículos e tentamos encontrar empresas que os empreguem.
O que diferencia um imigrante de um refugiado?
Refugiado é quem precisa sair do seu país em função de perseguição política, religiosa, intolerância e, principalmente, guerra. É uma condição muito diferente do imigrante, pois é obrigado a sair e ir para outro país para não morrer e sem saber se e quando poderá voltar.
A grande maioria não vem com a família, e às vezes leva tempo até poderem se reencontrar. São sentimentos diversos e de muito sofrimento. Quando são de países com língua e cultura muito diferentes é ainda mais difícil.
Temos um projeto com jovens fotógrafos do Afeganistão no qual percebemos um sofrimento ainda maior pelo fato de que não podem mais pisar naquela terra, pois podem ser mortos por terem fugido, por não aderirem às leis do Taliban. Nesses casos, eles ainda demoram, no mínimo, três anos e meio até começar a falar bem o português, o que dificulta ainda mais a adaptação.
Do que se trata o projeto com os afegãos?
Fazemos parte de um projeto com outros ativistas internacionais para trazer um grupo de nove jovens fotógrafos, entre 20 e 29 anos, que corriam risco de vida em Cabul, mas só conseguimos tirar seis de lá até agora. São quatro mulheres e dois homens, que chegaram em novembro. Imagine ser mulher e fotógrafa em um país como aquele…
Foi bem tenso, porque não é fácil sair do Afeganistão, precisa ter visto de entrada para o Paquistão ou Irã e, mesmo com isso, ainda é arriscado. Está sendo um grande desafio, uma parte fala inglês, outra apenas persa, estão assustados e há uma dificuldade de comunicação muito grande.
Mas conseguimos uma casa para as meninas e três deles já estão trabalhando em um e-commerce de economia circular de roupas usadas, onde fazem look das roupas. Duas fotógrafas e o marido de uma delas fazem a produção. Ele só fala persa e precisa se comunicar via Google Tradutor.
Temos conseguido também trabalhos freelances para o grupo e as quatro mulheres estão participando de uma exposição na ZIV Gallery, no Beco do Batman, na Vila Madalena, em São Paulo. Ela traz mulheres fotografadas por mulheres e foi produzida para marcar o Dia Internacional da Mulher, cuja programação inclui uma roda de conversa em 24 de março.
Que outros projetos vocês estão desenvolvendo?
Estamos produzindo um livro com a história de quatro mulheres refugiadas no Brasil. Uma delas é a Francis Irina Salazar, uma advogada venezuelana que conseguimos empregar e que hoje é uma das embaixadoras do Estou Refugiado.
Francis veio para o Brasil e somente agora, após três anos, conseguiu voltar e trazer seus filhos para o Brasil. Ela mesma gravou a viagem e o reencontro, que estamos contando em uma série de vídeos no Facebook.
Além disso, temos o projeto Cores do Mundo, que nasceu durante a pandemia a partir de uma conversa com um amigo, artista plástico refugiado, que estava bem triste, passando muito dificuldade por conta da falta de trabalho. Em um impulso, o convidei para pintar o tapume de uma casa que estávamos reformando. O painel ficou lindo e me motivou a levar a ideia para empresas.
Uma empresa que já contrata refugiados conosco, fechou um muro de 30 metros com um deles. Depois, grandes construtoras também passaram a contratar pinturas em tapumes, principalmente na região de Pinheiros, em São Paulo. Um deles saiu na capa do jornal ‘Estadão’.
Qual o impacto do ‘Estou Refugiado’ até o momento, na colocação de refugiados?
Conseguimos colocar no mercado formal cerca de duas mil pessoas, mas já encaminhamos mais de 10 mil currículos, que ainda estão em busca de contratação. Fico angustiada e quero fazer mais.
Temos agora esse caso da guerra na Ucrânia que, em pouquíssimo tempo, já produziu 2 milhões de refugiados. A grande maioria deve ficar na Europa, mas alguns vão chegar ao Brasil. É uma situação muito chocante e temos visto um movimento de pessoas querendo ajudar.
É um trabalho que envolve muito sentimento, mas eu e todo o grupo do projeto ficamos muito felizes em contribuir. A cada mensagem que recebemos de pessoas que conseguiram refazer sua vida no Brasil, é muito gratificante.
_________________
Acompanhe o trabalho do Instituto Estou Refugiado nas redes sociais – Facebook e Instagram – e colabore com esta causa.
Edição: Mônica Nunes