Indígenas Kokama fazem rituais com ayahuasca para combater coronavírus

Por Maria Fernanda Ribeiro*

Desde meados de maio, uma equipe multidisciplinar de saúde, formada por indígenas Kokama, visitam as casas de seu povo na região do Alto Solimões, no Amazonas, para averiguar se alguém apresenta os sintomas de coronavírus. Se encontram possíveis infectados, os pajés são avisados. Para esses pacientes, o tratamento virá dos rituais com o uso da ayahuasca, o chá sagrado da floresta utilizado há milênios em rituais de cura.

“No começo, confiamos nos remédios dos não-indígenas, mas nosso povo ia para o hospital e saía de lá em um caixão”, diz Edney Samias, cacique geral do povo Kokama. “Agora, todos com sintomas de coronavírus são tratados em casa só com ayahuasca e outras medicinas tradicionais. E estamos salvando muitas vidas”.

Moradores da região do Alto Rio Solimões, os Kokama foram os primeiros entre os indígenas brasileiros a registrar infecção pelo novo coronavírus. A contaminação foi confirmada em 31 de março no município de Santo Antônio do Içá, após uma agente de saúde indígena de 20 anos ter tido contato com o médico Matheus Feitosa, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão ligado ao Ministério da Saúde, que teria voltado de férias sem realizar a quarentena.

Preconceito e desrespeito

Indígenas recebem atendimento médico em Assunção do Içana, distrito de São Gabriel da Cachoeira,
durante a 36ª Ação Expedicionários da Saúde / Foto: Marcelo Camargo, Agência Brasil

A partir daí, a pandemia se alastrou rapidamente entre os Kokama, deixando um saldo de 60 mortos em todo o estado do Amazonas e mais de mil infectados até o fim de julho.

O cacique Samias perdeu 17 parentes diretos para a doença, mas foi a morte do pai, a liderança Guilherme Padilha Samias, em 14 de maio, que mudou a relação da comunidade com o tratamento que passaria a ser adotado para os que apresentassem sintomas de covid-19.

A confiança no remédio do não-indígena, enfim, ruiu. Era o que bastava para pôr fim à sequência de mortes e ao preconceito que os Kokama diziam sofrer no Hospital de Guarnição de Tabatinga, pelo descaso com que eram atendidos.

“Iam enterrar meu pai como pardo”, conta Samias. “Fiquei brigando das sete ao meio dia para não aceitar isso. Eles falavam que ele não era indígena porque não tinha Rani (Registro Administrativo de Nascimento Indígena). Chamaram a gente de índio falso, de índio de mentira”.

Para o povo Kokama, ser enterrado como pardo é considerado um desrespeito à ancestralidade — é como uma alma que estará perdida porque não é tida como indígena. “Se você é um Kokama, você o é vivo ou morto”.

Pajés, ayahuasca, medidas de higiene e isolamento

Em maio, moradores da aldeia Kokama de Boará de Cima puseram placas e montaram barreira
para impedir a entrada de forasteiros que pudessem estar infectados com o coronavírus. Foto: Divulgação

De lá para cá, os indígenas foram aconselhados, por uma decisão interna, a não mais procurar as unidades de saúde públicas em caso de sintomas da Covid-19. A medicina tradicional e os conhecimentos indígenas seriam agora também usados para a cura dessa doença.

Os médicos seriam os pajés e os remédios seriam a ayahuasca, o gengibre, o alho e o limão. “O remédio do branco matou o nosso povo”, diz Samias.

Segundo ele, o tratamento com a ayahuasca no combate ao coronavírus já foi oferecido a mais de 800 indígenas moradores de Tabatinga, município na tríplice fronteira entre o Brasil, Peru e Colômbia, que abriga cerca de 5.500 Kokama. Por viverem na cidade e serem considerados como não-aldeados, não entram nas estatísticas da Sesai.

Dos 60 óbitos registrados entre os Kokama, 56 ocorreram entre meados de abril até a segunda semana de junho. De lá para cá, no período de um mês e meio, foram registradas as outras quatro mortes.

A redução na velocidade dos óbitos, mesmo com a grande quantidade de pacientes tratados em casa, é o resultado que eles esperavam ao trocar os hospitais pelos remédios tradicionais, aliado aos cuidados de higiene e distanciamento social, e assim garantir não só a sobrevivência da comunidade, como atendimento adequado e com respeito a cultura.

Para Glades Kokama, presidente da Federação Indígena do Povo Kukami-Kukamiria do Brasil, Peru e Colômbia, a medicina ocidental não funcionou para eles “porque os recursos e medicamentos vêm tudo atrasado” e desestimula a comunidade.

“Antigamente o povo sobrevivia sem remédio de laboratório. Vamos atestar o que é nosso e manter a nossa cultura milenar. Espero que dentro da medicina tradicional todos nos respeitem porque, se não formos por nós, não sabemos o que vai ser”, declara Glades.

Vale ressaltar que, até o momento, nenhuma pesquisa científica comprovou a eficácia da ayahuasca no combate ao coronavírus. Há, porém, indícios do potencial terapêutico do chá como tratamento auxiliar de transtornos mentais e de doenças como o câncer.

“A mais poderosa cura”

A ayahuasca é um chá oriundo de uma combinação de duas plantas: o jagube, que é um cipó (cipó-mariri; foto acima), com a chacrona, um arbusto. Os rituais com a planta sagrada acontecem três vezes por semana durante à noite e podem varar a madrugada.

São realizados em um espaço destinado para isso e conduzidos por um grupo de pajés. O mais velho deles tem 105 anos e, garantem os entrevistados, não apresentou nenhum sintoma da doença. Em casos específicos, a cerimônia pode acontecer na casa do paciente.

“Nos rituais, a gente faz o corpo da pessoa doente se conectar com a árvore mururé, por meio do canto. Mas quando são vários pacientes de uma vez, a gente coloca até oito doentes juntos tomando a ayahuasca para fortalecer a alma deles”, conta Edney Samias. A mururé é uma árvore da Amazônia conhecida por suas diversas propriedades medicinais.

O ritual da ayahuasca é considerado pelos Kokama como a mais “poderosa cura”, e se trata de um momento de experiência, de descoberta, de visões do futuro e do passado e de aprendizagem dos costumes. É uma cerimônia secreta e todos os segredos são transmitidos diretamente de mestre para discípulos.

“A ayahuasca sempre foi tomada pela minha família, mas antes de chegar a doença parei por três meses, fiquei com medo e pensei que era melhor procurar o homem branco porque ele tem respirador, remédio, médico e poderia curar. E esqueci que eu mesmo poderia curar a minha família”, relata o cacique Samias.

“Me arrependo muito. não devia ter acreditado no remédio dos brancos, nem ter levado ninguém pro hospital”.

A volta à essência da cura

De acordo com Glades, o remédio caseiro e o tratamento em casa foi o que possibilitou a sobrevivência do seu povo. “No hospital gera mais contaminação e ficamos aos cuidados em casa, com os nossos medicamentos. A medicina tradicional é a essência da cura para nós. Não dá para ficar esperando médico, não!”.

Ela conta que o momento agora é de incentivo para que os membros da comunidade comecem a cultivar jardins curativos, compostos de plantas como as que dão origem à ayahuasca e outras com propriedades medicinais.

“Vamos ensinar porque a plantação da ayahuasca tem maneira de plantar e de trabalhar, não é de qualquer forma”, destaca Glades. “Agora, chegou a hora do fortalecimento”.

Foto de destaque: Aldeia Boará de Cima/divulgação (indígenas Kokama em esforço de proteção contra o coronavírus)

*Este texto foi publicado originalmente no site Mongabay Brasil em 30/7/2020

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