Fotojornalista Lilo Clareto morre devido a complicações provocadas pela covid-19

Atualizado em 21/4/2021

Lilo resistiu por 35 dias, intubado. Primeiro num hospital de Altamira e, depois, num hospital em São Paulo para onde foi transferido e faleceu hoje, 21 de abril.

Em seu Facebook, a jornalista Eliane Brum – sua amiga de muitos anos, com quem realizou diversas reportagens denunciando a violação dos direitos humanos no país – escreveu: “A causa direta da morte de Lilo Clareto foi covid-19. Mas não foi o vírus que matou Lilo. Foi quem disseminou o vírus no Brasil, quem chamou a covid de “gripezinha”, quem recusou vacinas, quem produziu aglomerações, quem agiu contra o uso de máscaras. Quem praticou crime de extermínio contra centenas de milhares de brasileiros e brasileiras, crime contra a humanidade“.

Não saberemos com certeza, mas se a pandemia estivesse sendo conduzida por um estadista de verdade, que honra e protege seu povo, é bem possível que Lilo e milhares de pessoas, vítimas fatais do coronavírus como ele, estivessem vivas. Neste momento, o que nos resta é honrar sua jornada e vibrar luz por sua passagem.

A equipe da agência Amazônia Real (nossa parceira de conteúdo) com a qual Lilo também colaborava, também divulgou nota em suas redes sociais.

Abaixo, segue o texto que escrevi em 11 de abril – sem nenhuma alteração – para falar de seu estado de saúde e da campanha de financiamento realizada pelos amigos para ajudar nos custos de seu tratamento. Obrigada a todos que participaram!

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O fotojornalista Lilo Clareto mora em Altamira, no Pará, com a família, desde 2017. Dedicado a pautas que denunciam desigualdades e violações contra os direitos humanos no Brasil.

De acordo com a jornalista e amiga Eliane Brum, provavelmente foi infectado pela covid-19 em um dos últimos registros sobre o ecocídio e da crise humanitária provocados pela construção da hidrelétrica de Belo Monte, na Volta Grande do Xingu, na Amazônia

Ao voltar para casa, manifestou o vírus e o transmitiu para sua esposa, Daniela. Os dois se trancaram em casa para se cuidar, depois de deixar a filha mais nova, Maria, de 2 anos, com a avó.

No caso de ambos, parecia que a doença seria leve, mas dias depois Lilo sentiu-se muito mal e foi internado na UTI do Hospital Regional Público da Transamazônica.

Seu estado se agravou, ele foi intubado em 17 de março, mas a UTI lotada e os poucos recursos oferecidos impediam que fosse atendido à altura de sua condição. Assim, no dia 21 foi transferido em avião fretado para São Paulo e, desde então, está internado na UTI do Hospital Osvaldo Cruz.

Ontem, passou por uma cirurgia e voltou para a UTI. O médico disse que seu pulmão está muito comprometido, quase não ventila, mas ele respira.

Repórter fotógrafico freelancer, Lilo não tem plano de saúde e não pode pagar os custos do tratamento, da viagem e de sua reabilitação.

Por isso, os amigos se uniram para arrecadar recursos e ajudar a cobrir esses custos e manter a família de Lilo enquanto ele não volta ao trabalho. Foram lançadas duas campanhas e a “Rede de Amigos do Lilão” só cresce:
– o lançamento da Coleção Lilo Clareto – 20×20, pela Galeria Solidária de Fotografia e
– a vakinha online ‘Respira, Lilo!’: a meta é R$ 300 mil, mas ainda falta muito: até 20h de hoje, 11/4, foram arrecadados R$ 190.599,11.

Imagens à venda em edição extra

Passarinho, 2015, Pará – Foto: Lilo Clareto

A Coleção Lilo Clareto é uma parceria com a Arfoc-SP e uma edição extra da galeria que, em 2020, arrecadou recursos para doações a repórteres fotográficos impactados pela pandemia.

15 imagens de autoria de Lilo estão sendo vendidas até 20 de abril na loja virtual por R$ 220, em padrão fine-art, certificadas, com tinta pigmentada, carimbadas e impressas no tamanho de 20 cm X 20 cm.

Participe e compartilhe em suas redes sociais!

Texto, vídeo e relatos amorosos

Poucos dias depois de internado no hospital de Altamira, a amiga e parceira profissional de 20 anos, a jornalista Eliane Brum, escreveu um texto amoroso, divulgado nas redes sociais e reproduzido em alguns sites, para contar sobre a trajetória de Lilo e de seu drama atual.

Um dos retratos mais conhecidos de Eliane Brum foi feito por Lilo Clareto

Com o tempo, Lilo virou verbo, contou Eliane em sua declaração de dor e amor: quando ele “lila” é porque “está se movendo pelas ruas como se o mundo fosse bom e não tivesse pressa, parando para coletar uma muda de flor sem perceber que a 4X4 tirou fino, poetando nas esquinas, cantando seu assombroso repertório de MPB com a certeza inabalável do amor da plateia”.

A foto de capa da página Respira Lilo no Facebook está o verbete do verbo lilar:

Em 7 de abril, Eliane contou em seu blog que havia produzido um vídeo com esse texto, responsabilizando Bolsonaro. Usou a hashtag #bolsonaroeuteresponsabilizo.

“Nestes tempos tão duros, a gente precisa fazer também o que não sabe. Eu fiz um vídeo, responsabilizando Bolsonaro pelo que acontece com Lilo e com todos aqueles que lutam para respirar num leito de hospital ou, pior, na fila para um leito de hospital. Por todas as centenas de milhares de pessoas mortas por covid-19, mortes que poderiam ter sido evitadas. E que seguem aumentando. Bolsonaro precisa ser responsabilizado criminalmente pelo que fez e faz”.

E completou: “Penso que, já que os tribunais são fracos e/ou covardes, precisamos começar nós mesmos a responsabilizá-lo apontando o dedo publicamente. Já faço isso em texto, há meses. Agora fiz também em vídeo”, que integra a campanha da Rede de Amigos do Lilão.

Logo após o texto de Eliane, reproduzo o vídeo no final deste post.

“Lilo não é um número, é uma pessoa. E tem história. Penso que, ao lutar por Lilo, estamos lutando por todas e todos. Nos recusando a aceitar essa conta macabra. Nenhum/nenhuma a menos”.

Inabalável, desde 1º de abril a jornalista publica depoimentos de amigos e da família sobre Lilo em suas redes sociais. Ontem, foi a vez do relato da filha mais velha, Bia, que começou assim: “Foi meu aniversário e meu presente foi a notícia de que será muito difícil meu pai se recuperar. Difícil, porém, não é impossível”.

E terminou assim: “Hoje eu cantarolo o sol pega o trem azul e você na cabeça em ritmo diferente de então. É minha reza e vai ser sempre para você, meu pai. Eu não consigo acreditar em tudo o que está acontecendo, mas eu não deixo de acreditar que ainda nos veremos em um domingo qualquer, a qualquer hora, amanhã!”.

Dia 13

‘Respira, Lilo!’ por Eliane Brum

Esta foto ilustra o texto de Eliane Brum (abaixo) publicado no site Amazônia Real

Lilo Clareto respira com os olhos. E agora ele tem os olhos fechados. Em coma induzido para a intubação por covid-19, eu poderia pensar que ele parou de olhar o mundo de fora. Mas eu não acredito nisso.

Os olhos de janela do Lilo estão olhando para os vastos mundos de dentro. O que você vê, Lilo? Eu quero perguntar porque o Lilo vê coisas que mais ninguém vê.

Estamos há 20 anos juntos contando os Brasis, eu como repórter de texto, ele como repórter de fotos. Somos uma dupla, algo que quase não existe mais no jornalismo. Quando eu escrevo, são os meus olhos e os do Lilo. E eu quero acreditar que, quando ele fotografa, são os olhos dele mais os meus.

Assim, desde a madrugada de 17 de março, quando os olhos do Lilo foram fechados para que ele pudesse respirar com ajuda, eu ando pelos mundos, os de fora e os de dentro, meio cega, cambaleando, desacostumada a ter apenas um par de olhos para contar as histórias desse tempo.

Acordo de manhã, como agora, e grito. Em voz alta, mesmo. Liiiiiilo! Fico achando que ele escuta. E quero saber o que ele está vendo no seu sono induzido. É a primeira vez que ele não me conta. Ainda não me conta.

Sempre achei que Lilo aprendeu a ver com dona Geraldinha, a mãe que se alfabetizou aos 92 anos porque não queria morrer cega das letras, a mulher de palavra cantada que pariu 16 crianças na roça de Passos, em Minas Gerais.

Nenhum sofrimento, e eles foram muitos, deixou marca nos olhos de dona Geraldinha. Nem mesmo os sustos com as arteiragens de Lilo e Inês, os dois caçulas do balacobaco.

Dona Geraldinha, como seu filho mais novo, tinha a pureza de quem a todo momento “renasce para a eterna novidade do mundo”. Dona Geraldinha deu ao Lilo olhos de primeira vez.

Nossa estreia juntos foi em 2001, em terra Yanomami. Ele já era um fotógrafo consagrado pelos anos todos em que trabalhou no Estadão. Entre suas tantas fotos notáveis está a de um menino vivendo nas ruas de São Paulo, um menino condenado pela nossa incapacidade de enxergar.

A imagem capturada por Lilo mostra uma criança pequena, que desloca a chupeta da boca para dar uma tragada no cigarro. É brutal. Penso que só Lilo poderia ter capturado aquele instante. E, também daquela vez, Lilo sofreu com o que para sempre sofreria/ sofreríamos.

O que denunciava provocava comoção social, discursos, mas a sociedade e o Estado logo se esqueciam. E as crianças do Brasil seguiriam morrendo antes de crescer.

Em 2001, nós dois trabalhávamos na revista Época. E assim nos descobrimos em território Yanomami, olhando desconfiados um para o outro. Depois de avião, helicóptero e voadeira, finalmente alcançamos a aldeia indígena ensopados de chuva amazônica já à noite.

Nos ofereceram vermes assados na brasa das fogueiras e um espaço no lado de fora da bela casa coletiva. Só cabia uma rede, Lilo e eu dormimos com o pé de um na cara do outro. Choveu sobre nós a noite inteira e tiritávamos de frio.

Ao amanhecer, despertamos com os gritos da equipe de saúde que acompanhávamos: “No chão, não! Segura por favor! Cospe aqui!”. Os profissionais precisavam coletar o primeiro catarro da manhã para teste de tuberculose, a doença levada pelos garimpeiros que dizimava – e ainda dizima –  os indígenas. Nunca vimos tanto catarro na nossa vida.

Com uma estreia dessa magnitude, ou nos amávamos para sempre ou nos odiávamos para sempre. Nunca mais nos separamos.

Três anos mais tarde, em 2004, fomos os primeiros jornalistas a alcançar a Terra do Meio, no Pará. E lá, no Riozinho, a terra das borboletas amarelas, não sabíamos mas fizemos uma promessa de nos amazonizarmos.

Lilo e eu começamos a nos converter em floresta. Ou a voltar à terra. Passamos mais 13 anos itinerando pelos tantos Brasis e pelas tantas Amazônias, Lilo ao mesmo tempo dirigindo pela Transamazônica e dando broncas pelo telefone nos três filhos que teve com Lia, sua primeira mulher, dos quais tanto se orgulha: Bia, Fran e Gabi.

Ele sempre foi um tremendo pai, inspirado pelo seu próprio, Antonio Clareto Costa, homem duro e reto, contador de histórias, todo ele esteios.

Um dia liguei para o Lilo em São Paulo, onde ambos vivíamos: “Depois eu explico melhor. Mas preciso saber agora! Topa se mudar comigo para Altamira?”. Com seu habitual desassombro, Lilo só disse: “Librum, tou dentro”.

E estava. Desembarcamos na noite de 16 de agosto de 2017. E, não sei como, mas numa típica lilagem, na mesma noite Lilo já beijava Dani no trapiche de Altamira e ali se enraizava na comunidade, na floresta e na vida da mulher maravilhosa por quem se apaixonou.

Maria, minha afilhada, hoje tem 2 anos. E já começou a lilar. Sim, Lilo se tornou verbo alguns anos antes. Como está o Lilo, me perguntam? Lilando. E as pessoas já entendem que ele está se movendo pelas ruas como se o mundo fosse bom e não tivesse pressa, parando para coletar uma muda de flor sem perceber que a 4X4 tirou fino, poetando nas esquinas, cantando seu assombroso repertório de MPB com a certeza inabalável do amor da plateia.

Tenho certeza que, no leito da UTI, Lilo está dando um jeito de lilar no coma. Lila, Lilo! Lila!

Ele possivelmente se contaminou com o novo coronavírus ao fotografar o ecocídio produzido pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte na Volta Grande do Xingu. Não estava comigo nem era um trabalho nosso. Mas Lilo não teve os olhos fechados por uma tragédia, preciso dizer e sei que ele gostaria que eu dissesse.

Lilo é vítima do genocídio produzido por Jair Messias Bolsonaro, ao deliberadamente agir para disseminar o vírus durante todo o primeiro ano da pandemia, chegando ao inominável de recusar o oferecimento de vacinas.

Altamira, neste momento, como grande parte das cidades brasileiras, está em colapso. O último levantamento mostrou 17 pessoas em estado grave esperando por um leito na UTI do hospital. Estamos chegando a um ponto do horror em que cada brasileiro está ameaçado de perder alguém que ama, quando não a própria vida.
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Fotos: Divulgação da campanha

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Mônica Nunes

Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.