O fotógrafo paraense João Paulo Guimarães está sempre atento à vulnerabilidade social na cidade onde vive, Belém (em seu perfil, no Instagram, seu engajamento é notável), onde trabalha cobrindo temas delicados e urgentes como desmatamento, povos indígenas e quilombolas, por exemplo. Por isso, quando assistiu ao vídeo publicado por um defensor público em Pinheiro, no Maranhão, sobre o lixão da Piçarreira e a realidade das pessoas que dele se sustentam, não pensou duas vezes.
Partiu para o local – uma região conhecida como Baixada Maranhense, que abriga cerca de 100 mil habitantes – para ver esse drama de perto e registrá-lo. Mas não imaginava a dimensão da miséria que encontraria, do tamanho da desumanidade que veria com seus olhos e através das lentes de sua câmera.
“Saí daqui de Belém do Pará depois que vi um vídeo do Eurico Arruda, que é defensor público em Pinheiro, no Maranhão. Ele postou um vídeo que eu pensei que fosse o teaserde algum filme pós-apocalíptico. Eu gosto de cinema, vi aquilo e falei: ‘Pô, eu vou ver o que é isso’”, contou ele em entrevista à GloboNews.
“Eu estava vendo a realidade. As pessoas correndo atrás do caminhão de supermercado, correndo para pegar comida. E aí pensei: ‘Não posso ficar em casa, tenho que ir pra lá!”.
Ao chegar no município, encontrou-se com Arruda, depois com Jean Carlos Barroso Vilar, que trabalha com material reciclável e como catador de lixo há 22 anos.
Arruda o levou até o lixão, onde, diariamente, caminhões e tratores da prefeitura despejam todo tipo de resíduo: não-reciclável, reciclável, orgânico, além de restos de animais. Os mais esperados são os caminhões de supermercado porque levam restos de alimentos.
“Ela tá torta, mas a gente ajeita”
Foi no lixão que João conheceu Gabriel, de 12 anos, e sua mãe, Dona Maria. O garoto chamou sua atenção quando encontrou uma árvore de Natal danificada em um saco de lixo. Sua alegria com a descoberta parecia apagar completamente o cenário. Para o fotógrafo parecia uma cena surreal, que ele registrou a cada segundo.
Mas logo ele se rendeu à emoção e parou de fotografar. Foi quando Gabriel comentou sobre a árvore com a mãe: “Mãe, olha só, a gente pega essa árvore, ela está torta, mas a gente ajeita. A gente pega esse pisca-pisca e ajeita elas aqui e dá pra colocar na sala do dia de Natal”.
João contou, muito comovido: “Quando ele falou isso, acabou pra mim ali, eu não consegui mais fotografar. Não dava para enxergar nada com tanta lágrima”.
O fotógrafo conversou com o garoto e descobriu que ele gosta de Natal e queria muito ganhar um celular. Apesar do cheiro forte e da situação deprimente e agressiva do local – as pessoas disputam os restos com outras e com os urubus -, João permaneceu ali, registrando tudo que via, tanto em fotos como em vídeos. Sua intenção era compartilhar o que via com o mundo.
Realidade cruel da fome
Iniciou a divulgação de seus registros no Instagram, em 8/11, e deu sequência em reportagem publicada no site Metrópoles, que vale muito ler. Reproduzo, aqui, um de seus depoimentos.
“Ao chegar lá, fiz uma reunião com os catadores antes de o caminhão de um supermercado chegar. Foi quando fiz um vídeo estarrecedor mostrando o caminhão despejando lixo, e os catadores, incluindo crianças e mulheres grávidas, correndo atrás e brigando pelos alimentos. Aquelas imagens me marcaram de tal forma que, até hoje, meus pensamentos não saem daquele lugar. É chocante e aterrorizante ver a realidade cruel da fome desgraçando a vida de um ser humano. É um filme que está em minha cabeça e que tenho que lutar para mudar”.
A história viralizou, claro! João comentou que imaginava a repercussão que teria, mas não o que aconteceu de fato: “Foram mais de 41 mil pessoas diretamente atingidas e mais de 3 mil comentários”.
Infância ou sobrevivência
A boa repercussão nas redes sociais o animou a criar uma campanha simples de arrecadação para ajudar a família de Gabriel. Mas, muito dividido, João resolveu consultar seus seguidores sobre o que comprar – uma nova árvore já que a que o menino encontrou estava danificada, ou comida para a família – e declarou que era muito difícil escolher entre “infância ou sobrevivência”.
Em outro post, ele contou, muito feliz: “Gente, com a ajuda de vocês, consegui comprar a árvore de Natal, os enfeites e nove cestas básicas. Também comprei dois carrinhos pro irmão do Gabriel, Italo, que tem quase 3 aninhos e também merece um presente”.
A entrega da árvore para Gabriel foi comovente, realizada durante uma audiência pública (“bastante conturbada”, como destacou João), da qual participaram catadores e catadoras por meio de sua associação.
A ideia de ter uma associação para representá-los junto ao poder público é de Jean. E foi devido à força que tem esse tipo de entidade que ele chegou até Eurico. E, desde então, o defensor público tem tentado ajudar a comunidade, também com suporte a aconselhamento jurídico, em parceria de Bianca Kelly, secretária dos Direitos Humanos, da Família e da Mulher do município.
Campanha pelo Natal, até 7/12
Com o apoio de Eurico e Kelly e inspirada na mobilização de João, a Aliança André Mascia (que realiza ações de combate à fome) criou uma campanha de financiamento coletivo na plataforma Benfeitoria – Um Natal sem fome para as famílias do lixão Pinheiro/MA -, com o objetivo de comprar cestas básicas para as famílias de catadores e catadoras de Pinheiro, neste Natal.
A campanha ultrapassou a meta inicial de 7 mil reais, mas continua valendo até 7/12. No final deste post, comova-se com o minidocumentário que João produziu com as imagens que registrou no Lixão da Piçarreira, em Pinheiro. É uma bela ferramenta para tornar ainda mais conhecida a luta diária dos catadores e catadoras dessa região do Maranhão que, na verdade, representa a realidade de muitos brasileiros pelo país.
Lixões, até quando?
O Brasil deveria ter acabado com todos os lixões até 2014, mas isso só deve acontecer em 2024, dez anos depois. É o que prevê o novo Marco do Saneamento, sancionado em julho de 2020. Mas o fim em cada município depende da existência e da eficiência de um plano de resíduos sólidos e da quantidade de habitantes.
De acordo com a Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos e Efluentes (Abetre), ainda existem no Brasil 2.612 lixões em operação, a maioria no nordeste: são 1.426. Nas demais regiões, estão distribuídos assim: 390, no norte, 356, no sudeste, 342, no Centro-Oeste, e 98, no Sul.
Desde 2019, havia 3.257 lixões e foram fechados 645 em todo o país, indica o atlas sobre a destinação final do lixo, produzido pela Abetre. Este ano, de março a junho, o Programa Lixão Zero, do Ministério do Meio Ambiente, desativou 20 lixões apenas, nos estados do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul.
Também faz parte das metas desse programa, a descontaminação dos espaços onde os lixões forem fechados, que segue o mapeamento do Programa Nacional de Recuperação de Áreas Contaminadas.
Agora, assista ao minidocumentário de João Paulo Guimarães sobre a luta diária dos catadores e catadoras do Lixão de Piçarreira, em Pinheiro.
Foto (destaque): João Paulo Guimarães
Com informações do Instagram (perfis do João e de Eurico), do site Metrópoles, da Agência Brasil da Globonews