É impossível falar sobre vítimas do amianto no Brasil sem mencionar a engenheira Fernanda Giannasi. Como auditora fiscal do Ministério do Trabalho, percebeu o perigo do contato com o mineral fibroso conhecido como asbesto ou amianto e o que causava em mineradores, operários e suas famílias, e encampou a luta pelo banimento da produção e uso dessa matéria-prima no país.
Sua dedicação de mais de 35 anos a essa causa lhe rendeu embates com empresas e autoridades poderosas, processos criminais, administrativos e civis, punições no trabalho e ameaças, inclusive de morte. Também a obrigou a frequentar muitos velórios e enterros de pessoas que morreram e continuam a morrer por conta das várias doenças, principalmente pulmonares, causadas por esse mineral cancerígeno, proibido na maior parte dos países industrializados.
Usado principalmente na construção civil, em telhas, caixas d’água e tubulações, o amianto é tão perigoso que adoeceu até as esposas dos trabalhadores apenas por lavarem suas roupas. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu sua produção e utilização, mas uma lei do Estado de Goiás, de 2019, voltou a permitir sua exploração para exportação. “Precisamos urgentemente que o STF declare essa lei inconstitucional”, disse Fernanda ao blog Mulheres Ativistas, do Conexão Planeta.
Aposentada pelo Ministério do Trabalho, a engenheira continua sua atuação para que os contaminados recebam seus direitos enquanto ainda estão vivos, já que essas doenças podem aparecer até muitos anos após o contato com o mineral.
Quando o problema do amianto começou a chamar sua atenção?
Fiz concurso para o Ministério do Trabalho como agente de inspeção do trabalho – hoje o cargo é auditor fiscal do trabalho – em 1983. Ainda estávamos no processo de abertura e tive dúvidas em tomar posse, mas meus pais me convenceram. No andar onde eu ficava, havia um coronel do Serviço Nacional de Informação (SNI) de plantão. Na verdade, não queriam que trabalhássemos. Chegaram a nos mandar para casa e só aparecer por lá no plantão, uma vez por semana.
Nesse período, eu dava consultorias de segurança do trabalho e conheci uma fábrica que utilizava o amianto e resistia em substituí-lo, apesar dos rumores de que a matéria-prima seria proibida em breve em todo o mundo. Em 1985, com a abertura política consolidada, voltei a me dedicar full time ao Ministério, em uma época em que os sindicatos começaram a fazer fortes reivindicações e a ocupar espaços na sociedade.
Junto com um colega médico do Ministério, resolvemos escolher uma área temática para atuar na proteção ao trabalhador. Sugeri estudarmos o amianto porque fiquei cismada. Fizemos uma pesquisa bibliográfica e chegamos aos dois maiores fabricantes no Brasil, consumidores de 95% da produção nacional: a francesa Brasilit, do grupo Saint-Gobain, e a suíça Eternit, proprietárias da empresa de mineração de amianto em Goiás, a Sama, e também controladoras da distribuição do mineral no país. Descobrimos, então, que era um cartel onde as empresas associadas recebiam cotas pré-determinadas da matéria-prima, não podendo importar ou aumentar a sua produção. O cartel controlava da matéria-prima ao produto final.
A única variável era a mão-de-obra e, por isso, as empresas passaram também a controlar os sindicatos de trabalhadores. Um dos sindicalistas ligado às empresas nos procurou no Ministério e foi aí que tivemos contato com a Associação Brasileira do Amianto (Abra), organização propagandista do minério, que atuava para dizer que o asbesto não era perigoso se usado de forma controlada.
Criamos, então, o Grupo Interinstitucional do Asbesto (GIA), em 1985, com a participação da Abra e dos sindicatos de trabalhadores, e começamos a fiscalizar as fábricas do Estado de São Paulo, exigindo que se adequassem às recomendações da Convenção 162 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre o uso do amianto em condições de segurança, aprovada em 1986 e ratificada pelo Brasil.
Até esse momento, as empresas estavam abertas à negociação, porque sabiam que a discussão sobre o banimento estava crescendo em vários países. No decorrer do tempo, percebendo o poder do lobby empresarial, me afastei da ideia de que era possível usar amianto com segurança.
O que a fez mudar de ideia sobre o uso seguro desse mineral e abraçar a luta pelo seu banimento?
No início da década de 1990, eu atuava também sobre os problemas de saúde no setor nuclear e, por conta disso, em 1992, conheci o deputado estadual do Rio de Janeiro e ambientalista Carlos Minc, durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente, a Rio-92. Ele criticava duramente o uso do amianto nos estandes do Fórum Global das ONGs e Movimentos Sociais, no aterro do Flamengo. Na sequência, propôs o projeto de lei de seu banimento no Rio de Janeiro e me convidou para ajudá-lo. Foi um divisor de águas na minha vida.
Em 1993, fui convidada para um evento promovido pelos parlamentares dos partidos verdes europeus, em Milão, no qual foi criada a Federação Europeia do Banimento do Amianto, que havia sido proibido na Itália em 1992. Propus que o movimento deveria ser mundial; caso contrário, o terceiro mundo concentraria a produção suja e perigosa em suas zonas mais vulneráveis. Os presentes, então, concordaram em fazer um evento semelhante no Brasil, que aconteceu em 1994, em São Paulo.
Mesmo com a tentativa de esvaziamento do encontro pelo governo brasileiro, foi aprovada a criação da Rede do Banimento do Asbesto, com coordenações por continentes. Assumi a coordenação latino-americana. Com a popularização do uso da internet, conseguimos nos articular globalmente, disseminando nossas propostas de banimento do amianto e justiça para as vítimas; daí, iniciaram-se os grandes embates e processos, inclusive, criminais contra nós.
Para que serve e por que o amianto é tão ruim?
Esse minério foi usado, em 95% dos casos, na construção civil, na fabricação de telhas, caixas d’água e tubulações, mas também em tanques, forros, pisos, divisórias e outros tantos artefatos conhecidos como cimento-amianto. Comecei a ter contato direto com as vítimas quando fui transferida para Osasco, em 1995, como retaliação por minha atuação – aos 37 anos, estava em uma gravidez de risco.
Nessa época, a fábrica da Eternit, a maior de toda a América Latina, fechada em 1993, estava sendo demolida para a construção de um hipermercado e embargamos a obra. Com a repercussão do caso, ex-empregados começaram a me procurar no Ministério do Trabalho para relatar que estavam doentes: “estouro” da pleura, câncer de pulmão, mesotelioma (conhecido como câncer do amianto) etc. A progressão foi geométrica. Pedi para que eles reunissem os ex-colegas com queixas de saúde.
Dos oito primeiros que foram fazer exames na Fundacentro, órgão do extinto Ministério do Trabalho, só em um não detectaram nada no pulmão. Ironicamente, ele morreu no fim daquele ano de mesotelioma de peritônio, uma das doenças mais raras causadas pelo amianto. Hoje, há uma praça em homenagem a ele em Osasco. Rapidamente, conseguimos reunir 1.200 pessoas, das quais 60% apresentaram alguma alteração no pulmão, sem contar as que já tinham morrido sem diagnóstico. Foi quando começamos a conversar com os ex-empregados e a orientá-los sobre a necessidade de terem uma representação.
A fábrica havia fechado porque o proprietário do conglomerado suíço Eternit, Stephan Schmidheiny, considerado o guru empresarial do desenvolvimento sustentável, disse que despertou para a gravidade da situação em sua temporada em Osasco para aprender a gerenciar os negócios da família, e, sensibilizado com o que viu, vendeu as suas ações da multinacional para a concorrente francesa Brasilit. A nova empresa formada com a junção (Eterbrás) fez uma restruturação e fechou as fábricas de Osasco e a de São Caetano do Sul.
Como você passou a atuar desde então?
Comecei a me reunir com os ex-empregados e os ajudei a fundar, no final de 1995, a Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea). Até hoje sou a primeira a ser comunicada das mortes e convocada para os velórios das vítimas.
Pelos nossos levantamentos, as pessoas que trabalharam com amianto nas décadas de 1940 e 1950 morreram sem diagnóstico relacionando à exposição; a maior parte dos que atuaram entre 1960 e 1970 também morreu, mas conseguimos realizar diagnósticos em parte deles. Agora, estamos na terceira onda de adoecimento, a dos que trabalharam entre 1980 e 1990. As doenças relacionadas ao amianto aparecem, na sua maioria, décadas após o primeiro contato com o mineral.
Não temos estatísticas confiáveis sobre os atingidos no Brasil. Estudo do pesquisador da Fiocruz Francisco Pedra relatou que, nos últimos 30 anos – entre 1980 e 2010 – houve 3.718 óbitos por mesotelioma. Mas esses números estão subestimados, se compararmos com a média de países como Inglaterra, França e Itália, com 5 mil mortes anuais, e 10 mil nos Estados Unidos. No Brasil, temos ainda o agravante da quantidade de vítimas entre homens e mulheres ser quase equivalente, diferentemente do que ocorre noutros países, porque, aqui, as mulheres lavavam as roupas dos mineradores e operários. Trabalho doméstico como causa da contaminação.
Quando me aposentei do Ministério do Trabalho, fiquei um ano de quarentena e agora sou consultora para os advogados da Abrea, onde atuo desde sua fundação como voluntária. Faço a ponte entre os advogados, os atingidos, suas entidades e as instituições públicas e privadas de saúde e previdência.
O que mudou desde a criação da Abrea?
Nesses 25 anos da associação, os atingidos passaram a ter visibilidade social e interlocução com a Previdência Social (INSS), Sistema Único de Saúde (SUS), Ministérios Públicos e, também, com as diversas instâncias dos poderes Legislativo e Judiciário na busca do reconhecimento de sua condição de vítimas do amianto e na luta por sua proibição. Nesse período, como auditora-fiscal do trabalho, denunciei ao Ministério Público do Trabalho (MPT) as empresas Eternit e Brasilit, que celebravam acordos extrajudiciais de indenização às vítimas, por sonegarem os casos de doenças tanto ao INSS como ao SUS. As empresas foram autuadas e parte do dinheiro foi doado para o Instituto do Coração (Incor), onde foi criado um ambulatório equipado para atender as vítimas do amianto.
Qual é a situação legal do uso do amianto no país?
O primeiro projeto de lei de banimento do amianto foi do ex-deputado federal Eduardo Jorge, em 1993; projeto reapresentado em 1996 em conjunto com o, então, colega Fernando Gabeira. Mas a chamada Bancada do Amianto Branco ou Crisotila, no Congresso Nacional, majoritariamente composta por parlamentares de Goiás, onde está a maior jazida de asbesto da América Latina, se uniu e barrou sua aprovação. Assim, nossa luta foi redirecionada para as assembleias estaduais e câmaras municipais, onde podíamos ter maior participação e voz.
A primeira lei aprovada foi a de proibição do amianto no Estado de São Paulo, seguida por outras em vários estados e municípios, incluindo a capital paulista. A partir dos anos 2000, porém, houve forte reação do empresariado e seus apoiadores e começaram a pipocar ações no STF pela inconstitucionalidade das leis. A alegação é que se a lei federal permitia o uso, o estado não poderia proibir.
Em 2001, o STF acatou o pedido de inconstitucionalidade e revogou a primeira lei paulista de banimento do amianto e a do Mato Grosso do Sul. Em 2008, outra lei de proibição do uso do amianto foi aprovada no Estado de São Paulo e, dessa vez, em 2017, o Supremo mudou sua posição, e decidiu que os estados poderiam ser mais restritivos.
Em meados de 2019, no entanto, contrariando a decisão do STF, uma lei estadual de Goiás permitiu a extração e o beneficiamento do amianto para fins de exportação. Com isso, a Eternit, controladora da Sama, anunciou a retomada, nesse ano, da produção do amianto em sua mina no município de Minaçu. Alega que a operação é temporária e para fins de exportação, e visa processar o minério remanescente, extraído anteriormente à paralisação da mineradora em 11 de fevereiro de 2019. Precisamos, agora, que o STF declare essa lei inconstitucional.
Quem ainda usa amianto no mundo?
O Brasil chegou a ser o terceiro maior produtor e exportador mundial e o quarto maior consumidor. Atualmente, é produzido na Rússia, que consome e exporta grande parte da produção; a China, para consumo interno, e o Cazaquistão. A Índia é o maior importador, além da Indonésia, Tailândia e outros países asiáticos, com exceção do Japão e Coreia do Sul, principalmente para uso no setor de construção em coberturas de imóveis.
Seu ativismo rendeu processos, punições e ameaças de morte ao longo desses anos. Como lidou com isso?
Minha história de vida me preparou para isso. Nasci em Ribeirão Preto, em uma família de imigrantes italianos, cujos avós maternos viveram as agruras da primeira guerra mundial na Europa, e que sempre me inspiraram. Meu pai era diretor e minha mãe professora na escola pública que estudei e me sentia obrigada a ser uma ótima aluna. Não podia decepcionar meus pais.
Um professor de física me incentivou a fazer engenharia e, aos 17 anos, em 1976, fui aprovada para o curso de engenharia na USP, campus de São Carlos. Dos 180 alunos de engenharia, éramos só seis meninas. Foi um período duro para mim e meus pais, pois eu nunca tinha saído de casa. Por questões familiares, retornei para Ribeirão Preto onde me graduei. Depois de formada, mudei para São Paulo e estagiei no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) até prestar o concurso para o Ministério do Trabalho.
Quando vim para São Paulo, recém formada e casada, descobri, após o casamento, que meu marido tinha uma doença neurológica, que foi tornando-o muito agressivo. Sofri violência doméstica até que, um dia, liguei para meu pai, que veio me buscar. Meu casamento durou um ano e meio e foi anulado em um processo muito doloroso. Pedi a anulação e, por incrível que pareça, o fato de sofrer agressões físicas e psicológicas não foi considerado motivo para tal, mas, sim, ele ser portador de esclerose múltipla cerebral e não poder procriar.
Na vida profissional, fui punida no Ministério do Trabalho algumas vezes, incluindo transferências arbitrárias, em 1990 e 1995, de São Paulo para a Subdelegacia do Trabalho de Osasco, conhecida como o local para onde mandavam os indisciplinados. Alegando que era para me proteger, me tiraram da fiscalização em 2004, e me colocaram em serviço interno em uma sala de arquivo morto sem computador ou telefone. Além disso, sofri processos criminais, administrativos, civis e até uma queixa-crime pela arcaica lei de imprensa da época da ditadura militar.
Também recebi muitas ameaças, como ligações telefônicas para mim e para a casa dos meus pais e cartas anônimas, inclusive do exterior. Recebi duas cartas vindas da Alemanha que me chamavam de nazista, dizendo que eu morreria queimada. Entreguei-as para a Política Federal e a Interpol, que não tomaram nenhuma providência. Era a época das correspondências que chegavam com denúncias de contaminação com antraz, o que me deixou muito assustada. Mudei de apartamento e fui morar no prédio dos meus pais para minha filha ficar mais protegida perto dos avós.
Mas não me intimidei, principalmente porque minha família sempre me apoiou. Minha mãe frequentava as assembleias das vítimas e até colaborava financeiramente com a associação. Meus pais tinham orgulho do meu trabalho e minha filha única, Élena, que jamais cobrou minhas ausências, me vê como exemplo. Valeu a pena. Foi sofrido, mas nunca pensei em desistir.
Edição: Mônica Nunes
Foto: arquivo pessoal