Espectros ancestrais vão puxar o pé

espectros ancestrais

É como se não houvesse passado. Como se os antepassados donos da terra se desfizessem… Sumissem. Evaporassem. Como se não sobrasse memória. Como se… Só como se. Porque a memória resiste. Sim, ela há de resistir. A cultura, a tradição, o saber não podem e não vão sumir. Diz para mim que não deixaremos, que não deixarão.

Diz que é mentira a morte da professora Olivia Arevalo, líder e sábia indígena do povo Shipibo Konibo, assassinada com cinco tiros no coração em seu próprio lar. Como parar a constante ameaça dos irmãos e irmãs da Amazônia e de todo Brasil? Como parar o extermínio?

Como manter viva a cultura? Só uma enciclopédia indígena basta para abrandar a culpa histórica? Diz que a Enciclopédia de Medicina Tradicional da tribo amazônica Matsés não será a primeira, nem a única a guardar o conhecimento ancestral. A enciclopédia, compilada por cinco xamãs, com a ajuda do grupo de conservação norte-americano Acaté, detalha cada planta utilizada pelos Matsés como remédio para curar uma grande variedade de doenças. Diz que, nas próximas vezes que se fizer uma enciclopédia de saberes indígenas, não será preciso vir uma ONG norte-americana para trabalhar nela.

O xamã Matsés chamado Cesar

Diz para mim que a nova plataforma de streaming (transmissão online) para filmes indígenas, Vídeo nas Aldeias, terá um sucesso estrondoso. Que todos vão querer ver o trabalho dessa ONG, fundada por Vicent Carelli, responsável por registrar desde 1986 a realidade dos povos indígenas no Brasil, promovendo, desde 1997, a formação de cineastas indígenas nas aldeias. Um grande trabalho produzido em mais de 127 oficinas, com oito mil horas de gravação e vídeos com mais de 31 povos não pode ficar restrito a uns poucos preocupados com o genocídio indígena e com a falta de demarcação de terras.

Na plataforma, é possível assistir a 88 filmes, em streaming ou por download, que podem ser comprados ou alugados por uma semana. Até então, os vídeos eram distribuídos em DVD mas, segundo Carelli, o streaming permite ampliar o acesso ao material. Essas iniciativas têm que se alastrar, ganhar publicidade, explodir de êxito, como filme chato de Hollywood, como série sem graça da Netflix.

Cena do filme “Martírio”, dirigido por Vincent Carelli,
e disponibilizado gratuitamente por um mês na nova plataforma 

Diz, por favor, que os índios Fulni-ô vão se acabar de vender artesanato aqui em Curitiba, durante essa viagem anual que fazem à cidade. Que os filhos vão lá comprar presentes para as mães. Que o Museu Paranaense vai encher de gente  para ver a dança deles, para conhecer o que é verdadeira referência e chão; para se alimentar da fonte natural e viva da história do único grupo do Nordeste que conseguiu manter viva e ativa sua língua – o Ia-tê, além de um ritual chamado Ouricuri, realizado em sigilo.

Diz que as fotos da brasileira Ana Mendes e do uruguaio Pablo Albarenga, que estão expostas lá no Uruguai, vão mexer nessa vontade (que não, não é inata, não pode ser) de consumir a mesmice cômoda.

Enterro do agente de saúde indígena Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, 23 anos,
Reserva Te’ykue, Caarapó, MS

A exposição fotográfica “Mantenho o que disse” foi inaugurada em Montevidéu com oitenta painéis que revelam as condições em que vivem os indígenas da segunda maior etnia brasileira, os Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. O ensaio é resultado de três anos de trabalho.

Frases de políticos brasileiros ditas durante discursos ou entrevistas, colocadas ao lado das fotos, completam o cenário que provoca no mínimo indignação. A foto de uma criança no hospital é complementada por essa frase: “Estão aninhados quilombolas, índios, gays, lésbicas, tudo que não presta, estão aninhados ali”, dita por um deputado federal em 2013.

Internado na cidade de Dourados no Hospital da Vida de Dourados,
os indígenas feridos no conflito de Caarapó. MS. Josiel Benites, 12 anos

São 15 frases, entre elas: “Vamos parar com a essa discussão sobre terra. A terra enche barriga de alguém?” ou “Temos que produzir sustentabilidade. Ensinar a pescar.”

Que os espectros ancestrais venham puxar o pé de quem fala essas besteiras.

 

Exposição Fotográfica Mantengo lo que dije (Mantenho o que disse) de Ana Mendes e Pablo Albarenga
Data:
até 11 de junho de 2018
Local: Fotogaleria Prado
Endereço: Pasaje Clara Silva, esquina Av. Delmira Agustini. Montevidéu, Uruguai

Mês do Índio no Museu Paranaense
Exposição e venda de artesanatos do povo Fulni-ô
Data: 24/04 (terça), 26/04 (quinta), 29/04 (domingo) e 03/05 (quinta).
Horários: terças e quintas das 9h às 17h; domingos das 10h às 12h.
Entrada gratuita

Agendamento de grupos
Para quem quer conhecer mais sobre os indígenas e para que grupos escolares possam aprofundar o contato com a cultura indígena, o  Setor Educativo do Museu Paranaense já está agendando atendimentos às escolas nesses dias no próprio local.

Museu Paranaense
Endereço: Rua Kellers, 289 – São Francisco – Curitiba – Paraná
Horários: terça a sexta-feira, das 9h às 18h, sábados e domingos das 10h às 16h
Informações (41) 3304-3300

Fotos: Ana Mendes (abertura e velório), Acaté (xamã indígena)

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Karen Monteiro

Com arte, tá tudo bem. Se as exposições, peças de teatro, shows, filmes, livros servirem de gancho para falar de questões sociais e ambientais, tanto melhor. Jornalista, tradutora, cronista e assessora de imprensa, já colaborou com reportagens para grandes jornais, revistas e TVs.