“Erramos em vários lugares, nos achamos o centro do mundo. E o vírus nos mostrou isso”, diz Monja Coen sobre a pandemia

"Erramos em vários lugares, nos achamos o centro do mundo. E o vírus nos mostrou isso”, diz Monja Coen sobre a pandemia

Ela reúne mais de um milhão de seguidores só no YouTube, que acompanham seus ensinamentos sobre relacionamento, bem-estar, depressão e outros temas que afligem a sociedade moderna. Depois de ser jornalista e bancária, a Monja Coen optou por dedicar a vida ao estímulo de uma sociedade mais plural, tolerante e afetuosa.

Para ela, o momento histórico que vivemos exige uma série de reflexões. Estamos diante da mudança forçada de comportamento social imposta pela pandemia, do crescente desmatamento, do desgoverno ambiental no Brasil, do cenário pessimista de mudanças climáticas globais e de crises econômicas e sociais. Os tempos são difíceis, mas, para que possamos superar com saúde mental esta fase, é preciso manter o otimismo e alimentar a espiritualidade.

O Observatório de Justiça e Conservação promoveu recentemente uma live com a monge zen-budista. O vídeo completo da entrevista concedida pela Monja Coen está disponível no canal do OJC no YouTube. A seguir, um recorte dos trechos mais expressivos da conversa.

Como você avalia o momento pelo qual passamos?
O que nós temos é um vírus que nos faz todos iguais, semelhantes. Ele não escolhe país, não escolhe tipo de pessoa, não tem preferência. Ele quer uma célula humana para se hospedar. Nós somos os hospedeiros e as hospedarias. Se a hospedaria está em bom estado, logo percebe o que está acontecendo, consegue tornar essa infecção, essa contaminação mais suave, não nos leva à morte. E isso também quer dizer espiritualidade.

Espiritualidade não é uma coisa separada do seu corpo, da sua vida. Como você tem se cuidado? Como você percebe que seu corpo é o sagrado manifesto? Você tem respeitado, usado seu corpo de forma adequada? Criou causas e condições para ter imunidade? Porque, perceba, todas as nossas insatisfações, as nossas intranquilidades, os nossos estresses, as nossas ansiedades, diminuem a imunidade.

Então, se você entra no estado de equilíbrio, aprende a fazer respiração consciente, energiza seu corpo e seu cérebro, fica num estado de mais tranquilidade que vai permitir aumentar sua imunidade.

Independentemente de como o vírus chegou até nós, no budismo acreditamos que o universo é de causas e condições. E como essas causas e condições chegaram até essa pandemia? Erramos em vários lugares, nos achamos o centro do mundo. E acho que o vírus também nos mostra isso; que não é mais o antropocentrismo, o ser humano como centro da natureza e da vida, mas é o biocentrismo: o que está no centro da vida é a própria vida.

Qual o papel e a responsabilidade humanas nesta pandemia?
A vida tem seus movimentos e suas transformações. Nós somos um dos vetores, um dos elementos, mas não o único. Nós participamos desta feitura, mas não somos os únicos responsáveis. As mudanças de vida de uma espécie para outra não foram escolhas nossa. Podemos pensar que é um carma coletivo, mas o que a gente questiona de carma é o seguinte: o que você faz com aquilo que chega até você?

Como você age frente à adversidade, é o carma que você cria. Então, se temos um carma coletivo, alguma coisa que afeta a todos nós, como nós nos manifestamos? Há pessoas que dizem: “Ok, eu não posso sair de casa”, “O que eu posso fazer em casa”? “Ah, eu tenho que produzir”. Não! Você pode fazer nada, viver, apreciar sua vida, estudar, fazer escolhas. Uma senhora que eu conheço arrumou a casa inteira, reviu todos os armários, jogou fora uma porção de roupas desnecessárias, entrou para a simplicidade. 

É um processo de limpeza mental e autoconhecimento para repensar nosso consumo e nossa história pessoal?
Isso mesmo. Uma coisa boa para se fazer. É uma sugestão que eu dou para mim e para todos: essa limpeza interna e externa, porque nós mudamos. Não somos as mesmas pessoas que éramos nem ontem, quanto mais há dez anos. Às vezes, temos coisas guardadas que não tem por que guardar, precisamos do espaço para entrar o novo. Se tiver tudo lotado, o novo não entra. Na nossa mente, a mesma coisa. Se ela está sobrecarregada de ideias, de coisas para fazer, de excessos, uma nova possibilidade não encontra espaço. Então, é importante limpar sempre os armários externos e internos.

E como lidar com as emoções que vêm à tona?
Esse isolamento é um momento delicado. Estamos muito mais sensíveis quanto aos nossos sentimentos e nossas emoções. Mas não adianta revirar o passado. Não é sobre como foi, e sim sobre como será daqui em adiante e o que aprendemos. A vida é movimento e transformação. Não voltaremos a ser o que éramos. É impossível! 

E estamos passando por uma pandemia, por uma situação muito dolorosa, difícil, às vezes a gente acorda triste, às vezes fica triste no meio do dia, sem aparentes motivos. É uma grande tristeza acontecendo, muitas pessoas morrendo, muitas pessoas doentes. Em alguns lugares, não há hospitais suficientes, nem leitos ou respiradores, médicos e enfermeiros trabalham sem os equipamentos necessários.

O que podemos fazer diante desta situação?
O bonito é que nós humanos somos sensíveis e temos empatia. A gente pode orar! Todas as manhãs vou em frente ao altar e faço as minhas preces, peço para que a gente encontre os remédios, as curas para as doenças relacionadas ao coronavírus, que a gente possa encontrar, não só a vacina e os remédios, mas, principalmente, a cura.

Segundo o presidente do Brasil, 70% da nossa população vai ficar contaminada e a gente espera que não se contaminem todos ao mesmo tempo, porque será um horror. Não tem hospital, médico, túmulo, caixão de defunto e coveiro que vão dar conta. Para algumas pessoas, não vai acontecer nada. Cada um de nós tem um corpo, um sistema diferente, que independe da idade e de doenças prévias, E aí tem o carma, como você responde a isto? Você pode dizer “Não ligo”, “Não estou nem aí”, “Se eu pegar ou morrer, está tudo bem”. Ou tomar atitudes adequadas e não ficar reclamando ou resmungando. Não atrair coisas prejudiciais, ao contrário, precisamos sentir prazer com a nossa existência.

Eu sei que é difícil, mas viver é bom, mesmo na pandemia. Que bom que eu estou viva, que posso respirar sem precisar de aparelhos, posso beber água, sentir o sabor sem nenhum plástico na minha garganta. Apreciar e dar valor à vida é o mais importante. Onde estamos é o melhor lugar do mundo. Vamos fazer deste o melhor lugar; e dos nossos parceiros, parceiras e colegas, as melhores pessoas.

O que mais a pandemia pode nos trazer de positivo?
O sentido da solidariedade é uma coisa que a gente tem visto aparecer, que faz parte da pandemia. Isso é criar carma benéfico. Quando você para de julgar os outros e apenas acolhe o que chega até você, muda de atitude e de sentimento. Quando você se percebe identificado com outros seres humanos, começa a entrar num nível que a gente chama de nível de “iluminação”. Isso gera um carma benéfico para o mundo.

Cada um de nós é o Todo Manifesto, essa poeira cósmica. Somos feitos da mesma matéria que se fazem estrelas e planetas. As proporções são diferentes, mas somos muito pequenos, ínfimos. Talvez sejamos para este universo como o vírus é para nós. Aquela coisa invisível, pequena e muito destruidora do planeta.

O maior buraco da camada de ozônio fechou durante a quarentena, ou seja: se pararmos de poluir, vamos ter uma vida melhor. Se pararmos de usar tantos poluentes para tudo, a nossa respiração vai ser melhor. Começamos a ter mais solidariedade, então, eu espero que a gente saia daqui mais consciente do que é preciso exigir das administrações públicas.

Não é só na hora da pandemia que eu me preocupo com os detentos, com o sistema presidiário do Brasil, tenho que me preocupar sempre. Há quem ache bom e diz “bandido tem que morrer”. Alguns deles são inocentes, nem foram julgados e estão erradamente detidos. Pessoas mudam, transformam-se; se a gente não acreditasse na transformação humana, fechava escolas, porque do jeito que nasce, vai morrer. Experiências, leituras e encontros nos transformam, como esta pandemia está nos transformando. Espero e gostaria que saíssemos melhores, mais conscientes, sem discriminações e preconceitos, porque somos uma única família, a família humana, e precisamos uns dos outros.

Há um despertar da consciência coletiva por meio da pandemia?
Há pessoas que ainda estão pensando em ficar ricas e lucrar com o sofrimento da humanidade. Gostaria que a gente acordasse, despertasse e começasse a se cuidar mutuamente. Tudo na vida, se não estiver acompanhado pela ética e pelo princípio de fazer o bem, ao maior número de seres, pode ser muito perigoso.

Eu espero que alguns de nós, e não vão ser todos, tenham esse despertar da consciência e vivam com mais solidariedade, mais cuidado. Começar esvaziando para aquilo que é o essencial, uma vida mais simples, natural e leve, é um caminho. Cada um de nós está em um nível de compreensão e de maturidade espiritual diferente, então, aqueles que estão mais amadurecidos, que já tiveram o despertar, vão estar provocando outras pessoas ao despertar. Tem outros que ainda estão longe disso.

Nossos governantes também precisam caminhar para essa consciência?
Um despertar da consciência para todos, principalmente para as lideranças administrativas, econômicas, políticas, não só do país, mas do mundo. Vi uma notícia sobre mulheres administradoras, como foram capazes de ser mais compassivas, pensando primeiro no bem das pessoas.

Grandes lideranças femininas do mundo, em seus países, nas suas áreas, conseguiram sair mais rapidamente da pandemia, com menos infecção e mortes. Porque houve uma preocupação com a vida e com os seres humanos. Algumas empresas estão fazendo muito bonito, com grandes doações, com pessoas distribuindo máscaras gratuitamente, oferecendo-as para hospitais, entregando cestas básicas, percebendo que cada ser humano é muito parecido conosco. Sofre como nós sofremos. Então, cuidando do outro, cuidamos de nós mesmos.

As pessoas vão aumentar essa percepção da necessidade de um respeito maior pela natureza e pelo meio ambiente? Nós, do OJC, sentimos que muitas vezes é difícil convencer as pessoas sobre a importância de mudar atitudes e ações em prol da natureza.
Espero que sim! Por mais que você fale, nunca é suficiente, continue falando. Tudo isso que aconteceu tem a ver com o nosso descuido com o meio ambiente. Se estivéssemos cuidando de forma adequada, não estaria assim. Está na hora de as pessoas pensarem nisso, de pensarem em políticas públicas e mais no cuidado, porque não adianta só falar e fazer, tem que educar. A educação ambiental em primeiro lugar!

Mais importante do que ler, escrever, somar e diminuir, é saber ler a natureza, ler a realidade, ver o que está acontecendo e como você age para isso. Se nós cuidarmos da Terra, nossa espécie poderá viver mais tempo e com mais saúde. Mas, se descuidarmos, nossa espécie vai desaparecer, a terra vai ficar diferente e vão surgir outras espécies.

É esse observar profundo, de longo alcance, que a gente tem que desenvolver em todas as pessoas. Começo, meio e fim, de onde vem, para onde vai, tudo o que você fizer. A gente tem que ter essa noção, de que tudo é um só e que nós somos elementos de transformação, que podemos tornar o mundo melhor e o meio ambiente, mais saudável.

A pandemia pode acelerar essa percepção ambiental?
O meio ambiente nos inclui, não estamos separados, dependemos de tudo para nossa sobrevivência e por isso eu digo sempre: cuidando, somos cuidados. A Terra é um ser vivo e nós somos os filhos. Será que não gostamos da nossa mãe? Queremos abusar dela, matá-la, atropelá-la, cortá-la em pedaços? Espero que essa pandemia promova um abrir da consciência para que nos lembremos de que somos a vida na terra e precisamos cuidar da terra, do ar, das águas, dos mares, das matas, dos rios, de tudo o que existe.

Esta pandemia pode ser usada como um instrumento educacional. Como podemos viver após ela sem voltar a ser aquilo que éramos antes, que não era bom. Aquilo não era normal. Estávamos tão aflitos, desesperados, pensando em correr, ganhar dinheiro, ter fama, ter isso e aquilo, que perdemos o rumo, perdemos o sentido verdadeiro da existência. Que a gente possa resgatar esse sentido. Eu acho que isso talvez seja a maior lição que a gente pode tirar dessa pandemia.

Um momento histórico tão triste pode ser um marco na evolução humana e no respeito ao planeta?
Evolução e transformação. Eu acho que uma das coisas que podem ser produzidas e que é importante é a consciência ambiental. É possível fazer muito se a gente começar um novo olhar para a realidade, inclusive para a produção agrícola, sem usar tantos agrotóxicos, tantos venenos, procurar minimizar aquilo que possa causar mal a nós como espécie e à natureza. Então, é importante esse observar profundo, observar de longo alcance, não o imediato, mas lá adiante, sobre o que vai dar vida à própria vida.

Já é possível observar essa mudança de postura em algumas lideranças mundiais, como do governo alemão, que anunciou prioridade de investimentos a negócios verdes. O caminho é por aí?
Que exemplo para o mundo a primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel. Que mulher exemplar em tudo o que tem feito. Ela está mostrando superioridade intelectual e visão ampla que alguns não têm. É uma mulher ética, que faz o bem para o maior número de seres, e não só para um grupinho.

Não vai ser imediato, não vai ser o mundo todo, mas acho que muitos estão tendo essa evolução. Assim eu espero. Trabalho, escrevo, falo e vivo procurando fazer que todos que eu conheço também acordem, despertem e vivam para cuidar da vida. Sendo vida, cuidamos do verde tão necessário para nós.

*Esta entrevista artigo faz parte da edição de junho do jornal online e gratuito do Observatório de Justiça e Conservação que será lançado esta semana. Para acessar as demais reportagens clique aqui.

Leia também:
“A pandemia é o resultado de nosso absoluto desrespeito ao meio ambiente e aos animais”, diz Jane Goodall

Foto: reprodução Facebook Monja Cohen

Deixe uma resposta

Observatório de Justiça & Conservação

O Observatório de Justiça e Conservação (OJC) é uma iniciativa apartidária e colaborativa que trabalha fiscalizando ações e inações do poder público no que se refere à prática da corrupção e de incoerências legais em assuntos relativos à conservação da biodiversidade, prioritariamente no Sul do Brasil, dentre os quais se destacam, a Floresta com Araucária