#EhProblemaMeu: campanha convoca homens a assumirem responsabilidade por violência contra as mulheres

“Passa a vara!”, “senta a rola!”, “pega de jeito!”, “comer”, “meter”, “foder”, “aê, garanhão!”, “pegador”, “comedor”, “não tem mulher que não dá, só homem que não sabe pegar!”, “ela tá pedindo”, “vai lá, pega ela, mostra que é macho!”, “ela não te dá bola? é porque está se fazendo de difícil”.
É assustador ouvir (ou ler) essas expressões tão agressivas, uma atrás da outra. Parece que elas ganham uma dimensão ainda maior de agressividade. Foi o que senti quando assisti ao filme da campanha É problema meu!, lançada na semana passada nas redes sociais por voluntários, e que já viralizou.
Sem qualquer vínculo com instituições ou partidos políticos, este movimento começou a ser gestado aqui, no Brasil, assim que o engenheiro israelense Jacob Shar, que mora no Rio de Janeiro há quatro anos, assistiu ao filme original, no ano passado.
Ele ficou muito tocado com a mensagem da campanha lançada em agosto de 2020 em Israel, com o filme It’s My Problem!, realizado para “romper com o predominante e tóxico modelo de masculinidade difundido na nossa sociedade”.

“O problema é do homem, sim! Permitimos a cultura da objetificação da mulher. Sentimos que somos especiais quando conquistamos muitas mulheres. E não precisa ser assim!”, destacou em entrevista para o jornal O Globo.
“Lembrei de casos como o de Mariana Ferrer (vítima de “estupro culposo”, cujo agressor foi identificado pela polícia, mas vergonhosamente absolvido) e achei que o Brasil precisava de uma mensagem como esta”, completou.
Precisa e muito! De acordo com o Anuário Brasileiro de Violência Pública de 2020, a cada oito minutos uma mulher é estuprada. E, com base em pesquisa divulgada pelo Instituto Patrícia Galvão em dezembro passado, sete em cada dez mulheres foram vítimas de assédio ou alguma violência no trabalho.
Masculinidade tóxica

Indignados com o caso de estupro coletivo, que abalou Israel em 2020, Nadav Slor, Mordechai Braunstein e Yael Rapoport – dois homens e uma mulher – se uniram e produziram o filme It’s My Problem!, no qual homens questionam a forma como foram ensinados a ver e a tratar as mulheres, e que tem contribuído para aumentar a violência contra elas.
Jacob entrou em contato com os idealizadores da campanha para obter autorização para disseminá-la no Brasil. Assim que obteve a resposta, começou a procurar pessoas que topassem desenvolver a campanha de forma voluntária, e encontrou na produtora cultural Lia Levin a parceira perfeita para realizar a empreitada.
“Ele me encontrou nas redes sociais devido a amigos em comum. O vídeo me tocou profundamente. Topei na hora! Esse assunto é urgente! E se é urgente, a gente tem que levantar da cadeira e fazer, não esperar que alguém o faça!”, contou ela.
Lia não está ligada a movimentos feministas, mas se considera ativista porque “essa causa me permeia todos os dias: a desigualdade de gênero, a subjugação da mulher, a associação de estereótipos de gênero. Vivo isso todos os dias. Fui vítima de assédio, muitas vezes, e não conheço uma mulher que não tenha passado por isso”. E acrescenta:
“Acredito que nem todo mundo conhece uma mulher que sofreu violência sexual porque a maioria das vítimas esconde o fato. Ainda é uma vergonha pra mulher ter sofrido esse tipo de violência, quando deveria ser uma vergonha para o abusador”.
Adaptação, casting e adesão
A concepção visual do filme é a mesma do original. Fundo escuro, luz sobre homens de diversas etnias e idades vestidos com camisetas ou camisas brancas. Já o texto não foi apenas traduzido, mas adaptado à nossa cultura e linguagem por Erez Milgrom.
“O encadeamento de pensamentos foi mantido, mas foram feitas adaptações para chegar à mensagem que a gente queria passar. Para isso, o texto passou pela leitura de alguns homens que nos ajudaram a inserir expressões específicas do vocabulário masculino”, explica Lia.
“Não tem como traduzir as expressões usadas pelos homens israelenses. Precisávamos mostrar como os brasileiros manifestam seu machismo – por vezes sem nem ter consciência disso”. A identificação só seria possível assim.
Para fazer o recrutamento dos voluntários que gravariam a mensagem, Lia fez o convite em suas redes sociais e entre amigos. Muitos homens se voluntariaram. Outros foram sugeridos por amigos. Outros ela convidou diretamente.
A produtora ainda conta que todos que toparam participar da campanha se emocionaram muito com o texto. Isso está evidente no filme.
“Todos se entregaram de corpo e alma. Eu mesma, toda vez que assisto ao vídeo, que já sei decór, me emociono, porque os participantes colocaram muita emoção, muita verdade em suas falas. Eles foram profundamente sensibilizados com essa causa”, revela Lia.
“Só por eles estarem nesse filme podemos dizer que são ativistas: colocar a cara lá pra bater e falar sobre esse assunto, dessa forma, é muito forte. Sem a adesão desses homens, não teria campanha!”.
São eles: Adriano da Silva Santos, Bruno Amorim, Denilson Oliveira, Edson Lopes, Flavio Bitelman, Gil Savransky, Jair Guilherme Filho, Jefferson Sabino, Julio Borges, Kei Ando, Lucas Antonini, Maikon Vasconcelos Oliveira, Michel Nastavsky, Renato Mesquita, Sergio Friedman e Victor Lopez.
Para viabilizar a realização do filme, Jacob e Lia contaram com a adesão de voluntários também na direção, fotografia, edição, mixagem e áudio, como também no estúdio cedido pela O2 filmes. Na alimentação – imprescindível numa produção como essa – tiveram o apoio do Restaurante Teve e do Papaya Cine. Estão todos na ficha técnica, no final do vídeo. Todos comprometidos com a causa para dar um basta à violência contra as mulheres.
“Uma grande voz que coloco no mundo”
Na primeira semana da campanha em Israel, o vídeo original foi publicado cerca de três mil vezes e teve ampla cobertura da mídia impressa, da TV, além de ser transmitido em telas enormes pelas ruas do país. Foi legendado em seis línguas e, hoje, tem milhões de visualizações nas mídias sociais. Além de duas versões: na Romênia e no Brasil.
Descobri a campanha devido a um post publicado no dia do lançamento (11/6) do filme brasileiro por um cineasta que sigo no Instagram. O vídeo mexeu comigo nos primeiros segundos.
Rapidamente, entrei em contato com Lia. Em seguida, vi o vídeo sendo compartilhado por amigos, conhecidos e famosos no Instagram, no Facebook, pelo Whatsapp. Parecia uma corrente. Linda!
Lia confirmou que a divulgação tem sido feita por ‘boca a boca’. Sem planejamento. “A gente não teve tempo de pensar nisso ainda, mas não podemos nos dedicar apenas à campanha”, conta. “Eu centralizei de alguma forma, mas Jacob e todos os envolvidos – do “elenco” à equipe técnica – estão ajudando a divulgar”.
O tema garante o movimento viral, mas seria bacana a adesão do cinema e da TV na divulgacão dessa campanha. Comentei sobre isso com Lia, que respondeu:
“Seria bacana contar com essa divulgação, sim. O tema é urgente! Mas já senti que a TV talvez não queira ‘colocar a mão na lama’. Muito pelo contrário. Algumas pessoas de TV me contaram que, se postarem no seu Instagram ou em qualquer mídia social pessoal, podem ser mandadas embora. Isso mostra como a TV ainda está anos atrás nessa questão”.
E completou: “A TV tem o poder de mudar o país e não muda por conta de certos interesses. A TV tem que assumir mais esse protagonismo. De todo modo, pessoas como Edson Celulari, Carol Castro, Chico César, Marcos Veras, que têm muitos seguidores, já divulgaram. Então, certamente os diretores de TV já devem ter tomado conhecimento. Espero que repercuta mais e, quem sabe, tenhamos esse apoio”.
Torço também. Campanhas como esta ajudam a transformar a sociedade, a transformar hábitos, a alertar. E Lia acredita no poder desse filme para que essa mudança aconteça.
“Pra mim, este filme significa uma possibilidade de mudança. Eu nunca vou cansar dessa causa no dia a dia. Principalmente, ajudar mulheres pessoalmente a sair de situações como essa. Este filme significa uma grande voz que eu coloco no mundo”, finaliza.
A seguir, assista aos vídeos das campanhas brasileira e original. Que inspirem outras produções pelo mundo!
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Fotos: reproduções do vídeo
Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.