Dinamarca ganha primeira estátua de uma mulher negra, que liderou revolta contra escravidão

Se você perguntar a qualquer morador de Copenhague, capital da Dinamarca, qual o monumento mais famoso do país, eles dirão que é a estátua da Pequena Sereia, personagem criado por Hans Christian Andersen. Ele foi esculpido em bronze por um artista pouco conhecido na época, Edvard Erichsen, fica numa rocha no porto da cidade, e é adorado pelos dinamarqueses e turistas. Muito popular, essa estátua pode facilmente ser comparada a Estátua da Liberdade, em NY, e ao Cristo Redentor, no Rio de Janeiro… pois é.

Mas isso pode mudar graças um novo monumento instalado no mesmo porto em 31/3, em frente ao West Indian Warehouse, construída no século XVIII para armazenar mercadorias produzidas nas antigas colônias do Caribe. Nesse dia, a personagem do famoso conto de fadas, ganhou concorrência forte: uma estátua inspirada numa heroína negra, de carne e osso, Mary Thomas, que, em 1878, liderou (junto com outras três mulheres) a rebelião contra a escravidão (que havia sido abolida em 1792, mas não na prática) e a exploração da Dinamarca nas Ilhas Virgens, Caribe. Num país onde a a maioria das estátuas públicas (98%) representa homens brancos, não é pouco.

Importante lembrar que a Dinamarca manteve colônias no Caribe por mais de 250 anos e foi um dos países que mais explorou o comércio de escravos, forçando milhares de africanos a trabalhar em plantações de açúcar. Além disso, o trabalho escravo ajudou a gerar uma imensa quantidade de riqueza para o reino dinamarquês que, ao longo do tempo, abrangeu territórios colonizados na Noruega, Suécia, Ilhas Faroe, Islândia, Groenlândia e partes da Índia e da Alemanha. Uau!

Conhecida como Fireburn, a rebelião liderada por Mary Thomas – que recebeu o título de “Rainha” devido a um costume afro-caribenho de venerar as mulheres líderes em suas comunidades – foi a maior revolta trabalhista da historia colonial desse país, que aconteceu em St. Croix: cerca de cinquenta plantações e a maior parte da cidade de Frederiksted foram queimados.

É uma história de sobrevivência e de resistência. E a data escolhida para a inauguração da estátua não foi à toa: nesse dia a Dinamarca vendeu as Ilhas Virgens – St. Croix, St. John e St. Thomas – para os Estados Unidos, por US $ 25 milhões. A transação é celebrada todos os anos pelos dinamarqueses, que, neste comemoraram 100 anos dessa transação, o que merecia um momento ainda mais especial e mais humano.

Chamada de I am Queen Mary(Eu sou Rainha Maria), a obra pública foi concebida por duas artistas plásticas: Jeannette Ehlers, da Dinamarca, e La Vaughn Belle, das Ilhas Virgens. Ambas são negras e ativistas e, apesar de diferenças na prática artística (linguagem, método e materiais), usam seu trabalho para refletir sobre temas contemporâneos, principalmente o colonialismo, que abarca exclusão, racismo e gênero.

La Vaughn explica, em seu site: “Este projeto é sobre desafiar a memória coletiva da Dinamarca e alterá-la. Nele, nossas diferenças e semelhanças tornaram-se pontos fortes. Com todas as decisões que tomamos juntas, o projeto tornou-se ainda mais intenso. Como ‘Queen Mary’ e as outras mulheres que participaram dessa revolta de Fireburn, nos reunimos para fazer uma mudança”. E ela continua: “Fomos convidadas para fazer este monumento. Então, nos inserimos no espaço público e afirmamos que ele transformaria a narrativa em torno das histórias coloniais que afetam a todos nós. ‘Eu sou Queen Mary’ pede que cada um pense sobre o seu relacionamento com essa história e como se posicionar nessa narrativa”.

Com esta estátua gigante – ela tem sete metros de altura, o equivalente a dois andares! -, Jeannette e La Vaughn querem reconfigurar a narrativa sobre o impacto do regime colonial e desafiar esse passado esquecido pelo país. Como acontece com muitos ícones na história, não havia muitas informações sobre a fisionomia de Mary Thomas, então, elas criaram uma representação alegórica em que o resultado é um híbrido de seus corpos modelados com a tecnologia de digitalização 3D. Ficou linda!

A inspiração para a pose de Mary Thomas – sentada imponente numa cadeira de vime de espaldar alto – veio do icônico retrato de um dos fundadores do Partido dos Panteras Negras, Huet P. Newton, feito em 1967. Numa das mãos, ela segura uma tocha, na outra, uma ferramenta usada para cortar cana, que eram as armas usadas pelos colonizados em suas lutas por liberdade.

Já o pedestal em que a cadeira de Mary Thomas repousa é feita de “coral cortado do oceano por africanos escravizados reunidos das ruínas das fundações de edifícios históricos em St. Croix”, como ressalta o site do projeto.

Agora, assista ao vídeo no qual as artistas falam desse projeto e de sua Mary Thomas (em inglês):

Fotos: estátua na frente do depósito, no porto (Nick Furbo), demais imagens são do site da artista La Vaughn e de divulgação

2 comentários em “Dinamarca ganha primeira estátua de uma mulher negra, que liderou revolta contra escravidão

  • 23 de abril de 2018 em 9:41 AM
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    Merecida e justa homenagem sinalizando quão importante é a liberdade para todas as raças e todas as espécies, porque hoje, Abolicionistas estão doando o próprio suor e sangue em favor de espécies animais escravizadas, manipuladas pelo implacável egoísmo humano que as têm explorado e torturado nos laboratórios de vivissecção, porque cobaias não são consideradas vidas, à semelhança de homens negros que não eram reconhecidos tão importantes quanto os brancos. Explora-se a espécie animal, inseminando-se vacas artificialmente durante toda a sua vida, para que ela produza bebês em série que não serão amamentados nem cuidados por ela, apartados para que o bezerrinho seja morto e se transforme no baby bife, essa iguaria gastronômica consumida sem questionar sua origem de dor e morte, por humanos empanturrados de carne, reclamando da pança e do colesterol. Felizmente, porém, raia no horizonte da Terra essa bendita luz de alforria sobre as sombras dos matadouros, das jaulas, das armadilhas, dos chicotes, dos anzóis, dos cutelos e das grades, dilacerando correntes e quebrando cadeados para que animais estejam finalmente livres para serem, por direito de nascença, ELES MESMOS.

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Mônica Nunes

Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.