‘Cumplicidade na Destruição’: organizações Apib e Amazon Watch denunciam ‘farsa das mineradoras’ em novo relatório

'Cumplicidade na Destruição': organizações Apib e Amazon Watch denunciam 'farsa das mineradoras' em novo relatório

Por Leanderson Lima, da agência Amazônia Real*

A quarta edição do relatório Cumplicidade na Destruição se autoexplica pelo título completo: Como mineradoras e investidores internacionais contribuem para a violação dos direitos indígenas e ameaçam o futuro da Amazônia.

Divulgado pelas organizações Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e Amazon Watch na manhã de hoje, 22/2, o relatório evidencia que a mineração está longe de ser uma atividade artesanal, como defende o presidente Jair Bolsonaro.

Ela avança “vorazmente” sobre terras indígenas e unidades de conservação e é bancada por grandes conglomerados que movimentam bilhões de dólares que recebem dinheiro de financiadores privados e públicos brasileiros e estrangeiros.

Segundo o novo relatório da Apib e da Amazon Watch, até novembro do ano passado, foram identificados 2.478 pedidos de mineração ativos sobrepostos a 261 terras indígenas no sistema da Agência Nacional de Mineração (ANM), o que é proibido por lei.

Tais processos estão em nome de 570 mineradoras, associações de mineração e grupos internacionais que “requerem explorar uma área de 10,1 milhões de hectares, quase o tamanho da Inglaterra”, alerta o documento.

O relatório nomina nove das maiores mineradoras em atuação na Amazônia: Vale, Anglo American, Belo Sun, Potássio do Brasil, Mineração Taboca e Mamoré Mineração e Metalurgia (estas duas do Grupo Minsur), Glencore, AngloGold Ashanti (que enviou nota de esclarecimento, reproduzida no final desta reportagem) e Rio Tinto.

E mostra que gestoras de capitais como BlackRock, Vanguard e Capital Group – com sede nos Estados Unidos – investiram 14,8 bilhões de dólares nas mineradoras com interesses em Terras Indígenas (TIs).

As instituições financeiras brasileiras Previ (Caixa de Previdência de Funcionários do Banco do Brasil) e o Bradesco injetaram outros 11,8 bilhões de dólares nas empresas de mineração.

Vale e a Anglo American, citadas no relatório, afirmaram recentemente que não teriam mais interesse em atuar em TIs. Porém, a Apib e a Amazon Watch verificaram que milhares de requerimentos minerários (a primeira etapa para explorar um mineral no Brasil) seguem ativos, portanto válidos, na base de dados da ANM. 

Para lideranças indígenas, ouvidas pela agência de notícias Amazônia Real, o relatório deixa claro um falso discurso das empresas, mostrando na prática que elas continuam incentivando o garimpo na região amazônica.

“Eu analiso como uma farsa, uma mentira que as empresas inventam. Porque eles falam uma coisa e, por trás, eles armam outra, armam as mentiras”, afirma Alessandra Korap Munduruku, coordenadora da Associação Indígena Pariri, e vice-coordenadora da Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará (Fepipa).

“Essa questão de dizer: ‘Ah, estamos protegendo a floresta, estamos preocupados com as mudanças climáticas’, isso é uma mentira! É uma farsa porque eles querem o dinheiro financiado pelos bancos para destruir o nosso território. Território que tem povo, tem floresta, tem rio, tem criança e muita luta”, pontua Alessandra, liderança constantemente ameaçada por causa de sua luta contra garimpo, hidrelétricas e atividades de extração de madeira nas terras indígenas na bacia do rio Tapapós.

'Cumplicidade na Destruição': organizações Apib e Amazon Watch denunciam 'farsa das mineradoras' em novo relatório
Indígenas protestam contra a mineração em seus territórios na Esplanada dos Ministérios em Brasília
/ Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real (junho de 2021)


Outros bancos privados internacionais como Crédit Agricole (França), Bank of America e Citigroup (Estados Unidos), Commerzbank (Alemanha) e SMBC Group (Japão) também aparecem no relatório Cumplicidade na Destruição.

O levantamento mostra, por meio de cinco exemplos, que as violações praticadas por algumas mineradoras seguem em ritmo acelerado no último ano, “com forte apoio do governo Bolsonaro e contando com financiamento do grande capital internacional”.

Os 2.478 requerimentos minerários ativos na ANM estão em nome de 570 mineradoras, associações de mineração e grupos internacionais.

Quase metade desses pedidos (1.085) são para explorar ouro na Amazônia. Embora o número total de requerimentos tenha despencado quase pela metade, em relação ao terceiro relatório, as empresas estão se valendo de artimanhas para continuar a atividade mineradora.

Retirada de interferência

'Cumplicidade na Destruição': organizações Apib e Amazon Watch denunciam 'farsa das mineradoras' em novo relatório
Mapa Amazônia Minada, com todos os pedidos e concessões para mineração com sobreposição em Terras Indígenas e Unidades de Conservação / Arte: Info Amazônia/Amazon Watch

“Mesmo com o anúncio da desistência de requerimentos feitos pela Vale e pela AngloAmerican, muitos pedidos foram redesenhados para áreas nos limites das terras indígenas, o que segue trazendo os impactos negativos da mineração para os territórios”, Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Apib

O relatório indica que a ANM está refazendo o polígono da região pretendida pelas empresas mineradoras, na prática excluindo a área sobreposta a uma TI. Porém, nesse novo traçado o garimpo fica bem no entorno das áreas que deveriam ser protegidas.

“Essa manobra tem feito com que pedidos, até então parados na ANM, voltem a tramitar e que a agência comece a publicar autorizações de pesquisa em nome das mineradoras”, indica o relatório. Esse truque permite às empresas se desvencilhar da acusação de que atuam em áreas protegidas.

Por meio de uma parceria com o portal InfoAmazonia, responsável pelo projeto Amazônia Minada, a quarta edição do relatório traz como novidade um painel interativo online com os requerimentos protocolados junto à ANM.

O mapa interativo mostra, de forma cristalina, como se dá o avanço do garimpo na Amazônia. “Em relação às terras indígenas, tais corporações atuam com sede de lucro insaciável”, diz Sônia Guajajara. 

“Os povos indígenas jamais colocarão o lucro acima da vida. Desde 2020, com a apresentação do PL 191/20, manifestamos inúmeras vezes, junto às instituições públicas e à sociedade, nosso não para esse projeto de morte”, afirma a liderança indígena, lembrando dos crimes dos rios Doce e Paraopeba, contaminados pelos rompimentos de barragens de rejeitos de minério.

“Tragédias anunciadas que poderiam ter sido evitadas. Lançamos o relatório para evitar que histórias de morte como essas se repitam”.

Estudos de caso

'Cumplicidade na Destruição': organizações Apib e Amazon Watch denunciam 'farsa das mineradoras' em novo relatório
Sede da Belo Sun no PA Ressaca; moradores relatam que há cinco meses o espaço encontra-se fechado / Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real

Nos cinco estudos de caso do novo relatório, são apontados em detalhes os impactos e violações protagonizados por mineradoras em áreas protegidas.

Sônia Guajajara explica que os casos estão relacionados às mineradoras Vale, Anglo American, Belo Sun, Potássio do Brasil, Mineração Taboca e Mamoré Mineração. Segundo ela, a Vale possui projetos que afetam povos indígenas e outros povos e comunidades tradicionais ao longo do Brasil.

Há projetos como Onça Puma e S11D, que exploram níquel e ferro junto aos territórios dos povos Xikrin e Kayapó, contaminando o rio Cateté com metais como chumbo, mercúrio, manganês, alumínio e ferro.

“Em relação aos quilombolas de Oriximiná, estes são afetados por uma subsidiária da Vale, a Mineração Rio do Norte, que contamina cursos d’água do rio Trombetas. Os Pataxó e Pataxó Hã-Hã-Hãe, de Minas Gerais sofrem com a dificuldade de acesso à água, após o rompimento da barragem em Brumadinho, que afetou o rio Paraopeba”, explica Sônia.

Em relação à Anglo American, um dos principais impactos já existentes é a construção do mineroduto Minas-Rio, com 525 quilômetros e que utiliza quantidades imensas de água para transporte de minério de ferro.

“O resultado é a escassez de água que sofre o povo Pataxó da Terra Indígena Fazenda Guarani, em razão da contaminação e destruição de nascentes. Em relação à Belo Sun, sua pretensão com o Projeto Volta Grande pode ser a maior área de exploração de ouro a céu aberto do mundo”, diz.

Para Sônia, há riscos reais de que a sua implementação cause a morte do rio Xingu, destruindo os igarapés que o alimentam. “Seria o ecocídio de uma região indispensável para a vida no planeta Terra como conhecemos. Em relação à Potássio do Brasil, o Projeto Potássio Autazes violou os direitos de consulta livre, prévia, informada e consentida do povo Mura e de outros povos indígenas da região”.

Apoio do governo Bolsonaro

Cortejo fúnebre em Brasília para “enterrar” os “projetos de morte” do Congresso e governo Bolsonaro / Foto: Tuane Fernandes/Greenpeace (agosto 2021)

Projeto de Lei 191/2020, de autoria do governo federal, quer tirar a autonomia indígena de seus territórios. Neste PL, o Executivo quer a “realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas e institui a indenização pela restrição do usufruto de terras indígenas”.

O projeto, que contradiz os pilares da Constituição de 1988 no que diz respeito aos povos indígenas, aguarda a criação de uma Comissão Temporária.

O relatório destaca a voracidade que o setor vem mostrando em direção aos territórios indígenas, desde a chegada de Bolsonaro à presidência da República. Ainda durante a campanha, em 2018, Bolsonaro deixava claro sua política anti-ambiental e contrária aos direitos dos povos indígenas. Por várias vezes, ele fez questão de dizer que seu governo não demarcaria um centímetro de terra indígena. 

Outra estratégia governamental para passar por cima dos direitos indígenas é a votação da tese do marco temporal, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que delibera sobre a questão do direito à terra ou não pelos povos originários.

O julgamento foi suspenso em 20 de setembro de 2021, quando o ministro Alexandre Moraes pediu vistas do processo. De lá para cá, Moraes já devolveu o processo – procedimento que deixa o caso novamente apto a voltar à pauta, mas um novo julgamento ainda não foi remarcado. 

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Alessandra Korap durante audiência pública no Congresso Nacional em 2019 sobre mineração e os efeitos na bacia do rio Tapajós (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Para Alessandra Korap Munduruku, a pauta anti-indígena se apresenta em várias frentes no governo Bolsonaro. “(Essa articulação) já está acontecendo. Você vê em alguns jornais os próprios parentes, denunciando a morte de crianças por causa de garimpo,  vê nos jornais parentes denunciando a desnutrição das crianças, o índice muito alto de mercúrio (nos rios) e parece que a vida do povo não importa, parece que importa é só dinheiro para eles”, alerta. 

“Já existem vários invasores dentro dos territórios. O papel do governo seria retirar esses invasores. E eles não fazem. Eles fazem é incentivar. Eles estão contaminando o rio, trazendo doenças, drogas, prostituição, armas. Essas empresas prometem empregos, como se a gente estivesse atrás de empregos.  A gente está atrás de direitos. Queremos que nossos direitos sejam respeitados e que os povos sejam ouvidos”, finalizou.

Visibilidade internacional

Vista aérea da região da Volta Grande do Xingu, de onde se vê a Vila da Ressaca, sob ameaça da Belo Sun / Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real

Ana Paula Vargas, diretora do Programa Brasil da Amazon Watch, destacou os próximos passos após a divulgação do relatório. “O próximo passo é continuar ao lado da Apib e de outros parceiros, como a Aliança Volta Grande do Xingu, na definição de estratégias para ações de campanhas para manter os territórios indígenas como áreas livres de mineração e projetos de grande infraestrutura”, disse Vargas,  

De acordo com a diretora, em 2021, ao lado da Apib e dos Munduruku, foi iniciada  uma campanha que resultou no anúncio de desistência da Anglo American dos pedidos de exploração em seu território. “Vamos continuar monitorando esta empresa e manter nosso apoio às comunidades locais da Volta Grande para que a Belo Sun não consiga iniciar suas atividades e ameaçar uma região que já sofre com os impactos de Belo Monte. Além disso, a Amazon Watch vai continuar apoiando o movimento indígena e as comunidades tradicionais para pressionar financiadores que investem em empresas ligadas a violações de direitos humanos e destruição da floresta amazônica”, diz.

Um dos passos na luta pela preservação ambiental é levar as denúncias contidas no relatório “Cumplicidade na Destruição” à comunidade internacional. Reconhecer e fomentar o papel fundamental dos territórios indígenas para a conservação da floresta e dos estoques de carbono e da biodiversidade – que mantém a regulação climática global – é um dos primeiros passos, segundo Sônia Guajajara.

“É preciso que os impactos socioambientais e as violações de direitos humanos que a mineração causa sejam denunciados junto à comunidade internacional, em todos os espaços possíveis. Boa parte dos lucros, dos produtos, não permanecem no Sul global. Mas o sofrimento gerado pela ganância, sim. É preciso que haja conscientização do problema que os povos indígenas enfrentam e engajamento nas campanhas que puxamos a fim de gerar pressão pública sobre as instituições estatais, para que fortaleçam as políticas públicas de proteção socioambiental; e sobre as corporações, para que não sejam coniventes com a destruição da vida para saciar sua fome de riqueza”, finaliza Sônia Guajajara.

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Nota de esclarecimento AngloGold Ashanti

*Em 24 de fevereiro, recebemos mensagem de Isabel Ventura, da xxxxx, assessoria de comunicação da AngloGold Ashanti, com a seguinte nota de esclarecimento a respeito de mineração em terras indígenas:

A AngloGold Ashanti informa que não opera e não tem interesse em operar em Terras Indígenas (TIs). Na década de 1990, a produtora de ouro solicitou requerimentos de pesquisa mineral em diversas regiões no país. Três dessas áreas posteriormente foram demarcadas como Terras Indígenas (TIs), o que levou a companhia a desistir das mesmas.

A decisão foi protocolada junto à Agência Nacional de Mineração (ANM) no final da década de 1990. No entanto, como não houve atualização do processo no sistema da ANM, a AngloGold Ashanti ratificou a retirada do requerimento de pesquisa em 21 de junho de 2021.

Atualmente, os investimentos da empresa no Brasil estão concentrados basicamente na expansão de suas minas localizadas em Minas Gerais e Goiás.

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A mobilização ‘Levante pela Terra’ reuniu 850 indígenas de 45 povos em junho de 2021, em Brasília / Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real (junho de 2021)

* Este texto foi publicado originalmente no site da Amazônia Real, em 22/2/2022. Não nos responsabilizamos pelas informações nele contidas.

Foto (destaque): Ricardo Telles/Agência Vale

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