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Como o protesto de três mulheres indígenas melhorou o atendimento de saúde no Parque das Tribos, em Manaus, na pandemia

Desde o decreto da pandemia do novo coronavírus pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em março, os povos indígenas que vivem em contexto urbano dos municípios brasileiros reivindicam melhorias no atendimento de saúde nos hospitais públicos. Em 10 de abril, o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, anunciou a construção de um hospital de campanha em Manaus para o atendimento dos povos tradicionais, mas dias depois ele foi exonerado pelo presidente Bolsonaro e a ideia da unidade de saúde ficou no papel.

Com o aumento de mortes por COVID-19 entre os povos indígenas no Amazonas e a falta de assistência, em 4 de maio, as mulheres indígenas Vanda Ortega, do povo Witoto, Natalina Martins Ricardo, do povo Baré, e Luciana Vasconcelos, do povo Munduruku, fizeram um protesto durante a visita do ex-ministro da Saúde, Nelson Teich (que à época substituía Mandetta), ao Hospital e Pronto-Socorro Delphina Aziz, na zona norte de Manaus.

As três mulheres representam a Comunidade Parque das Tribos, fundada em 2014 e onde vivem 700 famílias indígenas de 30 etnias, no bairro Tarumã, na zona oeste da capital amazonense. Com os rostos pintados de urucum e máscaras de proteção, para não serem contaminadas pelo vírus da COVID-19, elas levaram nas mãos cartazes de cartolina com dizeres “Cadê o hospital federal?”, “Vidas indígenas importam” e “Não deixe o índio morrer”, pedindo melhorias no atendimento de saúde para os indígenas que vivem da cidade e dos territórios.

Vanda Witoto (arquivo pessoal)

No protesto, a porta-voz das mulheres, Vanda Witoto (foto acima), como é mais conhecida, cobrou do responsável pela Secretaria Especial de Saúde Indígenas (Sesai) do Ministério da Saúde, Robson Santos da Silva, ações efetivas no atendimento dos indígenas que vivem tanto nas aldeias localizadas nos territórios tradicionais como nas áreas urbanas da cidades, já que a politica de saúde indígena exclui os que vivem nas cidades.

A Sesai limitou-se a informar que, pela legislação brasileira, o governo federal é responsável apenas assistência dos indígenas considerados “aldeados”, ou seja, aqueles que estão nos territórios demarcados e que recebem cobertura de cada um dos 34 Distritos Sanitário Especial Indígena (DSEIs) existentes no país. As organizações são contrárias a esse modelo de gestão e apontam, há vários anos, a necessidade de se reformular a política de atenção de saúde indígena para que ela amplie sua responsabilidade. 

Depois de muita luta, um médico para 700 famílias?

Secretario de Saúde Indígena, Robson Silva, conversa com Vanda Witoto (à direita) e Natalina Martins Ricardo, do povo Baré
Foto: Dsei/Manaus

Vanda Witoto, que é técnica de enfermagem, reivindicou junto ao secretário o cumprimento da promessa de construção do hospital de campanha do governo federal para atender aos indígenas, em Manaus. Mas o projeto de Mandetta foi descartado.

“Ele (Robson Silva) me respondeu dizendo que o Hospital de Campanha Nilton Lins (do governo do Amazonas) é que vai disponibilizar 50 leitos para indígenas aldeados e urbanos”, contou ela à Amazônia Real.

Vanda conta que, durante o protesto, o secretário da Sesai acenou com a abertura de diálogo com as lideranças, o que acabou não acontecendo. “Ficamos de nos reunir com outras lideranças de Manaus. Liguei para ele (Robson Silva), que disse que já tinha falado com o governador, Wilson Lima”. Ela disse, ainda, que o secretário falou que “o problema (do hospital de campanha) não é falta de dinheiro, mas de (falta de) pessoal”.

“Estamos extremamente preocupadas com a situação. Fizeram a promessa de um hospital de campanha, mas nada foi feito até agora. Isso nos preocupa porque ainda esperamos o pior em Manaus”, sinaliza Vanda sobre os leitos do hospital de campanha Nilton Lins (leia nota do governo estadual no final do texto).

“Há uma preocupação muito grande, porque os hospitais no interior não têm condição nenhuma de atender casos mais graves; as aldeias então, nem se fala… Na atenção primária da Sesai, como o próprio ministro (da Saúde) falou, não tem nem médico o suficiente”, explica. 

Nas cidades, segundo Vanda, o acesso às Unidades Básicas de Saúde (UBSs) ou Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) também é difícil para os indígenas. Vanda lembra que, em comunidades localizadas em Manaus, como é o caso do Parque das Tribos, “existem ações esporádicas da Secretaria Municipal de Saúde de Manaus, como campanhas de vacinação e atendimento médico”. A Sesai divulgou vídeo confirmando o hospital em Manaus (assista no final deste texto).

Sem médico e sem assistência, a técnica em enfermagem é quem faz diariamente o monitoramento dos doentes com sintomas como febre, dor de cabeça intensa e perda de paladar e olfato no Parque das Tribos. Esse gesto de solidariedade trouxe visibilidade internacional a Vanda Witoto, que protagonizou reportagens em agências de notícias como Reuters, EFE e também na TV Globo.

Mas só em 7 de maio, quase dois meses após o decreto da pandemia pela OMS, Vanda disse que recebeu telefonema informando que um médico da Prefeitura de Manaus iria atender moradores na comunidade. 

A informação, que foi recebida com expectativa, se confirmou em 11 e 12 de maio. Segundo ela, o médico, que não teve o nome revelado pela prefeitura, atendeu 32 pacientes, 16 em cada dia, no Parque das Tribos. “Foram notificados e medicados. Inclusive estou com muitas receitas (em mãos)”, conta.

Vanda relata que na comunidade tinha vários caso de “criança com febre, criança com tosse”. “Só que o médico que veio não atende crianças. Para isso, precisaríamos ir até a UBS, mas eu implorei e duas crianças ainda foram atendidas”, completou.

Depois das consultas, Vanda relata que o médico receitou como medicação para COVID-19 os medicamentos tamiflu, azitromicina e cloroquina. “Só que não tem cloroquina nas drogarias. E muitas pessoas estão com medo de tomar esse remédio”, ressaltou.

A morte de um cacique, sete contaminados e muitos casos suspeitos

Atendimento médico da Prefeitura de Manaus no Parque das Tribos – Foto: Vanda Witoto

Para a técnica de enfermagem, a ida do médico ao Parque das Tribos foi válida e ajudou a comunidade, mas não é suficiente. “Outras pessoas que estão com sintomas não puderam ser atendidas. A responsável pela área ficou de agendar outros dias para o médico voltar. Nós precisamos de uma equipe médica na comunidade. Nós sempre lutamos para que tenha uma UBS indígena aqui, pois somos 700 famílias e em dois dias não dá para avaliar todo mundo”, reclama. 

Em 13 de maio, o Parque das Tribos perdeu o cacique Messias Martins Moreira, do povo Kokama, para o coronavírus. Ele foi um dos fundadores da comunidade, que enfrentou várias ações de desapropriação de empresários do setor imobiliário. Chegou a ser internado no hospital Delphina Aziz. A etnia dele é a que registra mais vítimas de coronavírus no Amazonas. A morte do cacique também repercutiu na mídia internacional.

Enquanto isso, na comunidade, seis indígenas, que tiveram agravo respiratório, foram transferidos para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Campos Sales, administrada pela Secretaria de Saúde do Amazonas (Susam). Na ocasião, diz Vanda, haviam outros 40 moradores com sintomas da doença na comunidade. “Mas apesar de entrarem na UPA com Protocolo Rosa, ninguém fez teste. Logo, eu não posso dizer se estão com o novo coronavírus”, acrescenta a liderança.

Depois da morte do cacique, Vanda Witoto disse que a Prefeitura de Manaus enviou, em 20 de maio, uma UBS Móvel ao Parque das Tribos. Sete pessoas já testaram positivo e 140 indígenas estão com sintomas de coronavírus, revelou.

“Além disso, algumas pessoas serão internadas no Hospital de Campanha da Prefeitura e no Hospital Samel, que disponibilizou leitos para os indígenas”. E acrescentou: “Estou muito feliz, porque isso é resultado do nosso trabalho, do protesto que fizemos e do pedido que protocolamos, solicitando à Prefeitura atendimento médico aqui, na comunidade”, comemora Vanda.

Ações importantes e dados discrepantes

Vanda Witoto é também artesã, cantora e estudante de Pedagogia na Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Como técnica de enfermagem, trabalha na Fundação Alfredo da Matta (FUAM), ligada à Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (Susam), onde cuida de pacientes com dermatoses, principalmente hanseníase.

Durante as ações de combate à disseminação do novo coronavírus, organizou um grupo de mulheres costureiras para fazer máscaras de proteção e distribuir aos moradores do Parque das Tribos. Entre as etnias que vivem na comunidade estão Apurinã, Baré, Mura, Kokama, Tikuna, Wanano, Sateré-Mawé e Tukano.

Enquanto permanece em isolamento social por causa da pandemia, Vanda Witoto organizou uma campanha de arrecadação de doações para compra de cestas básicas e materiais para a confecção das máscaras.

Até 22 de maio, conforme boletim epidemiológico da Sesai, 606 indígenas “aldeados” foram confirmados com COVID-19 e 31 morreram, no país. Como a Sesai não monitora os indígenas que vivem na cidade, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) acompanha e registra os casos de coronavírus. No boletim divulgado em 21 de maio, a organização apontou 455 casos confirmados e 103 mortes na região amazônica e 37 povos atingidos. 

Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que também monitora a saúde dos povos tradicionais, só no Amazonas já morreram 89 indígenas.

O que dizem as autoridades?

A Prefeitura de Manaus divulgou nota em 21 de maio, informando que a UBS Móvel vai operar na comunidade Parque das Tribos nos próximos 30 dias. “Aproximadamente 700 famílias do local contarão com testagem rápida para Covid-19 e demais serviços básicos de saúde”, contou Vanda.

No dia seguinte, a Secretaria de Saúde do Amazonas publicou nota pública para comunicar que o governo federal enviou a Manaus respiradores para a abertura de uma ala exclusiva para pacientes indígenas no Hospital de Combate na Nilton Lins. A unidade irá disponibilizar 33 leitos clínicos e 15 de alta complexidade (dez de UTI e cinco semi-intensivos) para esses povos.

A Susam garantiu que, na próxima semana, o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, visitará a capital amazonense para alinhar as estratégias de funcionamento da ala indígena do hospital Nilton Lins. Também destacou que o Ministério da Saúde se comprometeu em fornecer equipamentos, insumos e recursos humanos necessários para o funcionamento da ala para indígenas no hospital. No entanto, a secretaria não informou a data sobre o início do atendimento.

Com relação aos indígenas que vivem em municípios do Amazonas, a Susam ressaltou que vem prestando assistência de média e alta complexidade aos povos indígenas. “No interior, o atendimento é feito nos hospitais dos municípios e, quando há necessidade de atendimento de maior complexidade, é feita a remoção para a rede de assistência estadual na capital”, destaca o órgão. 

Sobre o atendimento de seis indígenas do Parque das Tribos na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Campos Sales, a Susam explicou que pacientes internados têm direito ao sigilo de suas informações e não comentou o caso. “Os boletins médicos são repassados diretamente ao acompanhante ou familiar do paciente diariamente”. 

Saúde tem que ser preventiva e permanente

Marcivana Paiva, do povo Sateré-Mawé, uma das lideranças da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime), defende que a atenção à saúde indígena em Manaus deve ser preventiva e permanente. Segundo ela, as recentes ações passaram a ser realizadas apenas após a repercussão dos casos de COVID-19 no Amazonas, especialmente em Manaus, e de óbitos de lideranças de grande projeção, como foi o caso de Messias Kokama, um dos fundadores do Parque das Tribos.

“O trabalho do poder público (da prefeitura e do governo) tem que ser preventivo, não depois que estão todos doentes ou quando acontecem os óbitos. É isso que a gente tem falado desde sempre”, destacou Marcivana.

Para finalizar, assista ao vídeo divulgado pela Sesai, que confirma a construção do hospital de campanha em Manaus.

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