Como criar um oásis no deserto

oásis no meio do deserto

A minha ligação com o deserto remonta a 1985. A primeira vez que visitei Riade (que significa Jardim), capital da Arábia Saudita, eu era um recém-formado arquiteto paisagista que veio trabalhar na construção do Quarteirão Diplomático. Era apenas um deserto que se transformou num  projeto ganhador do prestigiado prêmio Aga Khan por conta do paisagismo, que trouxe uma nova visão sobre a organização dos espaços naturais nas regiões quentes e áridas.

Quem acompanha o blog sabe que uma história de amor foi a razão que me fez mudar para o Brasil. Mas antes disso, a minha vida profissional foi marcada por essa relação com a Arábia Saudita, em projetos que ajudaram a tornar a capital do reino saudita e seus arredores lugares mais verdes e belos. Levei esta experiência na bagagem para o Brasil.

A  saudade do deserto e dos amigos (Abu Khaled, na foto) que fiz aqui já estava batendo forte quando veio um chamado dos meus antigos parceiros de Arábia Saudita para colaborar num novo projeto de grande escala que vai transformar a paisagem de Riade e arredores: o Wadi As Sulai. 

E eis-me aqui em mais uma aventura no deserto.

O Wadi As Sulai

O Wadi As Sulai é um sistema de rios e córregos secos/temporários que passa pela cidade inteira, com cerca 110 km de extensão, e que foi impactado negativamente pelo desenvolvimento da cidade e arredores. A cidade hoje tem quase 7 milhões de habitantes. O crescimento rápido trouxe muita água de drenagem para a superfície e impermeabilização, provocando enchentes.

Sim! Riade tem chuva também. Só que aqui quando chove as pessoas saem às ruas para comemorar e agradecer pela dádiva recebida do céu. Mas no instante em que escrevo este post, o calor é de mais de 50 graus.

O objetivo do atual projeto é transformar o Wadi As Sulai num novo sistema de drenagem urbana, com mais de 100 km de extensão, que cruzará a capital saudita.

No momento,  Riade é um canteiro de obras que impacta o lençol freático com o sistema de metrô, garagens e rodovias subterrâneas. A água que sai do lençol freático tem que ser bombeada para a superfície. Só desta fonte, devem vir  mais de 60 mil metros cúbicos, que irão alimentar o sistema que receberá o esgoto tratado em várias ETEs – Estações de Tratamento de Esgoto – e também as águas pluviais. Tudo isso vai gerar um “novo ecossistema”, que transformará a paisagem, criando novas áreas para expansão urbana, áreas de convivência com natureza e mais biodiversidade.

É uma tarefa especial e supercomplexa: o sistema hídrico cruza a cidade inteira e corta toda infraestrutura urbana. Será necessário a construção de pontes para cruzar vales e dutos abaixo das ruas principais para desviar do sistemas de infraestrutura (água, esgoto, eletricidade) e a transformação de conexões em ruas sem saídas.

A integração do sistema à paisagem urbana deve seguir os princípios do paisagismo multifuncional, segundo a decisão do novo prefeito Ibrahim AlSultan – um conhecido dos meus primeiros tempos em Riade. Isso já fez com que muitos desenhos tenham que ser refeitos para que as construções sejam mais harmônicas, orgânicas e funcionais.

A visão artística ao lado mostra como deverá ficar o sistema numa área próxima à cidade. Onde hoje há um leito seco, surgirá uma área de lazer e convivência para as famílias sauditas.

Alegria para o time dos arquitetos paisagistas – do qual faço parte como consultor e supervisor das obras. Foi um prazer projetar algo mais sustentável que vai substituir canais “ com perfis trapezoides”, que lembram a estética que acabou com dezenas de quilômetros de curvas dos nossos queridos rios Pinheiros e Tietê, em São Paulo, – que horror!

Wadi Hanifa – o irmão que já deu certo

O paisagismo multifuncional vai trazer muitos benefícios: pequenas praças ao longo do curso, árvores nativas sem irrigação, trilhas, lagoas, mirantes e lugares de piquenique. Áreas de retenção vão permitir infiltração e evaporação; a biorremediação que usa plantas para limpar depois do tratamento na ETE contribuirá com a qualidade de água.

A foto ao lado mostra o sistema de tratamento de esgoto, utilizando biorremediação. Não vai ser um wadi natural, mas vai ter muita natureza, com um paisagem que aumentará a biodiversidade e qualidade de vida na cidade

Não é preciso de muita imaginação para acreditar que daqui a cerca de 5 anos, o que parece uma fantasia será realidade. A imagem acima mostra um trecho do “irmão do Wadi Al Sulai”, o Hanifa, responsável pela drenagem de outra parte de Riade.

Há 20 anos, ele era um depósito de entulho de construção e animais mortos. Hoje é um corredor verde de verdade, virou símbolo de uma nova responsabilidade ambiental dos Sauditas a ganhou vários prêmios internacionais.

O vídeo do Euronews mostra como foi a transformação da área, que é a favorita para diversão dos moradores da cidade

Pode ser uma inspiração para muitas cidades com rios que podem ser recuperados facilmente, bastando para isso, a decisão de tratá-los com a dignidade que merecem. Cada Rial (moeda saudita) investido aqui deve retornar outros dez em qualidade de vida.

Antes de virar um exemplo para o mundo, ainda há muito a se fazer. As obras devem durar 10 anos e já estão atrasadas. Em breve, retorno ao Brasil, mas com a certeza de que o Wadi Al Sulai será tema de outros posts aqui no blog.

Fotos: Divulgação e arquivo pessoal

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Maria Zulmira de Souza e Ulrich Zens

Maria Zulmira de Souza, a Zuzu, é jornalista pioneira na área de comunicação sobre sustentabilidade. Criou programas e séries mostrando como viver de forma sustentável no dia-a-dia. Conselheira de várias ONGs e instituições, dirige a Planetária Casa de Comunicação. Ulrich Zens, o Uli, é arquiteto paisagista alemão. Desde 1984, pratica o paisagismo multifuncional em projetos para espaços públicos na Alemanha, Arábia e Brasil. Veio a São Paulo por causa de uma história de amor. Eles formam o Casal Verde, aqui e no YouTube, para tratar de sustentabilidade, arquitetura, maturidade, arte e relações saudáveis.