Como apagar tanto dedo de violência?

Como apagar tanto dedo de violência?

Dedo que germina como erva daninha do abuso. Dedo que puxa o gatilho do revólver no assassinato. Dedos que seguram a faca da morte. No sub-reptício implícito ou na violência escancarada, no fim de tanto ato impune, subsiste a visão trágica de mulheres deitadas involuntariamente num chão, num desvão, num caixão…

Tento rimar a tristeza e a dor para ver se a poesia acalma a alma. Tento pensar o que fazem as que sobrevivem ou as que vivem na opressão… As que podem bancar acho que vão para o divã tentar apagar as marcas e as digitais que ficaram gravadas em seus corpos feitos de joguete nas mãos de homens que, ao fim, podem ter sua ação justificada pela insanidade que ronda a sociedade doente.

A instalação De(do)núncia, da artista Roberta Beatriz Aquino, fala do último grau dessa violência espalhada por todos os cantos: o feminicídio.

Ela fez 130 dedos de cerâmica para representar os dedos de mulheres assassinadas.

“Enquanto eu produzia as peças saíram várias notícias de feminicídio que ocorreram aqui na minha cidade, o que me deu mais vontade ainda de continuar a pesquisar sobre isso”, diz Roberta.

O conjunto final das peças foi montado num pedaço de terra entre árvores, no calçadão da Universidade Estadual de Londrina, norte do Paraná, local em que ela estuda Artes Visuais e onde há um grande fluxo de pessoas.

Quantas dessas passantes não fazem parte das estatísticas ou projeções da Organização das Nações Unidas, que apontam que 70% de todas as mulheres no mundo já sofreram ou irão sofrer algum tipo de violência em algum momento de suas vidas? Em 2016, um terço das mulheres no Brasil – 29% – relataram ter sofrido algum tipo de violência. Delas, apenas 11% procuraram uma delegacia da mulher e em 43% dos casos, a agressão mais grave foi em casa.

O texto do relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher diz que “o feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse, igualando a mulher a um objeto, quando cometido por parceiro ou ex-parceiro; como subjugação da intimidade e da sexualidade da mulher, por meio da violência sexual associada ao assassinato; como destruição da identidade da mulher, pela mutilação ou desfiguração de seu corpo; como aviltamento da dignidade da mulher, submetendo-a a tortura ou a tratamento cruel ou degradante.”

A artista diz que uma das coisas que a fez escolher falar sobre o tema é que “essas notícias se espalham, mas logo se perdem. O próprio termo feminicídio é desconhecido de muita gente. Optei em fazer os dedos, pois não dá pra saber de quem são. Representam mulheres, que podem ser alguém da sua família, sua vizinha, uma atriz…”

A técnica utilizada na criação das peças foi a de rolinho. A argila foi trabalhada com as mãos, sem a utilização de moldes. Os dedos, pintados com tinta acrílica, tiveram acabamento em verniz. As peças estão fincadas no chão, repetida e alinhadamente. Tento pensar que são pontos organizados de um tapete para aquecer o caos, abafar o desespero.

Melhor não pensar na repetição sem fim dos números de casos, alinhados a um modus operandi orquestrado e perpetuado por uma sociedade machista e retrógrada retratada nas delegacias desprovidas de gente com capacidade para lidar com mulheres que sofreram violência. Gente que mais um pouco e desculpa a atitude do macho. Mais um pouco aponta o dedo para vítima de minissaia esvoaçante e a transforma em culpada.

A ideia é deixar essa floresta de dedos lá até se dissolverem na natureza, até alguém levar para casa  (alguns amigos já levaram) ou as folhas cobrirem, formando uma camada que bem poderia fazer desaparecer a dor dessas almas mortas vivas, pedindo espaço para viver em paz, buscando socorro, tentando agarrar um mundo menos desigual, aonde a força física não chegue primeiro, não seja determinante, não condene as mulheres à submissão e ao medo nas relações.

Medo, aliás, que deve estar imperando entre as crianças e adultos pobres e inocentes que estão à mercê dos militares no Rio (já extrapolando o tema desse post porque não posso deixar de tocar nesse assunto). Faço minhas as palavras da Jout Jout, essa Youtuber tão lúcida que me fez ter orgulho da geração dela.

 

Fotos: arquivo da artista

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Karen Monteiro

Com arte, tá tudo bem. Se as exposições, peças de teatro, shows, filmes, livros servirem de gancho para falar de questões sociais e ambientais, tanto melhor. Jornalista, tradutora, cronista e assessora de imprensa, já colaborou com reportagens para grandes jornais, revistas e TVs.