Com o Conama, Ricardo Salles extingue regras que protegem áreas de restinga e manguezais, entre outras medidas

Atualizado em 14/10/2020 para incluir a petição Restinga e Mangue Ficam! quase no final do texto / Atualizado em 29/9/2020 com informações sobre a reação de parlamentares depois da reunião do CONAMA
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O lobby para atacar o meio ambiente no Brasil está mais forte do que nunca. E tem um aliado poderoso: o governo federal. Por isso, a imagem que ilustra este post pode virar apenas cartão postal, ficar só na memória.

Parlamentares, ambientalistas e a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa) bem que tentaram, mas não conseguiram cancelar a reunião do CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente, marcada pelo ministro (!) do meio ambiente, Ricardo Salles, em caráter de urgência (!) para hoje, 28/9. Tão pouco conseguiram evitar que os principais itens propostos fossem mantidos na pauta.

E este foi um dia histórico, em que Salles abriu a porteira e deixou a boiada passar, parafraseando sua declaração na vergonhosa reunião ministerial de 22 de abril, quando sugeriu que todos os ministros aproveitassem a distração da imprensa com a pandemia e alterassem leis, “sem passar pelo Congresso, só na canetada!”. Ele transformou o dia 28 de setembro de 2020 num dos marcos da destruição ambiental no país.

Importante lembrar que, por meio do Decreto 9.806/2019, em maio de 2019, Salles reduziu a participação da sociedade civil no CONAMA: no total, havia 96 membros, que ele reduziu para 23, sobrando . O ministro concentrou nas mãos do governo federal e de representantes de setores como industrial e agropecuário a maioria dos votos. O conselho se tornou a expressão de sua vontade (e de quem ele serve).

Na ocasião, a então procuradora-geral da República de então, Rachel Dodge, tentou impugnar o decreto, mas o governo interviu e o caso foi parar no STF, mais precisamente na gaveta da ministra Rosa Weber, onde permanece até hoje (detalho o caso no final deste texto).

As extinções do CONAMA

Em cerca de três horas, o CONAMA invalidou medidas restritivas que levaram muito tempo para serem discutidas e definidas, desconsiderando, mais uma vez, o respaldo da Ciência para favorecer interesses econômicos. E, assim, aprovou a extinção de quatro resoluções.

1. Áreas de proteção permanente de restinga e manguezais

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

As resoluções 302 e 303, de 2002, versam sobre a proteção de áreas de restinga (faixas com vegetação encontradas sobre áreas de dunas, principalmente em praias do Nordeste, como no Rio Grande do Norte) e mangues no litoral do país, respectivamente.

Os dois ecossistemas são de vital importância para evitar o avanço das marés e a erosão costeira. Não esqueçamos que o aquecimento global está aumentando os níveis do mar… A restinga também protege manguezais e a Mata Atlântica. Por isso, não era permitido construir nada a pelo menos 300 metros de distância da área.

O governo diz que as duas resoluções foram adotadas por leis que vieram depois, como o Código Florestal, mas especialistas garantem que, até hoje, elas são aplicadas, pois são os únicos instrumentos legais que realmente protegem essas áreas, efetivamente.

Foto: Antonio Lordelo/Flickr

Agora, estão completamente vulneráveis, franqueados para outros usos. E a extinção das normas que garantiam o cumprimento desses limites favorece o avanço dos setores da construção civil e de carcinicultura (fazendas de camarão).

Agora, empreendimentos imobiliários podem ser construídos mais próximo do quebra-mar – favorecendo os milionários que querem ver o mar mais de perto e encobrindo o sol na praia de todos. E as fazendas de camarão também estão liberadas. Vantagens para poucos, em detrimento de muitos.

2. Licenciamento ambiental para projetos de irrigação

Esta é a única resolução (284/2001) que ainda está no site do Ministério do Meio Ambiente: as demais foram deletadas. Os interessados em sua extinção estavam devidamente representados pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e pelo Ministério da Agricultura, que disse que irrigação não é “atividade”, mas, sim, “acessório da agricultura”, portanto, “não vemos impacto positivo nessa resolução no meio ambiente”.

Com sua extinção, libera-se o uso da água. Para os ambientalistas, o objetivo da revogação é o de acabar com exigências legais a pedido de parte do agronegócio, mas a CNA argumentou dizendo que esta resolução conflita com outras que já estão em vigor. As consequências serão desastrosas como não é difícil prever: não existe água para todos, ainda mais num cenário de devastação das florestas, secas prolongadas (vide Pantanal). Então, certamente teremos conflitos.

3. Limite de áreas de preservação permanente de reservatórios artificiais de água

Represa Billings, SP / Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas

A resolução 302/2002 determina que reservatórios artificiais, como represas, mantenham faixa de proteção mínima de 30 metros para que os mananciais sejam preservados. Esta faixa é uma Áreas de Preservação Permanente (APP), onde são proibidas construções e ocupações. Quer dizer, eram até ontem.

Em São Paulo, represas como Billings, Guarapiranga e Cantareira apresentam invasões, mas com a existência da lei ainda era possível barrar o crescimento dessas ocupações. Agora, não mais. O sinal está aberto também para construtoras, empreiteiras e incorporadoras que, agora, têm, a seu dispor, essas áreas valorizadas.

Claro que muita gente deseja morar perto desses mananciais, mas leva pouco tempo para que a paisagem e a qualidade da água no entorno se transformem e se degradem com a presença humana. Era isso que a resolução 302 impedia ou dificultava.

No site do Ministério do Meio Ambiente, não é mais possível consultar essa lei, mas você pode fazê-lo no site do MPF.

4. Incineração de embalagens e resíduos de agrotóxicos em fornos da indústria do cimento

O Conama substituiu a regra que determinava o descarte ambiental de embalagens e restos de agrotóxicos por outra, que permite que esses resíduos sejam queimados em fornos industriais e transformados em cimento.

Num país em que é proibido queimar lixo – qualquer um! -, esta é uma medida muito controversa porque não tem fundamentação técnica. E é proibido porque tudo que se queima gera fumaça tóxica, que pode expelir substancias cancerígenas. 

Neste caso, a situação é ainda mais delicada porque, ao serem incinerados, tonéis e embalagens plásticas que contêm restos de agrotóxicos podem produzir gases que os filtros de ar das indústrias de cimento não conseguem reter. Estarão, as indústrias, preparadas para isso?

A sociedade, fora do debate

O Conselho Nacional do Meio Ambiente foi criado na época da ditadura militar, em 1982, pela Lei n º 6.938/81 – que estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente -, como um órgão consultivo e deliberativo do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), uma câmara técnica que reúne representantes de todos os setores – governo federal, governos estaduais e municipais, empresários e sociedade civil – para que todas as vozes sejam ouvidas.

A intenção era debater, com o máximo de equilíbrio, para formatar resoluções com força de lei na área ambiental. Por isso, boa parte das leis de conservação mais importantes do Brasil foram concebidas a partir das resoluções do CONAMA

Por isso, se havia necessidade de reformulá-las – que foi o argumento mais comentado pelos participantes da reunião de ontem -, Salles deveria ter promovido um debate aprofundado, técnico, científico e democrático – com a participação da sociedade – para que fossem aprimoradas. Mas ele nunca teve essa intenção. Ele foi controlado por Bolsonaro para destruir qualquer barreira ao desenvolvimentismo, que caracteriza seu governo.

Essa é a razão pela qual, desde maio do ano passado, o órgão foi desmantelado por ordem de Ricardo Salles. E o recado foi dado: a sociedade não é bem vinda e não haverá debate.

O ministro concentrou o poder de voto nas mãos do governo federal (cerca de 43%) e dos representantes do setor produtivo (cerca de 8%), deixando o restante para estados, municípios e sociedade civil. Outra situação que foi alterada por ele se refere à escolha dos integrantes da sociedade para integrar o CONAMA: antes, uma parte era indicação e, outra, eleita. Desde o ano passado, a escolha é feita por sorteio.

Portanto, na era Bolsonaro, o que for acordado entre governo e empresários sempre terá a maioria dos votos, como aconteceu hoje. Jogo marcado. Teatro.

Não dava pra esperar nada muito diferente de um ministro que tem, em seu currículo, uma condenação pela Justiça paulista por improbidade administrativa, referente a sua atuação como secretário de meio ambiente de Alckmin. Salles alterou mapas de uma área de preservação ambiental para favorecer mineradora.

Dias depois de sua condenação, recebeu o convite de Bolsonaro para assumir o ministério. Portanto, o que aconteceu hoje, na reunião do Conama, não deveria nos surpreender. Nem a forma como ele marcou esse encontro.

O que a sociedade pode fazer?

Diante de tanto retrocesso e de ataques declarados ao meio ambiente – mas disfarçados de renovação, apesar da falta de argumentos – promovidos nesta reunião comandada por Salles, a sensação é de desalento, intensificado pela paisagem de fogo que cobre o país, em três dos principais biomas: a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado.

Aliás, reparem o que Salles fez: marcou uma reunião para segunda de manhã, às pressas, na tarde de uma sexta-feira, pra não dar tempo de a sociedade se mobilizar. Isso em meio a uma pandemia e incêndios destruindo nossas florestas.

Se é possível ter alguma esperança, ela tem que vir da sociedade. Como? Pressionando o Congresso, o STF, e espalhando informações de qualidade para que mais brasileiros entendam o que está acontecendo com o país. A cada dia, a situação fica ainda mais grave, mas ainda não chegamos ao fundo do poço.

No final da reunião fatídica, a Procuradora Regional da República, Fátima Aparecida de Souza Borghi, representante do Ministério Público Federal (MPF), deixou claro aos membros do Conama que as revogações serão questionadas pelo MPF na Justiça.

Sabemos que tudo na Justiça é moroso e que a devastação é rápida. Mas vale lembrar que, em julho deste ano, o MPF pediu o afastamento de Ricardo Salles por improbidade administrativa. Foi como medida cautelar, ou seja, “tira Salles do cargo já porque ele representa perigo para a sociedade, e julga depois”.

E, hoje, mesmo, depois do resultado da reunião do CONAMA, o Ministério Público Federal (MPF) recorreu ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), solicitando que o STF julgue o pedido de afastamento de Salles. Os procuradores entendem que a gestão do ministro ataca em vez de proteger o meio ambiente e já tem registrado “consequências trágicas”.

No Congresso, a oposição tenta reverter as decisões do conselho: o deputado federal Alessandro Molon, que participa da Frente Parlamentar Ambientalista, e os integrantes do PSOL apresentarão projetos para derrubar a revogação das resoluções sobre proteção ambiental. E a Rede entrou com ação no STF, destacando a inconstitucionalidade das medidas tomadas pelo Conama.

Também é urgente pressionar Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, para que não deixe de julgar o processo contra o decreto de Salles que implodiu o CONAMA.

A “Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 747 (ADPF 747) foi proposta pela Procuradoria-Geral da República (Rachel Dodge) contra o Decreto 9.806/2019, que alterou o funcionamento do CONAMA de forma a reduzir a representação da sociedade civil, o que afeta a participação popular direta na elaboração de políticas públicas de proteção ao meio ambiente’”, explica o advogado ambientalista João Alfredo Telles Mello em artigo publicado no site Racismo Ambiental. Nele, Mello ainda destaca outras ações do STF que poderiam ter evitado tanto retrocesso. Vale a leitura.

Se Weber reagir, julgar a ADPF 747 e o decreto for anulado, a reversão das decisões do CONAMA será possível.

Assine as duas petições online sobre o tema:
Não deixe a boiada passar sobre manguezais e restingas, que visa arrecadar 30 mil assinaturas. Até agora (14/10, 19h), tem 20.693;
Restinga e Mangue ficam foi criada por organizações como 342 Amazônia, Engajamundo e Jovens pelo Clima e será entregue à ministra Rosa Weber para que anule o decreto que alterou o Conama.

O jornalista André Trigueiro batizou o dia de hoje como o Dia Nacional da Boiada. Pois é, tomara que, daqui um ano, o celebremos com boas notícias. Mas, certamente, este dia 28 de setembro de 2020 ainda fará parte dos livros como um dos dias mais nefastos da nossa história recente. Mais um.

Quem tiver curiosidade (e estômago), abaixo está a gravação da reunião na íntegra:

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

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Mônica Nunes

Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.