Cisnes e peixes voltam aos canais de Veneza, patos à Roma e golfinhos à Sardenha, com a quarentena do coronavírus na Itália
Atualizado em 23/3/2020
IMPORTANTE: Depois que publiquei este texto, tomei conhecimento da reportagem da National Geographic, que relata que tudo que foi publicado a respeito de Veneza em diversos sites pelo mundo é mentira. De forma nenhuma, nos alinharíamos com a desinformação, por isso, pesquisei muito antes de escrever e tomei como base os relatos de um grupo de Veneza no Facebook, que publicou imagens de tudo que aqui relatei. Nada além. Golfinhos não voltaram à Veneza, como disse a NG e não foi isso que contei.
Claro que minha intenção era dar uma boa notícia já que, nos últimos tempos, o contrário é mais intenso, mas a gente sabe que o mundo não vibra apenas na escuridão. Por isso, falei das águas que estão mais cristalinas – emprestando uma beleza à paisagem que não era vista há décadas – porque a poluição dos barcos sedimentou, o que não significa que esteja despoluída, mas que é um bom caminho para a reconexão com a natureza.
A falta do rebuliço causado pelos seres humanos, também trouxe silêncio à cidade, que é um convite à volta da bicharada. Não é preciso ser um especialista em biologia para saber disso: podemos passar por esta experiência, em pequenas áreas nos centros urbanos, com as aves. Por fim, cito Saramago e indico um vídeo produzido por italianos, pós-coronavírus, no qual o protagonista-narrador é o próprio vírus. Vale assistir, ouvir. E aproveito esta oportunidade para atualizar os números da tragédia nesse país europeu.
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A Itália enfrenta uma das maiores tragédias da sua história, com o maior número de mortes pelo novo coronavírus: em 19/3, quando escrevi este texto, eram 3.405, já superando a China, que somava 3.130 e foi onde o vírus começou a se alastrar. Hoje, 24/3, são 6.820, quase o dobro em4 dias. Na semana passada, o país registrou 475 mortes em um único dia, o que era recorde, desde que a epidemia chegou lá. Mas, de sábado para domingo, foram registradas mais 602 mortes, de domingo para segunda, mais 743. Em 24 horas!! Em 19/3, o total de casos confirmados tinha saltado de 35.713 para 41.035; agora, o país anunciou mais 5.249 em 24 horas, totalizando 69.176.
A tristeza é profunda, mas a quarentena forçada para conter o vírus também trouxe boas notícias, entre elas a de que o contágio está diminuindo e 8.326 pessoas foram curadas. Além disso, um efeito colateral inesperado, ou melhor, não imaginado, que é facílimo de compreender, se apoderou de algumas paisagens. Pela primeira vez sem turismo, em décadas, as cidades estão desertas e silenciosas.
Em Veneza, por exemplo, livre da infinidade de pessoas e de barcos, gôndolas e ônibus aquáticos a diesel que circulam pelos canais todos os dias, as águas ficaram limpas, cristalinas, trazendo peixes e cisnes de volta.
O mesmo acontece nos lagos de Roma e no porto de Cagliari, na Sardenha, onde agora se pode ver patos e golfinhos, respectivamente.
Isso acontece porque os sedimentos que eram “cutucados” por hélices e pás, se depositaram no fundo dos lagos, canais e portos, deixando a água sem poluição ativa. Isso quer dizer que a qualidade da água não se alterou, apenas seu aspecto, e, por isso continua poluída.
Mas a “pequena” mudança se traduziu em um convite para os bichos que antes deviam circular por lá. O ar também está limpo, respirável. E, assim, a paisagem, além do silêncio e da calmaria, ganhou novas vidas, habitantes muito bem vindos que nos dizem que vale desacelerar, contemplar e tentar explorar de forma mais leve e com pouquíssimo impacto o que a natureza nos oferece, todos os dias.
Venezia Pulita
Um grupo no Facebook – Venezia Pulita (Veneza Limpa) -, que até pouco tempo dedicava-se á luta pela preservação da região dos lagos e contra os problemas ambientais de Veneza (poluição, sacos de lixo sem coleta, projetos urbanísticos polêmicos e consumo de plásticos), se transformou no último mês.
Foi tomado por lindos registros das águas límpidas dos canais. Todos os dias multiplicam-se as fotos e os vídeos dos canais livres do trânsito das gôndolas, dos cardumes agitados de peixes, dos passeios elegantes de cisnes e garças.
Os participantes não cansam de publicar seus registros e de fazer comentários animados pela nova perspectiva de cidade com a qual se deparam agora, em meio à tragédia decretada pelo coronavírus e que exige, ainda, um bom tempo de isolamento de todos os cidadãos.
Manola disse: “Em 47 anos de vida, nunca vi minha Veneza tão limpa”. Giovanni escreveu apenas: “Incrível!”. E Stefânia declarou, animada: “Estou emocionada. Nunca vi Veneza assim. . É um show!”. Marco Capovilla (que fotografou algumas das imagens que reproduzi neste post) publicou fotos dos canais antes do início do bloqueio na Itália, no início de março e depois, para comparar e escreveu: “Imagens incríveis do Rio dei Ferali, atrás da praça San Marco, geralmente sombrias. A natureza recupera seus espaços”.
Cauteloso, Jacopo Gilberto, jornalista e proprietário de um barco elétrico, diz: “Já aconteceu comigo, várias vezes, ver água clara com peixes. Nos próximos dias saberemos se é algo que às vezes pode acontecer ou se se deve ao bloqueio sanitário“. No twitter, divulgado no grupo, Palli Caponera contou: “A lagoa recupera Veneza: sem drenos e sem tráfego, você pode ver o fundo dos canais”.
Alice Stocco e Silvia Rova, pesquisadoras da Universidade Ca’ Foscari de Veneza, também fazem parte do grupo. Elas estão fazendo uma investigação cientifica a respeito de Veneza e do impacto da quarentena para poder sugerir projetos sustentáveis para Veneza. Por isso, fizeram um apelo a todos os participantes:
“Estamos recolhendo comentários para uma pesquisa que pode ajudar a criar sistemas de sustentabilidade para a lagoa. É por isso que contamos com vocês, moradores. Se têm fotos, vídeos, vistas ou testemunhos destes dias em Veneza com águas límpidas, tráfego e motos ondas mínimas, ou se você vê fauna que nunca havia visto, poste com a hashtag #Venezia especificando lugar, data e hora do registro, ou enviem diretamente para nós por e-mail”.
Mas claro que não é só em Veneza, ou em Roma e na Sardenha que a transformação ambiental pode ser notada. Na China, poucos dias depois que o coronavírus começou a se alastrar, a redução da poluição do ar foi facilmente notada (1/3). No norte da Itália, também (17/3).
Em alguns lugares mais, em outros menos, todos estamos sentindo ou ainda sentiremos o impacto dessa mudança de velocidade, de compromissos, de horários, de produção. E isso terá ainda mais e mais sequelas que nos ajudarão a repensar a vida que queremos viver daqui pra frente e o futuro que queremos para toda a humanidade.
Talvez este seja um reajuste ecológico para a recuperação climática de emergência para lutarmos contra a crise climática sobre a qual os cientistas falam desde 1992, na Eco92, e Greta Thunberg cobra todas as sextas-feiras, desde agosto de 2018.
Saramago, cegueira e uma carta comovente à humanidade
Isto tudo me faz lembrar do escritor José Saramago, da epígrafe – Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara – do romance Ensaio sobre a Cegueira, livro que também me veio à mente logo que a pandemia foi anunciada. Ela pode muito bem nos fazer companhia neste período de quarentena, mesmo que tenhamos que fazer esse exercício por meio de telinhas e não ao vivo, como foi olhar para as fotos que ilustram este texto e nos comovem.
Foi a cegueira que nos trouxe aqui. A cegueira de uma parte da humanidade incapaz de tirar o véu e enxergar além. E a cegueira movida por interesses vários, sempre pautados pelo egoísmo e pela falta de empatia. Pois agora todos estão vendo que estamos sob o mesmo céu: pobres e ricos, pretos, amarelos e brancos, jovens, crianças e velhos, cultos e ignorantes, fanáticos e comedidos, mulheres, homens, trans, bi. Todos.
As transformações que ainda veremos acontecer em nossas urbanidades, assim como a frase e o livro de Saramago, nos convidam a refletir. E é isso que faz também o vídeo produzido por italianos, em meio à tragédia que assola seu país, lançado esta semana e que está viralizando por todas as redes.
Nele, uma carta é lida, de forma muito expressiva e emocional. Um belo e contundente relato, um apelo, uma sentença. Como se o vírus a tivesse escrito para justificar sua presença tão avassaladora. Uma conversa dele com a gente, que nos pede para pararmos. Pede e não há outra saída. É ele quem está no comando, chacoalhando nossas estruturas e tudo que não queríamos – e não tínhamos tempo para – deixar pra trás. Agora, é apenas a vida que importa.
O texto é lindo e a narração envolvente, numa das línguas mais divinas deste planeta: a italiana. Visceral, emocional, dramática e acolhedora, como pede a CARTA DO CORONAVÍRUS PARA A HUMANIDADE. Assista abaixo;
Foto: Pixabay (abertura), Marco Capovilla (Veneza, cisnes e peixes), Marco Contessa (Veneza, paisagem) Francesco Del Rio/Reprodução Twitter (golfinho na Sardenha e patos em Roma)
Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.
Incrivel lindíssimo texto !!! ?????
Na verdade, as águas dos canais não estão apenas mais cristalinas, elas estão menos sujas também. A população residente de Veneza é a mesma mas a população flutuante desapareceu. Isso significa que restaurantes, bares, cafés e outras atividades que historicamente geram poluição líquida, que terminava nos canais, não estão gerando esta poluição.
Obrigada Mônica por essa reportagem, um olhar extraordinário . E que vídeo incrível! Eu escuto!!
Nesse momento que estamos passando , nao li nada mais lindo, emocionante.
Parabéns.
Perfeito, na verdade o ser humano é a doença do planeta. Que para se curar tomou uma vacina anti-humanos, colocando todos em quarentena, e abrindo espaço pra cicatrizar as feridas q causamos.
Veneza está mais limpa!
O que prova uma máxima do turismo!
“O homem destrói o que procura!”
Os moradores italianos poderão voltar a andar nas cidades sem encontrar turistas, em bandos ou solitários anônimos, cultos que apreciam o vinho e a boa comida! Que amam a cultura e a história! Que jogam o lixo no lixo! Que usam T-shirts de algodão orgânico e vão visitar museus com o piso de mogno , from Brazil! E, Jornalistas éticos!
#culpadoésempreooutro!