Uma nova maneira de pensar e se relacionar no mundo corporativo, fundamental para um recomeço na pós-pandemia, vem sendo gestado por pessoas como a consultora Carla Stoicov, que há dez anos criou a Tistu para ajudar a desenvolver conteúdos e estratégias de sustentabilidade para empresas e organizações. Engenheira, Carla fez carreira no Banco Real e foi seduzida pela ideia de que transformações vindas de indivíduos que se conscientizam poderiam ser tão contagiantes quanto leis. Percebeu isso ao participar das iniciativas do banco, a partir de sua compra pelo ANB Amro Bank e se tornar pioneiro no país na implantação de uma gestão voltada para o desenvolvimento sustentável.
A partir da experiência, resolveu abandonar a carreira corporativa para trabalhar com sustentabilidade em tempo integral. Por três anos, atuou no Instituto Ethos – Empresas e Responsabilidade Social na criação de metodologias e implantação da responsabilidade social empresarial na gestão e cadeias de valor de empresas e, mais tarde, em sua própria empresa, onde agregou a facilitação e a mediação de conflitos como instrumento de resolução de problemas.
Com o tempo, Carla começou a perceber que as mudanças só acontecem quando, além do desenvolvimento individual, há processos de escuta e diálogo. “Não adianta me desenvolver sozinha, estar bem comigo mesma, pois o ser humano é grupal. Deixei para trás a abordagem única da sustentabilidade para trabalhar com relacionamentos”, conta.
Para ela, viver é um ato ativista e se vê como uma pessoa que coloca sua atuação em prática. Nesta conversa com o blog Mulheres Ativistas do Conexão Planeta, Carla diz que trabalhar o emocional coletivo é o que nos conduzirá ao novo. “Viver a realidade, no mínimo, vai nos levar à ação. Dizer que não gosta de política, não faz mudar a política, assim como não ouvir seu funcionário, não melhorará as coisas na sua empresa”, acredita.
O que a levou a abandonar uma carreira corporativa para se dedicar à sustentabilidade?
Nasci em Santos e tinha uma vida na praia, além de várias experiências com vários tipos de arte, por isso pensei também em estudar educação física ou artes plásticas, mas fiquei com o lado racional e pragmático e escolhi engenharia elétrica industrial. Tinha vontade de trabalhar na indústria automotiva. Durante a faculdade, fiz um ano de estágio no Teatro Coliseu, no centro de Santos, no projeto elétrico, durante seu restauro, e, depois, estagiei na Ford. Mas quando me formei, não fui efetivada. Era 1996, um ano de queda da indústria. Mudei para São Paulo e passei no processo de trainee do Banco Real. Apesar de meu único momento como engenheira ter sido os estágios, trouxe um pensamento lógico e sistêmico que me ajudou na carreira.
Quando o banco foi comprado pelo holandês ABN AMRO, a nova gestão trouxe para a empresa o movimento da sustentabilidade e acabei contaminada por conta de tantas frentes e iniciativas que surgiram. Fazia parte do grupo de ecoeficência, formado por pessoas de todas as áreas que queriam participar, e da frente de rede de sustentabilidade, na qual representava a diretoria de tecnologia de informação.
Nessa frente, pensávamos o que cada diretoria poderia fazer para inserir em sua atuação aspectos e/ou critérios de sustentabilidade, atuando no cerne de suas funções. Para mim, foi uma pequena grande escola sobre como a transformação vinda de indivíduos que se conscientizam e colocam ações em prática pode ser tão contagiante quando políticas e leis. O banco olhava para seu core, seu núcleo, no impacto do seu negócio. Foi nas oficinas internas que ouvi o termo desenvolvimento sustentável.
Gostei tanto dessa área que fiz algumas tentativas internas para ir para a área de sustentabilidade, não queria mais apenas participar em alguns momentos, mas me dedicar a isso em tempo integral. O contingente de pessoas que queriam o mesmo no banco, porém, era enorme e, na terceira tentativa de transferência para a área, decidi que, após dez anos de banco, não era lá que daria vazão a essa vontade. Afinal, minha geração já não tinha a mentalidade de trabalhar e se aposentar na mesma organização.
Como você chegou ao Instituto Ethos?
Com bolsa do banco, fazia parte da primeira turma de pós-graduação em sustentabilidade do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas (GVCes), que formou um monte de gente que está até hoje atuando nessa área. Lá, soube da oportunidade de trabalhar no Instituto Ethos, em um projeto financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), voltado a desenvolver cadeias de valor em empresas, atividades que envolvem desde as relações com os fornecedores e ciclos de produção e de venda até a fase da distribuição final. Que, no fim, é onde hoje se encontram os maiores impactos negativos de qualquer negócio, já que grandes empresas estão virando quase que só grandes marcas.
Entrei como coordenadora de metodologia e permaneci na organização de 2006 a 2009. Era uma fase de muitos projetos no Ethos, como os Indicadores Ethos, a Rede de Jornalistas Ambientais, o envolvimento na construção da Norma ISO-26.000 (Diretrizes em Responsabilidade Social). Fui trabalhar em uma estrutura menor, ganhando menos, mas vejo que não tinha outra opção a não ser seguir esse caminho. Uma das primeiras coisas que ouvi quando cheguei é que não faria nada sozinha. Era o lugar que queria estar – ajudar a levar responsabilidade para dentro das corporações.
Naquele momento, nosso papel ainda era olhar para as empresas grandes que começavam a trabalhar com cadeia de valor no país, embora muitas nem pensassem nisso ainda. Meu papel inicial consistia em estruturar um passo-a-passo para trabalhar com responsabilidade social empresarial nas cadeias de valor de grandes empresas. Para tanto, fui pesquisar o jeito de fazer, olhar o que estava sendo feito em termos de boas práticas, o que funcionava e o que não funcionava, para criar uma metodologia, com a participação das empresas e voltada para implementação prática.
Depois de um ano, assumi a coordenação geral, com uma dupla função, e atuei também como consultora diretamente com os fornecedores dessas organizações, empresas de micro e pequeno portes que ainda não pensavam em sustentabilidade, implementando a metodologia. Inovações nesse universo dificilmente são planejadas. O projeto chegou a nove grandes empresas, das quais foram selecionados fornecedores com os quais também construímos metodologias voltadas para a cadeia de valor. Comecei a facilitar na ponta, com lição de casa para as empresas.
Tive que aprender como planejar e inspirar para que outros se sensibilizassem a fazer as mudanças em seus negócios. Descobri que viver é um ato ativista e que, mesmo sem estar na linha de frente, ajudo a colocar as intenções em prática.
O que é e como surgiu a Tistu?
Saí do Ethos quando terminou o projeto e, como não queria voltar para corporações, resolvi abrir minha consultoria, inspirada no livro O Menino do Dedo Verde. Desde o início, minha preocupação foi sobre qual a ética que queria trazer para a empresa. Por exemplo, mesmo pequena, não aderi ao Simples, na época, por conta do tipo de atuação. Não queria ter esqueletos no armário, queria ter um posicionamento como consultora. Estava no início do meu relacionamento com o Wilson, meu companheiro até hoje, e o convidei para que embarcasse comigo também como sócio. Depois de seis anos, entraram mais duas sócias, a Flora e a Márcia. E trazemos o “fazer junto” como valor, nada na Tistu é realizado sozinho. Isso faz parte do nosso próprio desenvolvimento.
Trabalhamos em quatro eixos:
– desenvolvimento de conteúdos sobre desenvolvimento sustentável, direitos humanos e dimensão humana, com estudos, publicações, pesquisas e construção de indicadores;
– construção de estratégias de sustentabilidade, para ajudar empresas a pensar em ferramentas e estruturar essa maneira de atuar (só trabalhamos com organizações onde achamos que há grande chance de plantar sementes);
– realizamos facilitações para projetos, coletivos, movimentos, ONGs e empresas que têm coragem de estimular o questionamento e reflexão; e
– promovemos vivências, como fóruns e mediação de conflitos.
A qualidade dos relacionamentos em corporações, coletivos e organizações vem se destacando no seu trabalho. Fale sobre isso
Acho que a nossa atuação hoje se transformou em processo de transformação do indivíduo. Eu me desenvolvo e, com isso, o todo se desenvolve. Por isso, a facilitação é o carro-chefe. Não adianta eu me desenvolver sozinha, estar bem comigo mesma, pois o ser humano é grupal. É importante termos processos de escuta e diálogo. No ano passado, fizemos uma facilitação para uma ONG política e uma pessoa contou que muitos chegavam desconfortáveis aos encontros Pensei que esse era o objetivo. Nos grupos, há pessoas que falam de si pela primeira vez. Deixei para trás a abordagem única da sustentabilidade para trabalhar com relacionamentos.
Em 2012, eu e Wil fizemos formação do Programa Germinar e de mediação de conflitos na Palas Athena, para esse novo jeito de facilitar. Todos na Tistu buscam o caminho do autodesenvolvimento. Antes, o processo era mais voltado para o desenvolvimento sustentável, mais engajado. O Germinar traz a lógica da consultoria de processos. Não tenho pauta para levar, as pessoas é que têm questões e precisam de ajuda. Foi libertador, pois já começava a questionar o mercado empresarial da sustentabilidade. O método do Germinar permite ver que o cliente chega com um histórico, detectamos o que está por trás disso e o que faz com que as pessoas não se conectem.
Mudar uma política (ou o nome de um projeto) é fácil, o mais difícil é mudar o ser humano. É a pessoa quem precisa se transformar. Para isso, preciso despertar uma reflexão interna para enxergar como sua atuação impacta o outro em qualquer nível. E isso envolve emoções e sentimentos. A base é a antroposofia, pela qual a humanidade precisa de evolução de consciência para dar o próximo passo. Esse lado do Germinar, do qual sou facilitadora, trouxe esse olhar para o ser humano que está na sua frente. Não posso só resolver um problema da organização se ela é feita de pessoas.
Você também é ativista pelo feminismo e criou um projeto no Instagram. Como foi isso?
Éramos cinco mulheres com um projeto feminista que se materializou num perfil no Instagram, o @Nu_res_peito. Trabalhamos em quatro eixos (um paralelo da visão quadrimembrada do ser humano pela antroposofia): nosso corpo, nosso ritmo de vida, nossa alma e nossa identidade.
Em nosso corpo, cada mulher era convidada a aprender a amá-lo com suas imperfeições, liberdade de mostrá-lo quando e como quiser, legislar sobre ele e lutar por isso. Com nosso ritmo de vida: falar de papéis que assumimos em nosso cotidiano, que representam a mulher que queremos ser ou que somos porque é o esperado da mulher. Com nossa alma: falar, ouvir e ressignificar nossas dores, medos, traumas e prazeres com sexo, relações, separações, opção pela maternidade ou não, espiritualidade. E, com nossa identidade: só eu sou o meu limite para sonhar, expressar e vivenciar aquilo que realmente somos, percorrendo nossa jornada de heroína para chegarmos a quem somos hoje.
O projeto durou um pouco mais de um ano, mas foi muito revelador o que realizamos e, no fim, recebemos um monte de fotos de mulheres que se sentiram seguras a questionar seus próprios padrões de beleza.
Gostaria que você falasse sobre o ciclo de encontros ‘Todas’, que ajudou a coordenar, e tinham como base os Fóruns ZEGG.
Nesses encontros, no ano passado, experimentamos colocar em prática mais uma formação da qual participei, a partir de uma necessidade que identificamos. Por exemplo, facilitando os encontros do movimento Bancada Ativista, desde 2016, percebemos que o mundo fora é tão árido para esses coletivos e movimentos políticos, que descuidam do ambiente interno. Percebemos como política se faz no grito, por quem fala melhor e mais alto, o que faz muita gente ir embora, mesmo sabendo que o que está se fazendo lá é muito legal.
Com a realização de fóruns – baseados no Fórum ZEGG, que facilita a conexão, a emoção e a indagação coletiva –, vimos um caminho para ter uma ferramenta que lide com o campo emocional. O Todas – Círculo de Confiança entre Mulheres e seu equivalente masculino, o Todos serviram para praticarmos e já estamos levando essa metodologia para as organizações. Nos fóruns, as pessoas entram para falar no centro de um círculo espontaneamente, o que faz com que assumam sua responsabilidade, o que as torna transparentes para o grupo. É uma ferramenta que cria um campo mais emocional, nos ajuda a entender nossos pontos cegos e, ao mesmo tempo, é uma pesquisa coletiva de todos sobre o humano do ser humano.
Há algum tempo, também, temos sido procurados por pessoas em transição de carreira, insatisfeitas com o trabalho, que nos chamavam para um café, um almoço, para conversar. A partir disso, desenvolvemos o projeto A Pele que Habito, onde mostramos como vemos o trabalho, contamos sobre nossa transição e como olhar o trabalho, não apenas como o que faço por dinheiro.
Como você vê este momento de isolamento social, no qual as pessoas estão tão preocupadas com seus trabalhos e atividades?
Na perspectiva emocional, olho este momento como as fases do luto. Primeiro, a gente não aceita, a seguir, reage mal. Depois, vem a negação. Por exemplo, pessoas dizem que não veem notícias, mas sem contato com a dureza da realidade, a consciência não acontece.
Fica fácil para voltar ao normal, mas o normal é ruim. Percebi como eu estava preparada para ver o noticiário, para não me desesperar e buscar a ação. Mas trabalhar o emocional coletivo é o que nos levará ao novo. Dizer que não gosta de política, não faz mudar a política, assim como não ouvir seu funcionário, não melhorará as coisas na sua empresa.
Perguntar para alguém se está bem apenas para que ele responda ‘sim’ e a conversa continue vai ‘dar ruim’ no mundo. Não há caminho de construção de paz que não lide com desconforto. Tenho que saber o que não está bom nas minhas relações emocionais com o trabalho, a família etc.
Tenho apoiado grupos que estão se reunindo online para que consigam se conectar. Provavelmente, são grupos que já não estavam bem no presencial, mas sem o café, o almoço ou happy hour para aliviar e entender o que houve, o entendimento fica mais difícil.
Precisamos encontrar um caminho para que esses encontros virtuais não sejam apenas para resolver problemas ou reproduzir o que estava ruim no presencial. A situação ainda vai permanecer um tempo assim, precisamos aprender a olhar o ser humano que está ali.
Edição: Mônica Nunes
Foto: arquivo pessoal