Bichos (im)perfeitos

bichos im(perfeitos)

Acho que todo fotógrafo de natureza tem um quê de perfeccionismo. No meu caso, às vezes isto beira a obsessão, de querer que tudo esteja impecável: a luz, o tema, a simetria, a composição, o enquadramento. A coisa torna-se especialmente complicada quando lidamos com fatores alheios ao nosso controle. Ao contrário de outras modalidades da fotografia, como aquelas feitas em estúdio sob situações controladas, no ambiente natural, a nossa capacidade de modificar as condições é limitada.

Há algum tempo, enquanto acompanhava uma expedição em busca de onças pelo Pantanal com um excelente fotógrafo e guia da África do Sul, em um dado momento, encontramos um macho todo estropiado: as orelhas tinham vários picotes, o focinho era meio torto com um corte cicatrizado no meio, um dos olhos parecia machucado recentemente e o canto esquerdo da boca tinha um rasgo vertical que revelava os dentes caninos, mesmo quando sua boca estava fechada.

Enquanto fotografávamos o bicho, comentamos sobre esta questão da estética e sobre contar histórias através de uma foto. Do ponto de vista estético, este macho de onça-pintada tinha muitas “imperfeições”. Talvez uma foto dele nunca fosse utilizada para ilustrar um painel decorativo, um cartão postal, um outdoor de propaganda. Porém, ao mesmo tempo, aquelas imagens contavam sobre a vida dura de um predador experiente, lutador e com muitas histórias na bagagem.

Apelidada de “Pirata”, a onça acima caçou um jacaré logo após este registro

Na mesma temporada, tive a oportunidade de registrar um outro bicho “imperfeito”, cuja imagem era muito poderosa em termos de revelar a natureza e até a fragilidade de um predador. Encontramos uma fêmea de sucuri-verde com aproximadamente 6 metros de comprimento e cega de um olho! Eu acredito que já havia visto este mesmo indivíduo antes, todavia, somente pelo lado esquerdo da sua cabeça, onde o olho é saudável.

Desta vez, ela revelou o lado direito e pude constatar que, no lugar do olho, havia um espaço vazio. Aparentemente, inclusive pelo fato da visão não ser o principal sentido para orientação nestas serpentes, a ausência de um globo ocular – talvez perdido em alguma caçada – não prejudica sua sobrevivência, já que a sucuri aparentava estar em plena saúde.

E assim, vira e mexe encontramos no mato um jacaré com dentes furados e tortos, uma ave com apenas uma pata, um tatu com uma orelha cortada pela metade.

Estes bichos nos ensinam não apenas como deve ser difícil a sobrevivência na natureza, como também, o quanto estas “imperfeições” físicas não representam qualquer limitação para uma convivência harmônica com seus semelhantes – nem para que fotógrafos perfeccionistas deixem de fazer uma boa imagem.

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Daniel De Granville

Biólogo com pós-graduação em Jornalismo Científico, começou a carreira fotográfica na década de 90, quando vivia no Pantanal e trabalhava como guia para fotógrafos renomados de várias partes do mundo, o que estimulou seu interesse pela atividade. Já apresentou exposições, palestras e cursos na Alemanha, EUA, Argentina e diversas regiões do Brasil. Em 2015 foi o vencedor do I Concurso de Fotografia de Natureza do Brasil, da AFNATURA, e em 2021 ganhou o primeiro prêmio na categoria “Paisagem” do Concurso Global da The Nature Conservancy. Vive atualmente em Florianópolis, onde tem se dedicado ao ensino de fotografia e continua operando expedições em busca de vida selvagem Brasil afora