Após voto de Nunes Marques a favor do marco temporal, Moraes pede ‘vista’ e suspende julgamento no STF, sem previsão de volta; indígenas protocolam carta

Atualizado em 17/9/2021 para contar sobre a carta protocolada por indígenas, no dia seguinte à suspensão do julgamento, com pedido dirigido ao ministro do STF, Alexandre de Moraes, para que devolva o processo com rapidez para que o julgamento do Recurso Extraordinário de número 1017365 possa ter continuidade e seja finalizado. Leia a respeito no trecho ‘Pedido de vista’ deste post.
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O voto do ministro Kássio Nunes Marques favorável à tese ruralista do marco temporal, no julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), já era esperado. Afinal, o magistrado foi indicado por Bolsonaro – ele substituiu Celso de Mello, que se aposentou – certamente por estar alinhado com as pautas do governo e de seus aliados do agronegócio.

Mas o pedido de vista feito por Alexandre de Moraes, surpreendeu. Ainda mais porque esta é a segunda vez que ele lança mão desse recurso, neste processo: em 11 de junho, logo após o pronunciamento do ministro Edson Fachin (relator), ele também pediu vista, como contamos aqui. E essa decisão contribuiu para arrastar o julgamento até agora, dois meses depois, porque suspendeu o julgamento, como aconteceu ontem.

Não há data marcada para a retomada do julgamento, mas o prazo determinado pelo Regime Interno do STFartigo 134 – para que o ministro que pediu vista devolva o processo para a apreciação do plenário, é até 30 dias,

E, assim, o julgamento permanece empatado: um voto contra o marco temporal, proferido por Fachin, relator – como contamos aqui -, e um a favor.

“O voto do Ministro Nunes Marques não é surpresa e representa a política anti-indígena do governo Bolsonaro, que afronta a Constituição de 88″, declarou Sonia Guajajara, coordenadora executiva da APIB, em seu Twitter, logo após o resultado do julgamento.

Ministro Kássio Nunes Marques / Foto: Felipe Sampaio, Agência Brasil

“E agora, enfrentaremos mais um pedido de vista! Um desrespeito com os povos indígenas que estão mobilizados há quase um mês – desde 22 de agosto -, em Brasilia, para acompanhar a votação”. Na tarde de ontem, cerca de 150 indigenas de dez povos acompanharam o julgamento do Recurso Extraordinário do Marco Temporal em frente ao STF.

Em seu voto, Nunes Marques reconheceu os massacres dos indígenas com o intuito de roubar seus territórios, mas, em seguida, alegou a necessidade de segurança jurídica garantida pela aplicação do marco temporal. É mais ou menos como propor aos povos indígenas que passem uma borracha no passado marcado por tanta violência e mortes, parem de lutar por seus direitos e terras e aceitem que os não-indígenas e o governo se apropriem de tudo. Imoral, injusto.

O adiamento só aumenta a agonia de todos os povos indígenas que vêm enfrentando ataques diários de madeireiros e garimpeiros em suas terras, e de agentes do governo, incluindo o presidente da Funai. “Mas seguiremos na resistência pelos direitos indígenas!”, concluiu a liderança.

“É um processo doloroso, cansativo, mas assim como a gente acredita em Topé Nhanderú, temos que continuar acreditando que, dali, do Supremo, saiam os votos necessários para garantir nossos direitos”. explica Kretã Kaingang, um dos coordenadores da APIB.

Contradição e interpretação gramatical

O advogado indígena Eloy Terena / Foto: Divulgação, APIB

Para destacar os principais pontos do voto de Nunes Marques, o advogado Eloy Terena, coordenador jurídico da APIB, comentou e gravou uma live em suas redes sociais. Reproduzo alguns trechos aqui para ilustrar a decisão do ministro pró-governo.

No Twitter, Terena declarou: “Não vi nada de novo. Apenas um ministro repetindo os velhos argumentos dos ruralistas. Pareceu-me um copia/cola das petições dos fazendeiros… O ministro reconheceu que o direito indígena é imprescritível, mas aplicou o marco temporal, anistiando os crimes perpetrados contra os povos indígenas. Voto Teratológico!”. 

Em live no Instagram, o advogado destacou que Nunes Marques fez interpretações erradas do que determina a Constituição. “Invocou o artigo 67 dos atos das disposições constitucionais transitórias (ADCT), dizendo que a Constituição deu um prazo de 5 anos para que todas as terras fossem demarcadas e que esse prazo seria decadencial, ou seja, as terras que não fossem demarcadas nesse período, não poderiam mais ser demarcadas”.

“Ele vai totalmente na contramão do que os próprios constituintes originários debateram à época. Esse prazo foi imposto para que o Estado brasileiro cumprisse o seu dever de proteger os povos indígenas. E não que eles perderiam seus direitos caso as terras não fossem demarcadas”.

Como já comentei, Terena lembrou que o magistrado reconheceu as violações contra os povos indígenas durante o processo de ocupação das terras no Brasil, e destacou que o próprio Estado impulsionou a ocupação desses territórios em detrimento dos povos que os ocupavam. 

No entanto, em seguida, fez uma interpretação gramatical da Constituição. “O ministro diz que a Constituição, de fato, reconheceu o direito originário dos povos indígenas, mas reconheceu o direito originário sobre as terras que tradicionalmente OCUPAM, destacando que o verbo está no presente. Ou seja, a Constituição só teria reconhecido as terras que estavam ocupadas no momento em que o texto foi escrito”. 

E finalizou: “Esse tipo de interpretação gramatical, que alguns juristas fazem, é a interpretação mais pobre da hermenêutica constitucional que existe!”.

O advogado também destacou que Nunes Marques “reforçou as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol, votando pela restrição do usufruto dos direitos dos povos indígenas“, especialmente no que tange às faixas de fronteiras e à construção de estradas ou de linhas de transmissão (Linhão, por exemplo). Para o ministro, nestes casos, os indigenas não teriam direito de usufruto porque essas terras seria do interesse publico da União. “Ou seja, aplica também uma dimensão restritiva até ao usufruto dos povos indigenas!”.

Por último, o magistrado bolsonarista votou pela “não compatibilidade da proteção constitucional do direito ambiental”. Terena comentou:

“Enquanto o ministro Fachin clamou pela compatibilidade de interesses indígenas e do meio ambiente (e isso ficou claro na época do caso Raposa Serra do Sol), Nunes Marques disse que, nesses casos, em que há dupla afetação e, em especial, quando há sobreposição de terras indígenas e unidades de conservação, as terras ficariam sob a administração do ICMBio. Então, esse aspecto relativiza o usufruto das comunidades indígenas a seus territórios”.

Vale lembrar que o ICMBio, assim como o Ibama, têm sido enfraquecidos desde que Bolsonaro assumiu a presidência. Ricardo Salles, ex-ministro do meio ambiente, como sabemos, foi extremamente competente na destruição dos dois órgãos responsáveis pela fiscalização e pela conservação ambiental no país. Portanto, o que Nunes Marques propõe – atribuir a administração dessas terras ao ICMBio – é escárnio, ironia.

Pedido de vista

Alexandre de Moraes / Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom, Agência Brasil

Quem presidiu a sessão no STF foi a ministra Rosa Weber. Assim que Nunes Marques terminou seu voto, ela passou a palavra para o ministro Alexandre de Moraes, que pediu vista, suspendendo o julgamento. Mais uma vez, como comentei no início deste texto. Por que o magistrado precisa de mais tempo para analisar este processo?

Terena explica que “pedido de vista é um direito que todo ministro tem de que todas as vezes que ele sentir necessidade de mais tempo para decidir sobre o caso e formar sua convicção, ele pode pedir vista. O ministro Alexandre de Moraes fez esse pedido porque precisa de mais tempo para analisar os argumentos de Fachin e de Nunes Marques e refletir mais sobre o caso”.

E salientou: “Temos que seguir aguardando, incidindo junto ao STF para que o ministro Alexandre de Moraes devolva esse processo o quanto antes. E, logo depois à devolução, pressionar para que o presidente da Corte o inclua na pauta de julgamento”. 

Segundo a APIB – Articulação dos Povos Indigenas do Brasil, antes de seguir para o julgamento no STF, Moraes participou de uma longa reunião com o ministro da Justiça, Anderson Torres, em São Paulo. Terá o encontro influenciado sua decisão?

No dia seguinte, 16/9, 150 lideranças de 13 povos, que continuam acampados em Brasília, protocolaram uma carta com pedido de urgência dirigido à Alexandre de Moraes para solicitar que ele devolva, com rapidez, o processo para que o julgamento do Recurso Extraordinário de número 1017365 – que decidirá os rumos das demarcações das terras indígenas no país – tenha continuidade e possa ser finalizado.

“Mantemos plena confiança e apoio ao STF neste contexto de grandes ataques que têm sido desferidos contra a mais alta corte de nosso país. Ao mesmo tempo, a postergação para a finalização deste emblemático julgamento faz aumentar sobremaneira a expectativa nossa e de todos os povos indígenas do Brasil quanto a uma decisão favorável do Supremo aos nossos direitos constitucionais e fundamentais”, diz trecho da carta, que pode ser lida, na íntegra, no site da APIB.

Como fica o PL 490

Foto: APIB

O PL 490 – que anula demarcações de terras indigenas – foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania em 23 de junho e deve seguir para o Senado, para análise e votação. Sofre alguma interferência devido ao julgamento?

“Ele tem sua tramitação normal no Congresso Nacional. Independe desse julgamento”, esclarece Eloy Terena.

“E claro que, se o julgamento do marco temporal for concluído no STF, isso influenciará as discussões no Congresso. Mas o julgamento por si só não faz com que o PL 490 seja sustado. Ele tem seu tramite normal. A casa legislativa tem autonomia para tocar isso”. 

E completa: “Se, no futuro, o STF declarar o marco temporal como inconstitucional e, posteriormente, o Congresso aprovar o marco temporal, a situação deve ser objeto de questionamento pelo STF. Mas, neste momento, o julgamento e a tramitação do PL são autônomos e seguem de acordo com a sistemática de cada casa. A decisão do STF pode influenciar o Congresso”, finalizou. 
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Foto (destaque): Matheus Alves/Apib

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Mônica Nunes

Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.