por Sarah Brown (words) & Kashfi Halford (video)*
A apenas 60 quilômetros da cidade do Rio de Janeiro, dezenas de botos-cinza (Sotalia guianensis) passam cautelosamente pela lancha, vindo à superfície d’água para respirar. Leonardo Flach fica na proa tirando fotos para depois identificar os indivíduos com base nas nadadeiras dorsais. Com mar límpido e montanhas cobertas de floresta ao redor, a paisagem da Baía de Sepetiba é pitoresca, mas a água está longe de ser cristalina.
“Aqui no Brasil, [o boto-cinza] é uma das espécies mais comuns em estuários e baías, mas ao mesmo tempo é uma das espécies mais ameaçadas”, diz Flach, biólogo e cofundador do ONG Instituto Boto Cinza. Ele estuda esses cetáceos na Baía de Sepetiba desde a década de 1990 para entender os perigos que enfrentam e encontrar soluções para protegê-los.
Uma das principais ameaças a esses botos é a poluição química no mar. Flach fez parte de estudo publicado em março que encontrou altas concentrações de toxinas em botos-cinza durante um período de 12 anos na Baía de Sepetiba, resultado de dragagem, poluição industrial e esgoto bruto. Até 80% do esgoto da região não é tratado e é jogado na baía, contaminando o mar com patógenos e produtos farmacêuticos que são eliminados pela urina, diz.
“Os nossos botos-cinza, que vivem em baías semi-fechadas, são um dos mais contaminados do mundo”, explica Mariana Alonso, professora do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A exposição a estes produtos químicos está ligada a alterações hormonais e a problemas nos sistemas reprodutivo e imunológico dos botos-cinza, levando a uma maior suscetibilidade a doenças infecciosas, segundo os pesquisadores do estudo. Um surto de vírus de novembro de 2017 a março de 2018 entre os botos-cinza foi mortal: pelo menos 277 botos morreram, exterminando quase um quarto da população da Baía de Sepetiba, bem como 6% dos botos na vizinha Baía da Ilha Grande.
“Esse vírus foi muito mais letal porque pegou uma população que estava com a saúde já comprometida”, diz Flach.
O boto-cinza é particularmente vulnerável à água contaminada porque exibe o que é conhecido como “fidelidade ao local” e raramente sai do lugar onde nasceu. Significa que, por mais poluída que esteja a água, o animal permanecerá lá, apesar do impacto na sua saúde.
Flach estuda os botos-cinzas tanto na Baía de Sepetiba quanto na vizinha Baía da Ilha Grande, um ponto turístico popular. Embora as águas da Ilha Grande sejam mais cristalinas que as de Sepetiba e Ilha Grande tenha menos indústria, o mar ainda é contaminado pelas companhias de petróleo e pela poluição proveniente da Baía de Sepetiba. Altos níveis de mercúrio também foram registrados lá, diz Alonso, embora estudos ainda não tenham confirmado se isso ocorre naturalmente ou está ligado à poluição industrial.
Antes presentes em todo o Rio de Janeiro aos milhares, o número de botos-cinza diminuiu à medida que a expansão urbana aumentou. Das três baías onde reside o boto-cinza – as baías de Sepetiba, Ilha Grande e Guanabara –, a mais afetada é a de Guanabara. Na década de 1980, mais de 400 botos-cinzas viviam ali; agora, restam menos de 30.
O habitat mais poluído do Rio de Janeiro
A Baía de Guanabara tem uma superfície total de água de 328 quilômetros quadrados e é uma das áreas mais populosas da América do Sul, abrigando cerca de 11 milhões de pessoas. Também está rodeado pela segunda maior concentração industrial, com cerca de 10 mil indústrias, incluindo químicas, bem como 16 terminais petrolíferos e 12 estaleiros navais. Um estudo de 2017 descreve o desenvolvimento na Guanabara como “descontrolado, com planejamento limitado ou nenhum planejamento para a sustentabilidade”.
Os botos-cinza que vivem na Baía de Guanabara enfrentam constantes ameaças diárias de toxinas industriais, esgoto bruto e poluição sonora de navios que interferem no sonar dos botos. Essa combinação causa estresse crônico, que afeta a imunidade e o sistema reprodutivo dos botos, explica Rafael Carvalho, biólogo do Laboratório de Mamíferos Aquáticos e Bioindicadores (Maqua) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
As fêmeas da baía foram observadas sem nunca terem tido descendentes, apesar de terem atingido a maturidade sexual anos antes, o que significa que provavelmente tiveram dificuldades na reprodução, diz Carvalho. Para aqueles que conseguem reproduzir-se, as suas crias enfrentam uma probabilidade “muito baixa” de sobrevivência, segundo ele.
“É exatamente a característica do que esses componentes químicos fazem com a saúde desses animais”, diz Carvalho. “Eles inclusive impedem a reprodução. Por isso, o grande declínio da população ao longo desses últimos anos.”
Limpar a Baía de Guanabara e reduzir a poluição diária é uma tarefa enorme e requer uma solução multifacetada. Mas o progresso está sendo feito. A Águas do Rio, empresa de serviços de água e esgoto do Rio de Janeiro, implementou uma série de desenvolvimentos de infraestrutura e tecnologia na Baía de Guanabara nos últimos dois anos, evitando que 82 milhões de litros de esgoto fossem despejados no mar, de acordo com um comunicado que a empresa enviou à Mongabay.
Pesquisadores do Maqua descobriram que uma unidade de conservação criada em 1984 no norte da baía se tornou um santuário para os botos-cinza, destacando a importância dos espaços protegidos e a necessidade de criar mais.
“A gente percebe ao longo dos nossos monitoramentos que os botos têm tido uma tendência a passar bastante tempo nessa região ou muito próximo a essa unidade de conservação, muito provavelmente porque ela tem características de pouca circulação de embarcação. Ela tem algumas restrições de uso [como pesca], e mantém algumas características de melhor qualidade ambiental”, explica Carvalho.
Pesquisa para proteger o boto-cinza
Uma forma de entender as ameaças aos botos é analisar as carcaças para descobrir o que os matou e em que condições se encontravam antes de morrer. Mas, para obter uma imagem mais clara da saúde da população actual, os investigadores precisam de analisar espécimes vivos.
Na Baía de Sepetiba, Flach guarda sua câmera e equilibra um pequeno dispositivo semelhante a um arpão contra seu corpo. Observando o grupo de botos, ele mira e atira uma pequena flecha no grupo, causando uma comoção ao atingir um deles. Com um grito de triunfo, Flach se inclina sobre o barco, tira a flecha da água e arranca a gota de gordura e pele que está na ponta.
A biópsia causa um leve desconforto, mas não é prejudicial, diz Flach. Para os investigadores, este aglomerado de carne é uma valiosa fonte de informação para determinar o sexo do boto e medir as acumulações tóxicas e patogênicas na sua gordura. Flach coloca a amostra em um tubo de ensaio, onde será enviado a pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro para análise de seu conteúdo.
Outras formas de monitorar a população de botos é através de fotos. Em seu escritório na Baía de Sepetiba, Flach possui milhares de imagens das nadadeiras dorsais dos botos-cinza tiradas ao emergirem da superfície da água.
Cada nadadeira é única, como uma impressão digital humana, e as fotos permitem-lhe acompanhar o número de botos. Ele também registra os animais que ficam presos nas redes de pesca e se afogam. A captura acidental, quando animais marinhos como botos ou tartarugas ficam acidentalmente presos em redes preparadas para peixes, é outra ameaça para os botos-cinza e mata até oito desses cetáceos por mês no Rio de Janeiro.
A pesquisa e o ativismo de Flach ajudaram a criar uma reserva marinha protegida de 250 km2 na Baía de Sepetiba, onde se proíbe a indústria e a pesca predatória. O Instituto Boto Cinza também coordenou cursos que concederam aos jovens locais uma habilitaçã para pilotar barcos, proporcionando-lhes um renda alternativa à pesca, como observação de botos e passeios de barco para turistas.
“A gente tem que dar uma alternativa para que eles consigam manter as suas atividades no mar e, ao mesmo tempo, consigam poder ter o seu sustento sem prejudicar o ecossistema marinho”, diz Flach.
A mudança para o ecoturismo melhorou a relação entre as comunidades locais e os botos, tornando os animais economicamente valiosos e aumentando o incentivo para protegê-los e ao seu ambiente. Também proporcionou uma forma de obter uma renda decente, uma vez que a pesca industrial reduziu drasticamente os estoques de peixe, bem como garante que as comunidades tradicionais permaneçam intactas.
“O pescado está acabando, então a única fonte de renda seria eu trabalhar com o ecoturismo ou sair da comunidade para fazer outro tipo de coisa no continente”, diz Renan da Cruz Juvenal, um pescador local que se tornou guia turístico. Ele mora em um quilombo na Ilha da Marambaia, na Baía de Sepetiba, e fez o curso de Flach em 2014.
A combinação de pesquisa, educação e defesa de políticas públicas teve um impacto significativo na população de botos na Baía de Sepetiba. “A gente freou bastante. Acredito que, se não tivesse o estudo, a gente teria uma mortalidade aumentando”, explica Flach.
Com o número diminuindo no Rio e tão poucos botos-cinza restantes na Baía de Guanabara, sua existência está por um fio. Mas os especialistas dizem que ainda há esperança. “Tem que acreditar que tem futuro. E a gente trabalha para isso, pela preservação, pelo futuro dessa população”, diz Carvalho. “Se a gente acredita que alguma coisa já era, não dá mais. Aquilo ali realmente pode nem ter acabado. Mas se você acredita nisso, pode ter certeza que já acabou”.
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* Este texto foi originalmente publicado no sie do Mongabay Brasil em 30/4/2024
Foto (destaque): Instituto Boto Cinza/divulgação