‘A Última Floresta’, filme de Luiz Bolognesi sobre o povo yanomami, tem roteiro original do xamã Davi Kopenawa

A Última Floresta, de Luiz Bolognesi, foi o único filme brasileiro selecionado para participar da Panorama da Berlinale 2021 – ou Festival de Berlim, como conhecido também -, que, devido à pandemia, foi organizada em formato híbrido (online e presencial) e dividida em duas etapas: de 1 a 5 de março e de 9 a 20 de junho.

Hoje, 3/3, acontece a estreia deste longa-metragem, escrito e roteirizado por Bolognesi em parceria com o xamã e líder Yanomami, Davi Kopenawa, que, em dezembro do ano passado, foi eleito membro da Academia Brasileira de Ciências.

Esta é a segunda vez que o líder indígena se une a um intelectual ativista para divulgar a história de seu povo e suas reflexões a cerca da destruição promovida pelo “homem da mercadoria” em suas terras, o maior território indígena brasileiro.

Em 2015, Kopenawa lançou o livro A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami, escrito pelo antropólogo Bruce Albert a partir de sua longa convivência e amizade, dos saberes e dos alertas do xamã.

Tradições, espíritos e invasões

Profissional de prestígio no cinema – dirigiu a animação Uma História de Amor e Fúria e roteirizou Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanski) -, em 2018 Bolognesi se rendeu ao “chamado” dos povos indígenasque lutam há mais de 500 anos por sua sobrevivência -, com o lançamento de Ex-Pajé.

O documentário ganhou menção honrosa na Berlinale do mesmo ano e denuncia a evangelização dos indígenas brasileiros a partir da história de rejeição e sofrimento vivida por um pajé – Perpera – em uma aldeia da etnia Paiter Suruí, em Rondônia.

Para fazer o belíssimo A Última Floresta, Bolognesi se aliou a Kopenawa. Ao ler A Queda do Céu, se apaixonou pela narrativa do xamã e quis levá-la para as telas, revelar o cotidiano e a luta de décadas desse povo que vive ao norte do Brasil e ao sul da Venezuela há cerca de mil anos, e que, desde os anos 70, sofre com sucessivas invasões de garimpeiros.

No novo filme, o líder e xamã luta para proteger as tradições e manter vivos os espíritos da floresta. Davi e diversos outros líderes da etnia lutam com todas as forças e recursos para que a lei seja cumprida e os invasores retirados do território  homologado, por decreto presidencial, em 25 de maio de 1992. No ano que vem, faz 30 anos!

Produzido pela Gullane Filmes (dos irmãos Caio e Fabiano Gullane; que também será responsável pela distribuição) e a Buriti Filmes, em associação com a Hutukara Associação Yanomami e o Instituto Socioambiental (ISA), ‘A Última Floresta’ tem estreia prevista para o segundo semestre deste ano.

Os sonhos como direção

Assim que leu o livro de Kopenawa, Bolognesi o convidou para fazer o roteiro original, mas outros integrantes do povo Yanomami também contribuíram com o processo criativo.

O diretor construiu a história com o xamã e as escolhas narrativas com os demais lideres, incorporando seu “ponto de vista mágico” sobre os acontecimentos. “Um rico encontro entre o povo do cinema e o povo Yanomami”, disse ao portal Terra.

Li, na entrevista que concedeu ao site C7nema, que ele e Kopenawa falaram muito sobre sonhos, que são considerados uma riqueza imensa pelos povos indígenas: são indicadores de caminhos, são insights.

“Sonhos possuem grande força”, disse Bolognesi, assim como em nossa cultura. “Partindo da psicanálise, entendeu-se muito a importância dos sonhos“, lembra o diretor. Para os yanomami, os sonhos são muito vivos e, por isso, conduziram a narrativa de Bolognesi.

Abaixo, reproduzo a declaração do diretor, na íntegra, que é muito interessante e reveladora, e nos ajuda a compreender o processo criativo.

“Davi me contava seus sonhos. Quando eu contava um meu e sugeria que alguma sequência ou dispositivo narrativo fosse introduzido no filme, muitas vezes ele falava que o sonho era meu e não dele. O filme precisava ser sobre os Yanomami e ele rejeitava os dispositivos que eu trazia”.

“Seguíamos sempre os sonhos do Davi e articulávamos a narrativa com as histórias que ele contava e com os sonhos. Não só dele, pois ouvi outros relatos de sonhos. O roteiro foi feito praticamente dentro dos sonhos. Ele refere-se ao sonho da noite ou ao sonho que tiveram à tarde, não como algo que não existe. Para eles é um acontecimento, é da ordem dos acontecimentos naturais”.

Um indígena que disse que à noite sonhou que caçava, que tinha uma onça onde estava, acredita que isso aconteceu. Para ele, o espírito dele saiu e chegou perto da onça. Escrevemos o roteiro desse modo”.

“Muitas vezes, decidíamos o que fazer orientados pelos sonhos do Davi. Era isso que ele solicitava e eu me encantei com essa possibilidade. A minha maneira de fazer roteiros, ou seja, a maneira do homem branco de fazer um roteiro, foi colocada um pouco de lado”.

“Claro que, na montagem, tive que trabalhar com a nossa lógica, tentando fazer uma ponte entre a riqueza do material fantástico que eles propuseram e uma inteligibilidade, uma capacidade cognitiva da audiência branca. Existe um trabalho de dramaturgia na montagem de costurar para tornar inteligível, ter início, meio e fim”.

“Mas, no filme, está mantida a visão circular da narrativa que vem das histórias deles, onde as coisas faladas vão costurando as histórias. A nossa narrativa está imbuída desse modo deles de contar histórias. Diria que, de certa forma, abandonei o modo de articular narrativas a priori e trabalhei com a escuta dos acontecimentos“.

Dois xamãs

Perpera Suruí e Davi Kopenawa sob o olhar de Luiz Bolognesi,
em Ex-Pajé e A Última Floresta – Fotos: Divulgação

Perguntado pelo mesmo site sobre uma possível conexão entre seus dois últimos filmes – Ex-Pajé e A Última Floresta, Bolognesi respondeu que são “similares opostos”.

“É quase uma obra dística porque, no primeiro, vemos uma comunidade em que o pajé está destituído pelos pastores de seu lugar sagrado de sabedoria, cura e poder. Vemos sua luta de sobrevivência, resistência subliminar e a angústia, dor e sofrimento, nesse processo etnocida“.

No segundo, acontece o contrário: o pajé é o xamã! Davi está coberto de poder e no epicentro da vida como liderança política, filosófica, religiosa e luta para que a mercadoria não entre, para que os evangélicos não entrem, e que o garimpo, que já invade suas terras, saia. É o oposto”.

E, assim, resumiu: “Um filme mostra um grupo em que o xamã está destituído de seu lugar e o outro vai a uma comunidade em que o xamã está no auge da luta de resistência”.

Ambos nos ajudam a compreender melhor o universo dos povos indígenas e o que podemos fazer para contribuir com sua luta pelo respeito às suas terras e pela proteção da natureza.

Isso é ainda mais especial neste momento em que estamos sob um governante que, desde a campanha presidencial, sempre declarou seu desejo de liberar esses territórios para a exploração de garimpeiros, madeireiros, ruralistas e hidrelétricas (projeto assinado por ele para favorecer a mineração já está na Câmara dos Deputados para votação), sempre depreciando os costumes, a identidade e a cultura dos povos indígenas diante dos brasileiros não-indígenas.

O cinema de Bolognesi é um grande aliado.

Invasões e Covid-19

Desde que Bolsonaro assumiu o governo, a quantidade de invasores aumentou barbaramente. Com certeza, as declarações que fez durante a campanha presidencial, contribuíram para isso: disse que não demarcaria “nenhum centímetro de terra indígena” e, ao assumir o poder, enfatiza que quer liberar todas as terras indígenas brasileiras para exploração econômica.

Com a pandemia, a situação só piorou: além de arrasarem as florestas, contaminarem os rios, transmitirem doenças como malária e cooptarem jovens com promessas de “uma vida melhor”, levaram a Covid-19 para dentro de seus territórios.

Em abril, morreu o primeiro indígena yanomami por causa da doença: um adolescente de 15 anos, que havia sido tratado de malária no mês anterior.

Em dezembro de 2019, Yanomami e Ye’kwana (que vivem no mesmo território) redigiram carta pública para denunciar risco de massacre e exigir proteção do governo.

Em junho de 2020, os dois povos organizaram uma campanha contundente – #ForaGarimpoForaCovid – para alertar sobre a contaminação desse povo pelos garimpeiros e pedir às autoridades sua retirada de suas terras.

O Instituto Socioambiental (ISA), que apoia os Yanomami, estima que há mais de 20 mil garimpeiros em seu território.

Agora, assista ao trailer de A Última Floresta, que já é uma linda viagem:

Fotos: Divulgação

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Mônica Nunes

Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.