A solidão na cidade e os idosos

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Ali, na frente das gôndolas do supermercado, minha missão era simples: comprar torradas. Estou completamente absorto nisso até escutar ao lado alguém dizendo baixinho “Filhos  da *&%$! Vai se #*¨&@” . Pensei que poderia ser alguém ao celular, mas jamais alguém irritado com as embalagens de cream crackers, como no caso daquela senhora já bem idosa. “P**&%! c*! Por que fazem essas embalagens assim?”, ela pergunta para ninguém.

Estamos apenas os dois no corredor e ela não me nota. Vejo sua fragilidade, as manchas na pele, o lenço na cabeça escondendo as marcas de uma possível quimioterapia e as mãos que tremem segurando um par de óculos multifocais. Decido ajudar mesmo receoso de que ela vá brigar comigo. “Boa noite. Tudo bem com a senhora? Tem alguma coisa que possa fazer por você?”, me introduzo em sua vida. “Minha vista não está tão boa e eu queria saber quanto de sódio tem nesse produto”, ela responde.

Sensibilizado com a situação me proponho a ajudá-la com as compras. A lista era longa e alguns itens pesados demais para ela, caso de um saco de arroz de cinco quilos. Além de um pouco boca suja, era meticulosa e queria saber o que tinha em cada coisa que colocava no carrinho. Na hora e meia que demos a volta no supermercado, me contou da filha e os netos que mudaram para o exterior e só visitavam uma vez por ano e da morte do marido vinte anos antes. Vivia sozinha em um apartamento próximo e tinha a ajuda diária de uma enfermeira, que por algum motivo não estava lá quando ela teve a súbita vontade de ir às compras. Passamos no caixa, ela pagou. Ajudei a carregar as coisas num táxi que chamei e nunca mais a vi. Não lembro do seu nome, acredito que ela também não lembra do meu, mas me recordo de ter pensado que a razão para seus palavrões só podia ser uma avassaladora sensação de impotência diante da solidão.

Numa cidade com 12 milhões de habitantes e, provavelmente, o dobro de smartphones, a solidão surge de jeito indireto e curioso quando se é jovem, mas se torna um fator de risco preocupante conforme a idade avança. Em março deste ano, um estudo do departamento de Psicologia da Universidade de Brigham Young revelou que viver uma vida solitária, com raras conexões sociais, equivale a fumar 15 cigarros por dia ou sofrer de alcoolismo grave. Para quem tem 65 anos ou mais, a reclusão chega a ser duas vezes mais perigosa que a obesidade, afirma Timothy B. Smith, coordenador da pesquisa que avaliou cerca de três milhões de casos nos EUA. Segundo ele, os reflexos são variados, como aumento no risco de infarto e na possibilidade do desenvolvimento da doença de Alzheimer.

“O que reforça a tese é que descobrimos exatamente o contrário em quem tem um círculo social dinâmico de amigos e família, pois as chances de morte prematura caem pela metade”, conta Smith. “O estilo de vida moderno, especialmente nas áreas urbanas, está reduzindo significativamente a qualidade e a quantidade de relações sociais entre os mais velhos. Menos do que antes, as pessoas vivem em núcleos familiares estendidos em suas casas ou perto dos seus grupos de confiança e apoio.  A solidão é um fator conhecido de estresse emocional, mas poucos sistemas de saúde estão preparados para atender o que pode se tornar uma epidemia no futuro. Os EUA já têm o maior índice do planeta: estima-se que 40% da população sofre com a falta de contato humano. Na década de 1970 eram 11%”, aponta o professor.

Em Barcelona, na Espanha, onde um em cada cinco habitantes tem mais de 65 anos de idade, os profissionais de saúde pública e políticas públicas já estão desenhando soluções. Atualmente, a capital da Catalunha conta com três programas sociais para combater a solidão entre essa faixa da população.

O primeiro deles é um serviço gratuito de teleassistência para idosos, que já conta com 70 mil usuários e se baseia no uso de um dispositivo de alerta que pode ser apertado em caso de emergência. O segundo, mais complexo, se chama Radars. Nele, amigos, vizinhos, comerciantes e prestadores de serviços se unem virtualmente para construir um círculo de apoio e assistência local para idosos reclusos. Parte do programa é baseado em observar os idosos do bairro e informar ao grupo de voluntários se estão precisando de ajuda, se estão esquecendo das coisas e mostrando sinais de vulnerabilidade física. “Esse monitoramento é vital para a assistência médica quando os pacientes vivem sozinhos. É uma maneira de contornar a questão do orgulho que pode ser um álibi para a solidão e para manter sua autonomia. É uma engenharia social que torna o bairro mais humano e solidário”, explica Ramon Sanahuja, do departamento de Qualidade de Vida da prefeitura de Barcelona.

Além dessas iniciativas, a cidade planeja agora uma mais ambiciosa, envolvendo a inclusão digital dos seus habitantes sêniores. Chamado de Vincles BCN, o programa consiste em munir seus participantes com tablets que facilitam a comunicação com familiares distantes, amigos e provedores de cuidados (vídeo abaixo). Os tablets contam com aplicativos básicos e extremamente fáceis de usar, um serviço de videochat, um compartilhador de fotos, um diário e um organizador de mensagens de voz.  “O que estamos fazendo com isso é nutrir os círculos de confiança e ver se a tecnologia pode ajudar no combate à solidão. A abordagem foca em pessoas como grupos de apoio limitados ou que não interagem com eles com a frequência e eficiência que poderiam. No Radars, temos entre 600 e 700 pessoas participando de grupos de apoio, o objetivo do Vincles é multiplicar essa atenção em uma rede maior, mas mais focalizada individualmente”, diz Sanahuja.

Em 2014, o projeto do Vincles BCN foi vencedor do prêmio Mayors Challenge, uma competição de inovação social para cidades organizada pela Bloomberg Philanthropies, fundação do ex-prefeito de Nova York e bilionário Michael Bloomberg. Com os 5,6 milhões de euros ganhos, Barcelona vai testar agora o programa em 200 idosos. A ideia é ter vinte mil participantes até 2018 e uma rede de 100 mil pessoas para salvar seus idosos da solidão.

Se a solidão ganha contornos de epidemia por lá, a tendência é a mesma no Brasil, infelizmente. A projeção do IBGE é que a população idosa quadruplique até 2060, amparada pelo aumento da expectativa de vida, chegando a 26,7% do total – a maior parte nos centros urbanos.

A questão do tratamento para a solidão deveria ser um tema mais amplamente debatido, argumenta Sanahuja. “Os tratamentos não podem ser estritamente farmacológicos porque antidepressivos não substituem interações sociais. A solidão é um sintoma da falta de pessoas em quem confiamos e que, em retorno, confiam em nós”, afirma. Tudo o que aquela senhora precisava no supermercado era alguém pra confiar e falar seus palavrões?

Foto: Divulgação / Ajuntament de Barcelona

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Julio Lamas

É repórter e escreve sobre sustentabilidade desde 2012.