A onda e os selfies

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A fotografia tem uma característica interessante: ela é capaz de reproduzir o que, de fato, aconteceu diante das lentes. A não ser que haja manipulação da imagem, incluindo ou excluindo elementos, a fotografia irá espelhar, em filme ou arquivo digital, aquilo que visualmente se passou diante da câmera, durante o tempo da exposição.

E o interessante nisso é que, tudo o que acontece ao redor do quadro escolhido pelo fotógrafo, em geral, acaba sepultado em um absoluto mistério. Ou seja, a fotografia entrega ao observador uma porção da realidade, mas longe de ser toda ela!

Pois bem… Estava eu, há alguns anos, visitando o Parque Nacional de Jericoacoara, no litoral do Ceará. E, obviamente, me interessava muito fazer fotos da sua feição natural mais icônica: a Pedra Furada. Claro que, como fotógrafo de natureza, sei que um local que, por si só, já é lindo e tão fotografado, merece uma abordagem mais cuidadosa, para não correr o risco de simplesmente fazer o que todo mundo já faz.

Me planejei para sessões fotográficas noturnas, no amanhecer e no pôr do sol. Esses horários têm a vantagem de ter uma luz melhor. Além, é claro, da oportunidade de poder transmitir aquela sensação de que, pela ausência de pessoas, a imagem retrata um local ermo e solitário. E vamos combinar que, no caso da Pedra Furada, essa sensação não é muito legítima, já que, em dias de movimento, dezenas de turistas devem passar por ali.

Fiz fotos de vários ângulos, com várias luzes e com vários tempos de exposição. Mas nenhuma imagem, até então, havia conseguido registrar o momento especial que eu tanto desejava, e aquilo incomodava feito picada de carrapato: eu queria o movimento de uma onda passando pelo furo.

E a razão de isso não ter acontecido ainda era muito simples. Em todos os momentos que estive no local, o nível da maré não era adequado. A onda só passa pelo furo em uma maré intermediária, nem alta, nem baixa. Pesquisei a tábua de marés e descobri, para meu desespero, que o nível que eu procurava aconteceria por volta das 15:30 ou, então, apenas de madrugada.

Dois problemas, um solucionável e o outro não. Na madrugada, não haveria luz para fazer a foto que eu queria. No meio da tarde, a chance de haver uma multidão no lugar era grande, e isso arruinaria a almejada (e um pouco falsificada) “sensação de isolamento” da imagem.

Como só era possível solucionar o segundo problema, tentei me inundar daquela certeza de que a paciência é a mãe de todas as virtudes e partir para a foto. O local bombava de turistas mas, mesmo assim, encontrei a composição que eu queria, armei o tripé, instalei a câmera, escolhi os filtros, testei a exposição e me pus em stand by, esperando uma oportunidade para fazer o click.

Naquele momento, sem querer interferir no lazer dos turistas porque, afinal, esse era o direito deles, descobri que a pedra diante do buraco era o point do selfie de Jericoacoara. Ao mesmo tempo em que eu via ondas e mais ondas passarem pelo buraco do jeitinho que eu queria, via também uma fila de turistas que aguardavam a vez de fazer sua selfie dentro da minha composição.

Então, por duas vezes todos saíram do meu quadro e… o raio da onda não passou pelo buraco! Depois de mais de 35 minutos esperando, houve uma sincronia entre a onda e os selfies e eu pude, finalmente, fazer minha foto. De fato, fotografei a Pedra Furada em outras ocasiões em que estava só no local. Mas a sensação de isolamento dessa imagem é pura balela: havia umas 40 pessoas em volta de mim. A principal manipulação dessa foto é a escolha do momento.

Agora, eis os dados técnicos da foto:
– Câmera Nikon D800 + Objetiva Nikon AFS 16-35mm f/4 @ 19mm
– Filtro polarizador + filtro graduado de densidade neutra
– ISO 50
– Abertura f/14
– Velocidade ¼ seg

2 comentários em “A onda e os selfies

  • 14 de setembro de 2016 em 7:49 AM
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    Sabes, gosto muito de recompor a cena naquilo que o fotógrafo e só ele consegue: captar a alma do momento. No caso, uma multidão que a chapa jamais revelaria por sí só. Quase pensei que a história levaria o Amend ao banho… Menos mal, mas e cadê o selfie, mestre? :) :) Abração!

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    • 15 de setembro de 2016 em 3:35 PM
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      As histórias com água sempre me levam ao banho! Mas quase nenhuma me leva ao selfie… hehehe
      Abraço grande mestre!

      Resposta

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Marcos Amend

A natureza sempre foi uma paixão para Marcos Amend que, ainda adolescente, passou a observá-la também pelas lentes de uma máquina fotográfica. Assim, aliando o talento fotográfico à conservação do meio ambiente, há 25 anos viaja do Norte ao Sul do Brasil e pelos cantos mais remotos do mundo. Colabora com livros, revistas e bancos de imagens e realiza expedições, cursos e workshops de fotografia outdoor.