A incrível história de Heidi Mosbacher, mãe das preguiças da Amazônia

Da série ‘Roteiros da Amazônia’, com o cineasta Jorge Bodanzky*

Preguiças são bichos que vivem espalhados pelas Américas, especificamente em sua porção Central, na Amazônia e na Mata Atlântica, que volta e meia viralizam em redes sociais e causam certo debate sobre a quantidade de horas que passam dormindo.

As que vivem na Amazônia alimentam-se basicamente de folhas de embaúba, mas há notícias sobre a criação de preguiças com uma dieta diferente, repleta de vegetais que existem na Alemanha.

A administradora desse regime peculiar foi Heidi Mosbacher, alemã que viveu por cerca de duas décadas às margens do rio Cuieiras e criou dezenas desses bichos para um estudo que dizia montar.

Como na maioria das situações atípicas, foi o mero acaso que fez o diretor Jorge Bodanzky conhecer a jovem, com quem manteve contato por mais de uma década.

Era o final dos anos 80, quando ele estava em Manaus (AM) com o colega Gernot Schley, fazendo uma matéria sobre a exportação de madeira amazônica para a Alemanha. Enquanto entrevistava um empresário do ramo madeireiro, em um pequeno escritório abafado atrás do Teatro Amazonas, foi surpreendido por uma mulher loira, alta e muito magra que entrou esbaforida no local, solicitando sua correspondência e falando alemão.

O homem — que dividia as funções de madeireiro com as de cônsul-honorário da Alemanha na cidade — deu a ordem e a secretária entregou quatro ou cinco cartas à visitante, que logo saiu correndo por onde entrara. Curioso, Bodanzky perguntou ao paisano quem era aquela moça. Ele respondeu que era “uma alemã maluca que morava sozinha no mato com as preguiças”.

O diretor interrompeu a entrevista e correu atrás da jovem, que seguiu em direção ao cais de Manaus, perto dali. “Perguntei a ela quem era e para onde ia, mas ela só me disse que não poderia falar, que tinha pressa para alimentar as preguiças que estavam famintas”, conta.

Ele a acompanhou até o porto e foi surpreendido por uma pequena canoa telada, contendo nada menos que 20 bichos-preguiça. Sem dar explicações, a mulher embarcou e subiu pelo rio Negro em rumo desconhecido até então. Quando voltou ao cônsul, não acrescentou muito mais à sua primeira e impactante impressão: apenas que ela se chamava Heidi Mosbacher, alemã de Munique, de poucos conhecidos e que só aparecia no escritório para buscar suas cartas a cada dois ou três meses. Depois voltava para o isolamento, no meio da floresta.

Investigando, Jorge soube que um barqueiro conhecido seu, apelidado Bigode, mantinha contato e às vezes ia até onde Heidi morava, próximo ao rio Cuieiras, na Reserva Florestal Adolpho Ducke, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), em Manaus.

Avessa à socialização humana, ela fugia para o mato quando alguém tentava chegar ao local onde cuidava dos animais.

Mesmo visitando a cidade por várias vezes, aquela tinha sido a primeira vez que Bodanzky soube da estrangeira. Até aquele momento o que ele sabia é que Heidi aparentemente fazia pesquisas sobre as preguiças. Mas para qual instituição? Onde? Como? Gernot, que acompanhava o diretor na cidade, não se interessou pelo assunto.

Quando voltou à cidade, em outro momento, o diretor convenceu o cônsul a quebrar o protocolo e pediu para pegar e levar ele próprio a correspondência de Heidi, como um carteiro informal (mero pretexto para conhecê-la). A ideia era fazer a viagem com Bigode, que já sabia o caminho, mas quando Heidi escutou o barulho do motor naturalmente se escondeu, conforme imaginavam. Ele chamou-a pelo nome e falou em alemão. Em algumas horas ela apareceu, ainda desconfiada e falando pouco. Nenhuma câmera foi levada.

“A história da Heidi era muito interessante porque, a cada vez que ela ou outra pessoa a contava, mudava alguma coisa. Quer dizer, até hoje não se sabe exatamente qual é a história verdadeira, até onde vão os fatos e a imaginação de cada um”, lembra Bodanzky.

Após longa conversa, o cineasta entendeu que a pesquisadora registrava os hábitos dos bichos-preguiça. Mesmo com as respostas, as dúvidas e a curiosidade foram aumentando. Ele voltou ao lugar com uma equipe, depois de convencer Heidi a participar de uma reportagem para uma emissora brasileira.

Ela relatou que era de Munique, na Alemanha, onde também havia estudado Química. Trabalhou no Quênia como analista de solos, voltou para a cidade natal e depois foi para Manaus com alguns pesquisadores. Em 1973, quando andava pela capital amazonense, viu uma criança vendendo um filhote de preguiça. Apaixonou-se pelo bicho, comprou-o e ficou tão preocupada que decidiu salvar a espécie local, tomando-a como um símbolo da preservação da floresta.

Daí, após dois anos na capital do Amazonas, foi parar num barraco de propriedade do INPA no rio Cuieiras, em área de preservação ambiental. Por algum motivo o órgão tolerou sua presença no local, que ela usava como morada e dividia com os mamíferos.

Guardava de 20 a 30 bichos-preguiça na precária casa de palafitas. Ela dormia no local com os animais e, quando viajava a Manaus, precisava trazê-las consigo, porque elas precisam ser alimentadas com muita frequência.

Essa era uma grande aflição de Heidi e tornava a situação muito limitadora, porque a preguiça come basicamente a folha da embaúba, uma árvore típica da Amazônia. O mamífero também não bebe água, mas a retém do que come, e por isso, a folhagem precisa ser sempre fresca.

Como sempre dizia, inclusive em entrevistas, Heidi acreditava que as pessoas tinham que aprender que as preguiças eram dignas de proteção e não eram lentas como a maioria achava. “Elas não são estúpidas. Podem se comunicar, são afetuosas, cuidam umas das outras e são limpas”, disse ao jornal americano Washington Post em 1994, que a chamou de “dama das preguiças”, sloth lady na ocasião.

A pesquisa e o realismo mágico

Bodanzky ainda precisava entender os detalhes sobre a estada da pesquisadora naquele lugar, praticamente isolada havia mais de dez anos (ela tinha chegado no Amazonas em 1973 e foi para o Cuieiras em 1975). A partir daí, as visitas aconteceram com certa frequência, de uma a duas vezes por ano, sempre quando o diretor passava por Manaus. Apesar da curiosidade e o registro de alguns encontros, ele sentia uma simpatia genuína por Heidi.

Ela chamava os ribeirinhos de canibais porque eles comiam preguiças como carne de caça. Estes, em contrapartida, ficavam ofendidos com a comparação, e isso gerava uma certa animosidade. Heidi piorava tudo quando dizia que seria morta pelos caboclos da região que, ela acreditava, a odiavam por proteger os mamíferos.

“Ela tinha desejo de morrer lá e realmente acreditava que seria morta pelos caboclos”, afirma Bodanzky. Mas acontecia justamente o contrário: não havia hostilidade.

Alguns vizinhos, compadecidos de Heidi, até levavam comida para a alemã — peixe e farinha de mandioca. Antes existia uma família na região que lhe dava verduras e frutas, mas se mudaram, o que a deixou ainda mais solitária naquele lugar. Mesmo nas agruras e intempéries da selva tropical, ela dizia, inclusive, que a única coisa que realmente sentia falta da civilização era do bom e velho pão europeu.

O cineasta soube posteriormente que Heidi de fato conseguira uma bolsa pelo Instituto Max-Planck da Alemanha para estudar as preguiças, em 1979. Mas acabou ficando sem o recurso porque, depois que foi morar na reserva, desapareceu e nunca mais se manifestou à entidade.

Ela dizia que trabalhava muito e que existiam poucas informações sobre o animal, como vive, se reproduz e tempo de gestação. Por isso, as colocou na construção, que foi telada. Heidi tinha uma favorita, que chamava de Monalisa —por ter um aparente sorriso amarelo no rosto— e que era como uma filha, como as outras. Mas sempre preferia posar para as fotos e vídeos com o bicho. Ela também admirava a primatóloga britânica Jane Goodall, especialista em chimpanzés.

Quando questionada sobre o que já havia pesquisado, a alemã não apresentava nenhum tipo de registro. A justificativa evocava o realismo mágico, como lembra Jorge Bodanzky:

“Eu perguntava pela pesquisa e ela dizia que anotava tudo em cadernos. Eu retrucava: ‘E onde estão? Posso vê-los?’. Ela apontava para uma bagagem acomodada no forro da casa. Quando eu pedia para me mostrar, ela dizia que não havia nada ali porque, de tempos em tempos, a casa era invadida por formigas que sempre comiam os cadernos com as anotações e ela era obrigada a sair do lugar. Então dizia que todo ano precisava reescrever o trabalho”, explica.

Algumas pessoas a achavam ‘totalmente maluca’, outros acreditavam que ela fazia estudos sérios. O fato é que a pesquisa em si, de acordo com Bodanzky, era ficção. Nunca foram encontrados registros escritos de Heidi Mosbacher sobre as preguiças, até o momento.

Este fato reforça a tese de que o trabalho de Heidi na região era a observação. Talvez um pretexto para ficar ali à vontade, longe dos estressantes centros urbanos. Algo que, para o cineasta, é a realização de uma vontade que muitas pessoas expressam.

A peleja de Heidi também significa preocupação com a espécie, um tipo de ecologia fora do padrão, que convida para um olhar mais atento. De fato, houve algumas reportagens publicadas na revista People, em 1988, além do artigo no Washington Post e dos trabalhos de Bodanzky para o Globo Repórter, da Rede Globo, veiculados em 1990.

Preguiças germânicas

O desejo de Heidi era voltar para seu país natal, sem abandonar suas queridas preguiças. Ela queria levar algumas para Munique, para continuar a pesquisa. A ideia era acostumá-las desde pequenas à dieta de cenouras, batatas e outros vegetais que pudessem ser encontrados facilmente na Alemanha. Mas como levá-las?

Já no começo dos anos 90, Bodanzky trabalhava para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e relatou ao gestor da época sobre o projeto de Heidi. Mas apenas a boa vontade da alemã não bastava para a operação: o presidente disse que a transferência seria impossível, por faltar uma instituição de pesquisa oficial que recebesse os animais no país europeu. A negativa foi reiterada em uma ocasião posterior, inclusive em troca de cartas e ofícios transportados por Jorge.

Até meados de 1998 e 1999, Bodanzky acreditava que não havia conteúdo suficiente para fazer um material mais extenso sobre Heidi. Pelo julgamento alheio, a história “não tinha pé nem cabeça” e por isso não despertava interesse, além do cineasta que a conhecia há uma década.

Somente David Meyer, marido da diretora Helena Solberg, ficou fascinado quando ouviu os relatos de Bodanzky. Ele sugeriu um documentário ao National Geographic, que topou o projeto. Jorge foi adiante, sondar Heidi sobre o assunto, mas recebeu uma notícia triste: descobriu que a alemã havia ficado muito doente e fora para a Alemanha se tratar.

Ouviu de um vizinho que ela tinha soltado os bichos no mato. “Foi quando eu pensei: ‘Ah, se ela soltou é porque não volta mais’”, diz. Ele estava certo. Heidi estava com câncer de estômago e fez uma operação no país natal. Acabou morrendo lá, longe de suas amadas preguiças e da Amazônia, onde viveu por mais de duas décadas.

A história permaneceu esquecida até o ano passado, quando uma documentarista suíça procurou Bodanzky para entrevistá-lo. O assunto era justamente Heidi.

No documentário de Mélanie Rounier, o jornalista Ron Arias, que entrevistou Heidi, diz que a química que sonhava ser bióloga era uma mulher muito solitária e que chegou, inclusive, a ter como vizinho um casal de conterrâneos alemães a 15 metros de distância.

Mas eles não se davam muito bem porque o homem trabalhava em uma empresa construtora de estradas, que tinha que limpar a vegetação para realizar o serviço, coisa que ela criticava muito. Os outros dois achavam que Mosbacher era louca.

Para Bodanzky, Heidi Mosbacher, assim como tantos personagens, representa um certo grau de ‘loucura’ lúcida recorrente nas pessoas que vão para a região e alimentam o “mistério amazônico”.

“Uns vão para procurar o El Dorado, vão fazer a Fordlândia, o Projeto Jari, Belo Monte. Quer dizer, é um espaço que ainda oferece o mistério, o imaginário. Talvez ainda seja o único lugar da Terra onde as coisas impossíveis ainda podem se realizar, ou pelo menos as pessoas acham isso”, frisa.

“Acho que a Heidi fugiu da civilização e criou a sua própria família em meio às preguiças. É uma loucura, até certo ponto, mas não muito diferente da fábrica de celulose de Daniel Ludwig, por exemplo. Creio que a Amazônia dá espaço para isso”.

O filme de Rounier, concluído em 2019, disponível abaixo, em francês e alemão, é “Heidi Mosbacher, au-delà d‘une vie”. “A coisa se inverteu, hoje ela sabe mais sobre a Heidi”, conclui Jorge.

*Roteiros da Amazônia é uma parceria entre o cineasta Jorge Bodanzky e a Amazônia Latitude. Confira todas as edições aqui. O texto foi publicado no site Amazônia Latitude em 14/8/2020

Foto: Jorge, Heidi e a preguiça Monalisa / arquivo pessoal

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